quinta-feira, 17 de julho de 2014

O olhar de um jovem mendigo


                                                              Cunha e Silva Filho


                 Ao sair da vetustíssima  Igreja de Santa Luzia,  Centro do Rio de Janeiro,  aonde fui  assistir a uma missa de Ação de Graças a Santo Expedito, me defrontei  com um  jovem negro, sentado num dos degraus  da entrada  daquele templo sagrado.
                O  jovem  não me pediu nada quando olhei para ele. Senti que  seu olhar  me pedia uma ajuda  financeira e aqui associo de imediato  o fato  àquele  provérbio  que aprendi  em inglês num  formoso livrinho didático, presente  de um vizinho e amigo  quitandeiro  da rua São Pedro,  esquina com a Arlindo Nogueira, em Teresina, Piauí, lá por volta  do  início dos anos de 1960.  Livrinho da antiga coleção FTD, ao qual, infelizmente,  faltavam  algumas páginas. O provérbio é este: “He who gives to the poor lends to God.”  (“Quem dá aos pobres empresta a Deus”).
                Minha reação foi  logo a de  retirar  do bolso  uma pequena    quantia que dei  ele. Mas,  não é a ação de caridade  que me importa    como matéria de  reflexão e, portanto,  não é  a discussão  de  dar esmola  ou não dar  esmola, nem  tampouco  me  importa se esse gesto  vai de encontro  ao pensamento, quase coletivo,  de que  dar esmola  é manter   o hábito errado e reprovado  de  que assim fazendo estamos  não ajudando  alguém  na penúria, mas  contribuindo  para  manter  indolentes   no estado em que estão.
O que  pretendo   comentar  é  o olhar do jovem  negro dirigido a  mim com tanta candura  e tanta pureza, com tanta  alegria que conseguia me passar pelo brilho   que me  transmitia  uma  expressão de ingenuidade,  de simplicidade, de pureza,de agradecimento, de gratidão, de  comunicação instantânea de uma alma para outra,  sem  nenhum outro  desejo senão o do olhar   de agradecimento e de simpatia  que me lançou e me comoveu  até às lágrimas, lágrimas não  realmente  derramadas mas sentidas,  que são  as mais   genuínas e as  mais  intensas.
Olhares  há  que se distinguem  do simples  olhar  da indiferença  que observamos   em nossos semelhante, no anonimato  da multidão. Esse  olhar  do desconhecido  não tem  nenhuma  significação  para nós, porque nada diz  dos sentimentos  verdadeiros, do que  brota da espontaneidade,  da gratuidade,  do querer ser  cúmplice  e solidário, ou seja, é um outro  olhar, é o olhar do jovem  mendigo. É esse olhar  que  nos  falta como seres   feitos de espírito e  de matéria física.
O  olhar do jovem  negro não é o de  ameaça,  de raiva,   de revolta. É, antes,  o olhar  do amor,  da alegria  sentida  por receber, num simples gesto  de uma pequena esmola,   algo  que conforta ainda que  por um curto  tempo. Não  foi a minha ajuda   dispensada àquele  jovem  que  irá   resolver a situação de mendicância dele. O que está em jogo é o  contentamento   demonstrado  por  ele através de um  olhar   amoroso  e empático,  olhar de quem  não  nos quer o mal, um olhar de quem  nos    deseja   felicidade   e alegria, olhar digno de uma  poética do olhar.
 Aquele instante do  olhar do jovem  negro  que pede esmola, seja  pelo silêncio,  seja pelo balbuciar   hesitante  de   proferir  alguma frase constituiu,   pelo menos para a minha compreensão,  um  momento  epifânico.  
Não sei se ainda experimentarei  aquele   instante  de olhar   onde se pode  sem esforço  vislumbrar  a faísca  do conforto   íntimo  ainda que   fruído  por alguns  instantes  inefáveis.
O olhar do jovem  e  simpático  negro, naquela manhã de sol  de julho carioca, guardarei  comigo   como um instante de eternidade que  -  sei  por experiência -   não  nos  é comunicado    em tantos dias   da  nossa vida.
O olhar do jovem  negro    que pede esmola talvez tenha adquirido  mais  intensidade  devido  à circunstância de que,  naquela manhã de uma quarta-feira, o meu dia   não fosse  um dia  comum  e  insosso, mas  um dia   pleno  de sensações  etéreas,  de eflúvios   benéficos, desses que   nos   invadem  a alma e  o corpo  numa unidade  de harmonias  e de  encantamento  a que  chamaria de  uma dia  feliz, no qual a percepção mais aguda   da vida  e de sua  importância  nos  torna mais   do que um simples mortal,   mas alguém  em comunhão  universal  com   o sentimento  de amor   à vida, ao tempo,  ao espaço, à natureza.
 Procurando as razões mais íntimas para este estado de  beatitude,  não preciso  esconder  que  seu  cerne se encontra  naquela  lindo  olhar de um simples  negro  encontrado  a pedir  esmola, sentado   num degrau   da  entrada  de uma velha   igreja, cuja forma embrionária data praticamente do tempo  da fundação do    Rio de Janeiro, tendo sido precariamente  erguida à beira do que chamamos Baía da Guanabara, uma parte considerável da qual foi, tempos depois,    aterrada com  os escombros  da derrubada do Morro do Castelo.
Internamente,  a construção da igreja foi  feita em    estilo “ rococó tardio,” segundo  a classificação  que lhe deu  o historiador  Milton  Teixeira, que conhece tudo do Rio antigo, e   de mistura com    traços  barrocos.A Igreja de Santa Luzia, uma  das relíquias  históricas da cidade,  passou por diferentes  formas  arquitetônicas.
 Nada sei  nada sobre a vida pessoal e familiar  daquele  jovem, dos motivos que o levaram àquela condição social. Também não é desta crônica que  me valerei para elucubrações de cunho  político,  ideológico,  de  sistemas de governos.
 O que no jovem  negro procuro  é sondar-lhe, ainda que  esquematicamente,  a  poética do olhar, o seu  sentido de humanidade. No seu olhar não tenciono questionar os fundamentos da  nossa estrutura política  que o levaram   ao que é na sua condição  atual  de   carência e de  abandono. Não é politizar  o tema  da pobreza,  das injustiças  sociais,   dos governos   perversos,  corruptos, modelos nefandos  da impunidade em vários  níveis de administração, de violência em forma de impunidade crônica,  malabarismos indecentes (para não parecer disfêmico) e de hipocrisias camufladas de benefícios sociais.  
Só quero  é extrair da  poética daquele  olhar todos os traços   de sua ancestralidade, das lutas da sua  etnia  para conseguir   alguma cidadania   e dignidade  num país  engolfado  por modernismos   e  anacronismos (Eduardo Portella) que saltam  à vista de qualquer  observador   atento  ao  destino  de  nossa  nação.
Só sei que aquele  olhar  do jovem  negro  brasileiro me encantou e me fez   um dia mais   feliz e mais consciente sobre  o que  deveríamos ser e não somos, no cinzento  convívio  entre os   homens que ainda  povoam  este  tão  desolado planeta  Terra.


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