Cunha e silva Filho
As polêmicas surgem em decorrência de princípios ou ideias divergentes que se chocam entre indivíduos ou
grupos nos múltiplos campos
do conhecimento humano. Na literatura
portuguesa, tivemos a velha e
famosa “Questão Coimbrã” ou do ”Bom
Senso e Bom Gosto,” travada entre
Antônio Feliciano de Castilho e seus seguidores representando a
geração antiga, e os rivais Antero
de Quental e Teófilo Braga,
intérpretes estes da geração mais moça.
Esta
polêmica, plena de injustiças
e de desrespeito da parte
dos mais novos e sobretudo de
Antero de Quental, se dera por razões de
pressupostos estéticos entre o
Romantismo e as novas concepções de
ordem científico-evolutiva do Realismo, movimento literário
através do qual os novos procuraram a derrocada do grande movimento
anterior de amplo espectro nacional
e universal.
No domínio da vida literária brasileira o capítulo das polêmicas não é pequeno em sua incidência,
particularmente no século XIX, em
pleno Romantismo , movimento
literário abrangente e
avassalador nos seus pressupostos
teóricos, o qual permeou uma multiplicidade de áreas
culturais, não somente nos
limites estritamente literários, mas invadindo mesmo o terreno
da gramática, da filologia, da linguística, da estética, da filosofia,
da economia, da política, da
religião.
Só para ilustrar algumas polêmicas ocorridas no século XIX, podemos mencionar
as divergências
estético-ideológicas entre José de Alencar e os defensores de
Gonçalves Magalhães a propósito
do poema “A Confederação dos Tamoios,” escrito por
este último, considerado o introdutor do Romantismo brasileiro com a obra Suspiros poéticos
e saudades (1836). O
escritor de Iracema, usando o pseudônimo
de Ig, atacara aquele poema de Gonçalves
Magalhães através da publicação de oito Cartas
sobre a Confederação dos Tamoios (1856).
Alencar julgara o poema fraco
poeticamente e reprovava na
composição do poema as ideias
de Magalhães sobre o indígena.[1]
Contra José de Alencar cerraram fileiras Araújo Porto Alegre e D. Pedro
II. “Numa posição intermediária,” ficou Monte Alegre.[2] Ainda contra Alencar outros fatos ligados à
sua produção literária conspiraram
injustamente, como a censura que o impediu de levar aos palcos o
seu drama As asas
de um Anjo.
Ainda mencionaríamos na sucessão de julgamentos críticos
de oposição a Alencar a acrimônia do Conselheiro Lafayette classificando
a “heroína de Lucíola de ‘monstrengo moral’; as críticas de mau gosto
e infundadas de Pinheiro Chagas
(escritor português), de Antônio
Henriques Leal (escritor e médico
maranhense, e não português como,
por engano, afirmou Alfredo Bosi), e de Antônio Feliciano de Castilho (escritor português) recriminando, em diversas
ocasiões, ser Alencar um autor
“incorreto” na linguagem, censura
que, por sua vez, recebeu da parte de Alencar, consoante lembra bem
Alfredo Bosi, uma fundamentada teoria da ‘língua brasileira.’ [3]
Nas Cartas a Cincinato, o
escritor Franklin Távora provocaria a veia crítica de José de Alencar.Távora reprovava
as concepções estético-regionalistas
de Alencar. Finalmente, mais uma acesa
polêmica enfrentaria José de
Alencar com Joaquim Nabuco sobre questões
estéticas envolvendo obras do escritor cearense.[4]
No início do século XX e até em
tempos ulteriores, podiam-se
mencionar as polêmicas entre
Sílvio Romero e José Veríssimo, entre Carlos de Laet e Valentim Magalhães, bem como entre Carlos de Laet e Camilo Castelo Branco, entre Rui Barbosa e Ernesto Carneiro Ribeiro, entre o Pe. Sena Freitas e
Júlio Ribeiro, entre Cassiano Ricardo e Fernando de Magalhães, entre Sílvio
Elia e José de Oiticica. Há pouco tempo, lemos um livro
vergastando duramente o crítico
Agripino Grieco, a despeito de
ser ele mesmo, Grieco,
um velho crítico conhecido por sua
mordacidade e um espírito
sarcástico e demolidor.
