terça-feira, 15 de julho de 2014

Polêmicas literárias no Brasil: alguns recortes históricos.



                                                                  Cunha e silva Filho

                      
  As polêmicas surgem em decorrência de princípios ou ideias divergentes  que se chocam entre  indivíduos ou  grupos nos  múltiplos  campos  do conhecimento humano. Na literatura  portuguesa,   tivemos a velha e famosa “Questão  Coimbrã” ou do ”Bom Senso e Bom Gosto,” travada entre  Antônio Feliciano de Castilho e seus seguidores representando a geração  antiga, e os rivais  Antero  de Quental e Teófilo  Braga, intérpretes  estes da geração mais  moça.
Esta  polêmica,  plena de  injustiças  e  de desrespeito  da parte  dos mais novos  e sobretudo de Antero de Quental, se dera por  razões de pressupostos   estéticos entre o Romantismo e as novas  concepções de ordem científico-evolutiva do Realismo, movimento   literário  através do  qual  os novos procuraram  a derrocada do grande   movimento  anterior de amplo   espectro   nacional  e universal.
                       No domínio da vida literária brasileira o capítulo  das  polêmicas  não é pequeno em sua incidência, particularmente no  século XIX, em  pleno  Romantismo,   movimento  literário  abrangente e avassalador  nos seus pressupostos teóricos, o qual   permeou  uma multiplicidade   de áreas  culturais, não somente  nos limites   estritamente  literários, mas  invadindo mesmo   o terreno  da gramática, da filologia, da linguística, da estética,  da filosofia,  da economia,  da política, da religião.
                       Só para ilustrar algumas polêmicas ocorridas no século XIX, podemos  mencionar  as divergências  estético-ideológicas entre José de Alencar e os defensores  de  Gonçalves Magalhães a propósito  do  poema  “A Confederação  dos Tamoios,” escrito  por  este último,   considerado  o introdutor do Romantismo  brasileiro com a  obra Suspiros  poéticos  e saudades (1836).  O escritor  de Iracema, usando  o pseudônimo de Ig, atacara aquele poema de  Gonçalves Magalhães através da  publicação de   oito Cartas sobre a  Confederação dos Tamoios (1856). Alencar julgara o  poema  fraco  poeticamente e reprovava  na composição  do poema  as ideias  de Magalhães sobre  o indígena.[1]            
   Contra José de Alencar cerraram fileiras Araújo Porto Alegre e D. Pedro II. “Numa posição intermediária,” ficou Monte Alegre.[2]   Ainda contra Alencar outros fatos ligados à sua  produção literária conspiraram injustamente,  como  a censura que o impediu de levar aos palcos o seu  drama  As asas de um Anjo.
   Ainda mencionaríamos na sucessão de julgamentos  críticos  de oposição a Alencar a acrimônia do Conselheiro Lafayette classificando a “heroína de Lucíola de ‘monstrengo moral’; as críticas  de mau gosto  e infundadas de Pinheiro  Chagas (escritor  português), de   Antônio  Henriques Leal (escritor e médico  maranhense, e não  português como, por engano,  afirmou  Alfredo Bosi), e de Antônio Feliciano  de Castilho (escritor  português) recriminando, em  diversas  ocasiões,   ser Alencar  um autor  “incorreto” na linguagem,  censura que,  por sua vez,  recebeu da parte de Alencar, consoante  lembra bem  Alfredo Bosi,  uma  fundamentada teoria da ‘língua brasileira.’ [3]
   Nas Cartas a Cincinato, o escritor Franklin  Távora provocaria  a veia crítica de José  de Alencar.Távora  reprovava  as concepções estético-regionalistas  de Alencar. Finalmente, mais uma acesa  polêmica enfrentaria    José de Alencar com  Joaquim Nabuco sobre  questões  estéticas envolvendo  obras  do escritor cearense.[4]
