domingo, 4 de dezembro de 2016

MORRE O POETA FERREIRA GULLAR

                                                                 "A arte existe porque a vida não basta."
                                                                            FERREIRA GULLAR



                                                    Cunha e Silva Filho


              Ninguém morre sozinho. Quem  morre mata também em parte  o coração dos que ficam. Este ano, pra mim,  foi um dos mais  sombrios, um dos mais doloridos, um dos mais sofridos. Agora mesmo, meu filho Francisco Neto, muito entristecido, consternado, me telefonou informando-me do falecimento  do imortal  poeta  nascido em São Luís, Maranhão. Agora mesmo também  me recordo do ano de 1968, ano em que  faleceu  outro grande poeta brasileiro, Manuel Bandeira (1886-1968). Este ano de 1968 está ainda associado à data do nascimento do meu filho mais velho, acima  referido.
           As minhas  primeiras  lembranças de Ferreira Gullar (1930-2016) remontam  aos anos, sobretudo,   de 1964 e 1965. Morava, então,  na CESB (Casa do Estudante Secundário do Brasil), situada no centro velho   do Rio de Janeiro.Sobre esse “lar querido,” já me reportei no meu livro de memórias,  Apenas memórias (2016). Contudo,  o que me prende a esta coluna de hoje  é o desaparecimento  do poeta  Gullar, o qual se mistura às primeiras  notícias de que tive naquele tempo  do poeta  do “Poema sujo”(1976). Meus colegas e amigos  moradores  da CESB me relatavam  a presença de Gullar  em palestras  e em  envolvimentos  políticos  contra a  ditadura  militar  recém-instalada  no país. Falava-se muito da militância ideológica   de Gullar  e falava-se também de sua poesia ainda não tão conhecida  por muita gente. Uma vez,  me convidaram para uma palestra de Gullar.Só algum tempo depois,  por volta do meu  tempo de universitário de Letras,  começava a me interessar   pela  poesia de Gullar.
       As ideias vão fluindo à medida que progredimos  no tempo  presente da escrita e me vem á tona  aquele  dia em que Gullar foi  fazer uma palestra  na Faculdade de Letras da UFRJ. O auditório estava apinhado. Durante a palestra,  Gullar leu  o poema “Filhos,”  uma cópia do qual foi  distribuída aos   presentes. Esse poema comento  num dos capítulos  do meu  citado  livro de memórias.
       É um  poema  enternecedor e ao mesmo  tempo    uma reflexão densa sobre o fluir do tempo  relacionado  com   o crescimento  dos filhos  do  poeta e,  por extensão,  de todos  os filhos  de pais  que  vivenciaram  situações  semelhantes. Veja-se a pungência, neste  poema, nos seguintes versos “(...) Só então/ me perguntei/por que/não lhes dera/maior atenção/se há tantos/e tantos ano/não os via crianças/já que//agora/estão os três/com mais/de trinta anos”. O poema em foco  foi dedicado ao filho  Marcos.O meu capítulo de memórias foi dedicado aos meus filhos Francisco Neto e Alexandre.
      A personalidade do poeta Ferreira  Gullar, nos últimos anos, conheceu  o prestígio de que   gozava  sobretudo como  poeta, de tal sorte  que o seu nome  está indissoluvelmente vinculado  às vanguardas da poesia brasileira,  primeiro  como   um  voz  que,por suas característica renovadoras temática e formalmente, prenunciava, com o segundo livro  Luta corporal (1954), que lhe granjeou  renome, o movimento do  Concretismo  de 1956 e, em seguida,  como  um  dos  introdutores da poesia  neo-concretista (1959) que foi a sua fase  de não aderência ostensiva  mais  ao Concretismo. Sua obra  de estreia em poesia chama-se  Um pouco acima do chão (1949).
    A poesia neo-concreta, para simplificar a sua  complexidade teórica,   voltava ao verso e ao poema   preocupado  com a subjetividade, com o discursivo, com a memória  pessoal,  o valor  atribuído ao verso  popular, ao cordel, não mais  preso  a elementos  objectualistas  do radicalismo  verbi-voco-visual concretista  do grupo  de São Paulo tendo à frente, entre   outros,  Haroldo de Campos(1929-2003),  Augusto de Campos e Décio Pignatari (1927-2012)
     A alta poesia, porejada de humanidade, suplantaria  não só  a poesia  passadista, mas os formalismos  derivados de uma  época sob  o signo da cibernética. Seria, grosso modo,   aquele lirismo  por que tanto  se batia  José Guilherme Merquior (1941-.1991) e que ele via estar presente na poesia de Manuel Bandeira.