Referimo-nos ao livro Carcassa,
sem glória, de Osório Lopes.[5]
Pelo visto, eram controvérsias de diferentes escalas
de azedume, de diatribes e de animosidades, sustentadas entre
intelectuais brasileiros, não só poetas e ficcionistas, como também críticos,
historiadores, gramáticos, filólogos,
linguistas discutindo, pois,
controversas questões e temas, sendo
principalmente aqueles
relacionados à nossa formação
literária, à autonomia de nossas
letras, à nacionalidade literária, à
língua literária brasileira,
temas, de resto, amplamente
estudados por Afrânio Coutinho na obra
A tradição afortunda.[6]
Fatos semelhantes a estes nos
fazem pensar no mesmo problema enfrentado
por Lima Barreto, a quem uma certa
crítica andou afirmando
sem claras razões linguísticas
nem tampouco estéticas ser o
autor de O triste fim de Policarpo
Quaresma um escritor “displicente’ e “incorreto,”
quando esses alegados motivos
não passam de um julgamento crítico que não entendeu
a base
estético-literário-linguística da
fase de transição de Lima
Barreto, a que a história literária brasileira denomina Pré-Modernismo.
Mário de Andrade, sobretudo com o grande marco de inovações
linguístico-estético-literárias, que foi Macunaíma,
situar-se-ia neste mesmo tipo de debate,
guardadas as mudanças
de tempo e de formas
renovadas de elaboração
ficcional ou poética desencadeadas pelo Modernismo de 1922, o qual esteve exposto a severas
críticas no tocante ao uso da
linguagem literária.
Na sua primeira
fase iconoclasta, derrubando valores
estéticos e formais dos dois maiores
gêneros literários, o ficcional e
o poético, o Modernismo
reagiu profundamente a um tradicionalismo resistente a rupturas na obra literária, sobretudo no
uso da linguagem literária
ainda presa à ideia de que “escrever bem” em literatura equivale à submissão irrestrita
a regras da gramática normativa e não
a processos criativos e experimentais do fenômeno
literário.
Após
fazer estas rápidas
digressões nos três parágrafos
anteriores, convém, ademais,
salientar que, por ser assim tão amplo e variado nos seus
objetivos e no seu alcance, já
alguém afirmou ser o Romantismo um movimento
literário que, por agregar tantos
traços culturais sob a égide da liberdade
e de impulsos subjetivos de caráter nacional e universal, i.e.,
de contestação a qualquer
tentativa de oprimir a individualidade, seja artística, seja, seja social, seja econômica, seja
filosófica, seja religiosa, seja moral, legou, ao longo dos tempos, um substrato
de um estilo e forma de pensamento sem tempo
datado ou, consoante bem
sintetiza, o ensaísta e historiador
Massaud Moisés: “De certo modo, a
revolução romântica não findou ainda...”
[7]
Todos os outros
movimentos literários e
artísticos posteriores, inclusive as vanguardas do final do século XIX,
ainda assinala aquele autor:
(...) não
raro traem o afã de ressuscitar o
impulso dos princípios do século
XIX, evidente na recusa de tudo
quanto possa constranger a
liberdade criadora. Acrescente-se, por fim, que os padrões de cultura
inaugurados com a ascensão da Burguesia
ainda estão vivos, o quadro dessa
permanência se completa e se define. [8]
Basta mencionar que o carro-chefe do seu longo e
controvertido debate convergiu para candentes e decisivas questões suscitadas por esse movimento e geradoras de
polêmicas: o nacionalismo literário, a discussão da identidade nacional,
o problema do português do Brasil,
sobretudo na forma como deveria se comportar a língua literária
em relação ao português lusitano, de vez
que o Romantismo constitui o primeiro
grande movimento de ruptura com
as letras portuguesas, além de revigorado
pelas mudanças históricas
consolidadas pela conquista de
nossa autonomia política na imagem emblemática do Grito do Ipiranga.