   No início do século  XX e até em tempos  ulteriores,  podiam-se  mencionar as  polêmicas entre Sílvio Romero e José Veríssimo, entre Carlos de Laet e Valentim Magalhães,  bem como entre Carlos  de Laet e Camilo  Castelo Branco, entre  Rui Barbosa e Ernesto Carneiro  Ribeiro, entre o Pe. Sena Freitas e Júlio  Ribeiro,  entre Cassiano  Ricardo e Fernando de Magalhães, entre Sílvio Elia e José de Oiticica. Há pouco tempo, lemos um  livro  vergastando  duramente  o crítico  Agripino Grieco,  a despeito de ser  ele mesmo,  Grieco,  um velho crítico  conhecido      por sua  mordacidade e um espírito  sarcástico e demolidor.
   Referimo-nos ao livro Carcassa, sem glória, de Osório Lopes.[5] Pelo visto,  eram   controvérsias de diferentes  escalas   de  azedume, de diatribes   e de animosidades, sustentadas entre intelectuais brasileiros, não só poetas e ficcionistas, como também críticos, historiadores, gramáticos,  filólogos, linguistas discutindo, pois,  controversas  questões e temas,  sendo  principalmente aqueles   relacionados  à nossa formação literária, à autonomia   de nossas letras, à nacionalidade   literária, à língua literária   brasileira, temas,  de resto,  amplamente  estudados  por Afrânio Coutinho na obra  A tradição  afortunda.[6]
  Fatos semelhantes a estes  nos fazem pensar   no mesmo problema  enfrentado  por Lima Barreto, a quem  uma certa crítica  andou   afirmando  sem claras razões  linguísticas nem tampouco  estéticas ser  o  autor  de O triste  fim de Policarpo Quaresma  um  escritor “displicente’ e “incorreto,” quando   esses alegados  motivos   não passam  de um   julgamento crítico que não  entendeu   a base  estético-literário-linguística  da fase   de transição   de Lima  Barreto, a que a  história  literária brasileira denomina  Pré-Modernismo.
  Mário de Andrade, sobretudo com o grande marco de inovações linguístico-estético-literárias, que foi Macunaíma, situar-se-ia neste mesmo tipo de  debate, guardadas  as  mudanças  de tempo e de  formas renovadas   de  elaboração   ficcional ou  poética  desencadeadas   pelo Modernismo de  1922, o qual     esteve exposto a  severas   críticas  no tocante ao uso da linguagem literária.
Na sua   primeira  fase  iconoclasta, derrubando  valores  estéticos e formais dos  dois  maiores  gêneros   literários,  o ficcional e  o  poético, o Modernismo reagiu   profundamente a     um tradicionalismo  resistente a rupturas na obra  literária, sobretudo  no   uso da linguagem  literária ainda  presa  à ideia de que   “escrever bem” em literatura    equivale à submissão   irrestrita  a regras da gramática normativa e não  a processos  criativos  e  experimentais  do fenômeno  literário.
 Após  fazer  estas   rápidas  digressões  nos três   parágrafos  anteriores, convém, ademais,   salientar que,  por ser assim  tão amplo e variado  nos seus   objetivos e no seu alcance,  já alguém afirmou ser o Romantismo um movimento  literário  que, por agregar  tantos   traços culturais  sob a égide  da liberdade  e de impulsos subjetivos de caráter nacional e universal,  i.e.,  de contestação   a qualquer tentativa de  oprimir  a individualidade, seja artística, seja,  seja social, seja econômica,  seja  filosófica, seja religiosa, seja moral, legou, ao longo dos tempos,   um substrato de um estilo e  forma de pensamento  sem tempo  datado ou, consoante bem   sintetiza,  o ensaísta e  historiador  Massaud Moisés: “De certo modo,  a revolução romântica não findou ainda...”  [7]
                        Todos  os  outros  movimentos  literários e artísticos  posteriores,  inclusive as vanguardas do  final do século  XIX,  ainda   assinala  aquele autor:

(...)  não  raro traem o  afã de ressuscitar o impulso   dos princípios do  século  XIX, evidente na recusa de tudo  quanto possa  constranger a liberdade criadora. Acrescente-se, por fim, que os padrões de cultura inaugurados com  a ascensão da Burguesia ainda estão vivos, o quadro dessa  permanência se completa e se define. [8]            
           
                          Basta  mencionar que  o carro-chefe do seu longo e controvertido  debate  convergiu para candentes e decisivas  questões suscitadas por  esse movimento e geradoras  de  polêmicas: o nacionalismo literário, a discussão da identidade nacional, o problema do  português do Brasil, sobretudo  na forma como   deveria se comportar a língua literária em  relação ao português lusitano, de vez que o Romantismo constitui o primeiro  grande  movimento de ruptura  com   as  letras  portuguesas, além de  revigorado  pelas mudanças históricas    consolidadas pela  conquista de nossa autonomia    política  na imagem emblemática do Grito do Ipiranga.
 Na história  da literatura brasileira,  estas querelas que  eclodiram no século XIX,  consoante  frisamos  no início deste ensaio,  surgiram  também no início do século XX, nos anos 1940 [9] –  período fértil  em  polêmicas  entre  escritores  brasileiros -, nos anos 1950, e podemos   estendê-las até os princípios  dos anos  de 1960.  E não estamos  incluindo aqui as pelejas de natureza literária,  filosófica e religiosa que ainda  podem ser rastreadas em alguns estados  brasileiros fora do eixo Rio-São Paulo, as quais,  pela distâncias geográficas,  não chegaram  ao conhecimento   mesmo   de especialistas.
   De modo geral, os  próprios  movimentos literarios já por si sós contêm, por seu caráter de  renovação versus tradição,  suficientes  materiais   com  traços  polêmicos ou  controversos, ou seja,  a sempre velha  história dos novos querendo  desbancar  os mais velhos  nesta  eterna  luta de Sísifo entre  a exaustão  das formas estéticas  e  o seu  ersatz por  novas   visões  estético-artísticas.
 Entretanto,  a polêmica  é um fenômeno  que se registra em   qualquer literatura e em qualquer época  da História.  No exemplo  brasileiro  as   polêmicas   sempre estiveram  presentes, servindo de forte combustível para que  contendores afiassem seus  instrumentos de ataques e revides,  primeiro no plano intelectual e, em seguida, conforme a natureza e o grau da querela,  passavam ao  desforço   pessoal  e se transformavam,  por vezes,  em  hostilidades passageiras  ou até duradouras; neste  último  caso, se configura, entre outras,  a  polêmica  travada entre  Afrânio Coutinho e Álvaro Lins nos anos de 1940, 1950 e 1960 aproximadamente.






NOTAS

[1] Cf.  SÁFADY, Naief. Verbete “Polêmica.”  In: PRADO COELHO, Jacinto do. (Dir.).  Dicionário de literatura –  Literatura  brasileira, Literatura portuguesa, Literatura galega e Estilística literária. v..2.  3. ed..Porto: Figueirinhas, 1973, p.838-839. Consultar também  PAULO PAES, José. e MOISÉS, Massaud. (Org. e Dir.) Pequeno dicionário de literatura brasileira. 2.ed.  rev. e ampliada por Massaud Moisés.  São Paulo: Cultrix, 1980. Verbete “polêmica,” da autoria de Joel Pontes.
[2]   Idem, ibidem.
[3] BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2001, p. 135..
[4] COUTINHO, Afrânio (Org.).A polêmica Alencar-Nabuco. 2. ed.  Introdução de Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Brasília: Ed. Universidade de Brasília,  1978, p. 5-13. Sobre o tema de polêmicas na literatura brasileira,  consultar CASTELLO, José Aderaldo. A polêmica sobre “A Confederação dos Tamoios.” São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, 1953; ver  também VENTURA, Roberto. Estilo tropical: História cultural e  polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São  Paulo:Companhia das Letras,  1991.
[5] LOPES,  Osório. Carcassa sem glória – Apontamentos sobre Agripino Grieco.   Rio de Janeiro: Livraria Boa Imprensa, s.d.
[6] COUTINHO, Afrânio. A tradição  afortunada. (O espírito  de nacionalidade na crítica brasileira).  Rio de Janeiro: José Olympio/Editora Universidade de São Paulo, 1960. Coleção Documentos Brasileiros, nº 127. Importante  obra de Coutinho com Prefácio de Afonso Arinos de Melo Franco.
[7] MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários.  6. ed.  São Paulo: Cultrix, 1992, p. 465.
[8] Idem, ibidem.
[9] MENESES  BOLLE, Adélia. Bezerra de.A obra de Álvaro Lins e sua função histórica. Petrópolis: Vozes, 1979, p. 47.

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