domingo, 28 de abril de 2013

O homem que não queria morrer




Cunha e Silva Filho



Era jovem ainda o Hadesiano, assim mesmo escrito. Não tinha mais do que trinta anos, mas vivia afirmando que morrer não estava nos seus planos,.não. Antes viver, viver como pudesse, viver ao máximo ainda que fosse no seu mundo pequeno e sem graça, viver sem pactos, sem essa conversa de perder a alma para ganhar a vida ou a eterna mocidade e sem ter que recorrer ao expediente macabro de Dorian Gray ou à ambiguidade do pacto do narrador Riobaldo ou às implicações fáusticas de Thomas Mann. Viver no seu epicurismo de pobre e ambulante semi-letrado. Viver a vida simplesmente vivida, sem horizontes, sem grandes sonhos, sem grandes esperanças. Viver apenas...

Por isso, agia como se escondesse eternamente da morte, não pegava avião, não pegava ônibus interestadual, nada. No seu bairro, que não era pequeno, preferia passar a vida só caminhando pelas ruas. Conhecia-as de cor e salteado e delas sabia os nomes todos, ainda mesmo aqueles escritos em língua estrangeira.

Era assim Hadesiano. Se alguém lhe viesse dar uma sugestão para se tornar igual a todos a respeito da condição mortal do ser humano lá vinha ela com sete pedras na mão, esbravejando aos quatro ventos que essa sugestão melhor seria dada para quem professasse alguma religião cristã, que, para pacificar os ânimos dos fiéis, inventou que há vida depois desta. Com ele, não, não se criava este princípio. E não havia mesmo ninguém que o dissuadisse de suas excêntricas ideias, nem padres, nem pastores, nem espíritas, nem  seguidor de qualquer crença afro-brasileira.

Hadesiano, assim, ia vivendo como podia, vendendo pipoca no seu carrinho, na praça principal de um populoso bairro carioca. Tinha-se afastado dos pais porque não fora compreendido, questão de temperamento dele muito individualista.

Uma outra ideia que levava muito a sério era que jamais iria se casar. Casamento, nunca! Só pros que não pensavam o quanto era dura a vida de casado, com filhos e, depois, netos. Isso só lhe custaria dissabores, brigas em família, escândalos etc.

Os pais dele já se haviam acostumado com a decisão de sair de casa e morar sozinho, lá no centro, perto da Avenida Mem de Sá, num quitinetezinho que fazia parte de um velho prédio. Gostara sempre do centro do Rio, local ideal para ver muitas coisas de dia ou de noite. Seu lugar de trabalho, vendendo pipoca naquele bairro perto do centro, era-lhe  a menina dos olhos. Bem asseado em  tudo, a roupa de trabalho, o avental branco, o boné branco, a barba feita, o cabelo bem penteado. A pipoca feita na hora, quentinha, saborosa. O elogio dos clientes, sempre bem tratados, mas sem liberdades, nem sorriso encenado. Seu cabelo liso e escuro brilhava como se nele colocasse a brilhantina dos anos cinquenta e início de sessenta.

Tinha pouquíssimos conhecidos. Amigos, não, que não era de confiar em ninguém. Toda amizade lhe soava falsidade. Não acreditava em nada. Não tinha religião. Entretanto, sozinho, na hora de ir pra cama  de solteiro (presente de sua mãe), Hadesiano sonhava com espíritos maléficos que vinham do desconhecido querendo devorar-lhe as entranhas. Eram terríveis, parecendo animais medonhos com asas e sem face. Eram, contudo, tão reais no sonho que, ao acordar, seu coração batia tão forte e acelerado como se fosse explodir, tamanho era o medo que dele se apossava naquele instante de despertar de madrugada. Sentia, às vezes, um calafrio de meter medo em qalquer valentão.  Olhava para a sala semi-iluminada por um abajur, no entanto, não via ninguém. Eram sonhos mesmo, concluía aliviado.

Hadesiano, que não queria  morrer, um dia, foi encontrado sem vida, em  adiantado estado de decomposição. A porta do apertado quitinete tivera que ser arrombada pela polícia. Os vizinhos do prédio não o conheciam, apenas o viam entrando e saindo. Ele não gostava de falar com quem morava no mesmo prédio. Uma semana depois, o pai, lendo um jornal popular do dia, soube de sua morte. Já havia sido enterrado no Catumbi por um conhecido com quem se dava um pouco, morador de um prédio também velho, vizinho ao seu. Este conhecido atendeu a um pedido de Hadesiano. Uma mensagem escrita a tinta numa meia folha de papel A4, encontrada em cima de uma mesinha perto da cama. O conteúdo da mensagem era muito claro, escrito naquela letra dele bem desenhada e numa frase dizia tudo: “ Não avisem nada a ninguém, principalmente à minha família. 

Não deixava de ser bizarra esta sua disposição que valia como palavras de um testamento. Uma contradição, diria algum leitor. Hadesiano se declarava um ateu convicto, inabalado. Somente a vida pra ele tinha valor. Daí todo o seu medo de morrer, de evitar a morte por todos os lados. Cuidados extremos tinha ao andar pelas ruas, ao atravessar uma rua. Parecia que havia perigo em tudo ao seu redor. Não viajava para nenhum outro estado brasileiro com medo de morrer em acidente. Nisso coincidia com o jurista Rui Barbosa: “A morte nos cerca de todos os lados.” Hadesiano era um cara que não queria morrer, contudo, a morte o perseguiu até no próprio nome de batismo. Hadesiano era a própria morte.

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