Na história
da literatura brasileira, estas
querelas que eclodiram no século
XIX, consoante frisamos
no início deste ensaio, surgiram
também no início do século XX, nos anos 1940 [9]
– período fértil em
polêmicas entre escritores
brasileiros -, nos anos 1950, e podemos
estendê-las até os princípios dos
anos de 1960. E não estamos
incluindo aqui as pelejas de natureza literária, filosófica e religiosa que ainda podem ser rastreadas em alguns estados brasileiros fora do eixo Rio-São Paulo, as
quais, pela distâncias geográficas, não chegaram
ao conhecimento mesmo de especialistas.
De modo geral, os próprios movimentos literarios já por si sós contêm,
por seu caráter de renovação versus tradição, suficientes
materiais com traços
polêmicos ou controversos, ou
seja, a sempre velha história dos novos querendo desbancar
os mais velhos nesta eterna
luta de Sísifo entre a exaustão das formas estéticas e o
seu ersatz
por novas visões
estético-artísticas.
Entretanto,
a polêmica é um fenômeno que se registra em qualquer literatura e em qualquer época da História.
No exemplo brasileiro as
polêmicas sempre estiveram presentes, servindo de forte combustível para
que contendores afiassem seus instrumentos de ataques e revides, primeiro no plano intelectual e, em seguida,
conforme a natureza e o grau da querela,
passavam ao desforço pessoal
e se transformavam, por
vezes, em hostilidades passageiras ou até duradouras; neste último
caso, se configura, entre outras, a
polêmica travada entre Afrânio Coutinho e Álvaro Lins nos anos de
1940, 1950 e 1960 aproximadamente.
[1]
Cf. SÁFADY, Naief. Verbete
“Polêmica.” In: PRADO COELHO, Jacinto
do. (Dir.). Dicionário de literatura –
Literatura brasileira, Literatura
portuguesa, Literatura galega e Estilística literária. v..2. 3. ed..Porto: Figueirinhas, 1973, p.838-839.
Consultar também PAULO PAES, José. e
MOISÉS, Massaud. (Org. e Dir.) Pequeno
dicionário de literatura brasileira. 2.ed.
rev. e ampliada por Massaud Moisés. São Paulo: Cultrix, 1980. Verbete
“polêmica,” da autoria de Joel Pontes.
[2] Idem, ibidem.
[3]
BOSI, Alfredo. História concisa da
literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2001, p. 135..
[4]
COUTINHO, Afrânio (Org.).A polêmica
Alencar-Nabuco. 2. ed. Introdução de
Afrânio Coutinho. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro; Brasília: Ed. Universidade
de Brasília, 1978, p. 5-13. Sobre o tema
de polêmicas na literatura brasileira,
consultar CASTELLO, José Aderaldo.
A polêmica sobre “A Confederação dos
Tamoios.” São Paulo: Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da
Universidade de São Paulo, 1953; ver
também VENTURA, Roberto. Estilo
tropical: História cultural e
polêmicas literárias no Brasil, 1870-1914. São Paulo:Companhia das Letras, 1991.
[5]
LOPES, Osório. Carcassa sem glória – Apontamentos sobre Agripino Grieco. Rio de Janeiro: Livraria Boa Imprensa, s.d.
[6]
COUTINHO, Afrânio. A tradição afortunada. (O espírito de nacionalidade na crítica brasileira). Rio de Janeiro: José Olympio/Editora
Universidade de São Paulo, 1960. Coleção Documentos Brasileiros, nº 127.
Importante obra de Coutinho com Prefácio
de Afonso Arinos de Melo Franco.
[7]
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos
literários. 6. ed. São Paulo: Cultrix, 1992, p. 465.
[8]
Idem, ibidem.
[9]
MENESES BOLLE, Adélia. Bezerra de.A obra de Álvaro Lins e sua função histórica. Petrópolis: Vozes, 1979, p. 47.
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