   Ferreira Gullar ficará sempre lembrando  poeticamente pelo  livro Poema sujo que causou   repercussão  na história  de sua  produção  poética. Ficará também  marcado  pelo  papel saliente que teve nas pesquisas  sobre  o campo das artes  plásticas, do ensaísmo, com obras como Vanguarda e subdesenvolvimento (1969) e Cultura posta em questão:vanguarda e subdesenvolvimento (2002). Ficara  ainda conhecido por seus trabalhos no teatro, na televisão, no cinema, na literatura infantil.
    E, finalmente, por sua incansável produção  de cronista, gênero que me inspirou este meu artigo, principalmente a partir de sua   coluna  iniciada e terminada na Folha de São Paulo, caderno Ilustrada, aos domingos que,  por sinal,  tornou-se  para mim  leitura obrigatória acompanhando, desde o  início, os   seus  inúmeros artigos  repartindo-se   seus temas entre o  retrato do quotidiano  da vida,  com forte teor  poético,   os assuntos  sobre artes e poesia, quase beirando a ensaio  e aqueles dedicados a análises  da política  brasileira nos últimos  anos, com algumas incursões na  política mundial.
    Gullar sobre  este último  tópico foi  um  corajoso, independente e acerbo  crítico  do lulopetismo, da podridão de nossa política, sobretudo  a partir dos escândalos do Mensalão do Petrolão do desastroso governo Dilma, das revelações  feitas pela Operação Lava-Jato  e de outros  males do Brasil e da política  mundial.  
    Na juventude tendo sido  combatente da ditadura  militar, foi preso político viveu, por algum  tempo, exilado na Argentina,  no Chile e  na Rússia mas,  como  todo  homem sensato e evoluído,  embora tendo   pertencido ao  Partido  Comunista  Brasileiro. Com  o tempo foi  amadurecendo  sua visão  política e, nos últimos anos,    revelou-se  um  intelectual politicamente   ativo na imprensa, na crônica,   verberando   os erros  da comunismo,  da esquerda, os erros e  defeitos da direita,  das falhas  do capitalismo e  a constatação de tudo isso o levou a uma posição  equilibrada, conscienciosa,  de ver que tanto  a esquerda quanto a direita  possuem  deploráveis  falhas quanto praticadas com radicalismos.
    Penso que a sua  visão  política    atual  seria a   de um   escritor a quem  os regimes  de governos    valeriam a pena se considerassem a realidade social, econômica, histórica, política, libertando-se do fanatismo cego,  do farisaísmo e da hipocrisia  de um sociedade  com pretensões à   igualdade  completa  que só  caberia   nos sonhos malogrados da esquerda.     
   Tampouco para ele haveria  mais justiça  com uma direita  que tivesse somente por referência os lucros exorbitantes  e nefastos do capitalismo que, por assim dizer, provocam uma forma  de esquecimento  dos valores  humanos  e da liberdade   de expressão  em todos os setores da vida em sociedade. Sua primeira  crônica,  salvo engano meu,  tem o título de “Resmungos.” Sua penúltima crônica  publicada no  domingo  passado, na Folha de São Paulo,  com o título  em tom  profético, foi  “Trump: après moi, lei déluge.”  Sua última crônica (penso que seja a última que é publicada naquele jornal,  saída hoje, 4 de dezembro, tem por título “Solidariedade, ”  uma  crônica que reafirma as suas convicções  expostas na penúltima, quer dizer,  desaprova  a pretensão utópica do comunismo   como forma  de  melhorar a vida  das pessoas e torná-las  iguais e o capitalismo que espolia  as pessoas  e as torna mais  desiguais.
    Entretanto,   há um  meio termo  que,segundo ele,  evitaria as falhas  dos dois sistemas  de governo: um capitalismo  mais justo,  que saiba reconhecer  o bem-estar  da sociedade em suas diferenças  de aptidões  e de  possibilidades. O erro  grave é a procura do lucro  encravado no egoísmo  de uns poucos ou de uma só pessoa.
      É possível ser rico sem ser  egoísta e Gullar cita o nome de Bill Gates que deixou  a direção de seus negócios e passou a dirigir uma “entidade  beneficente.” Pode-se dizer que essa última crônica da sua coluna no caderno Ilustrada é um gran finale  de  sua  alta  capacidade  de síntese e acuidade   de escritor, de jornalista, de roteirista de televisão, de poeta, de cronista, de crítico das artes e de um ser humano  com  o pé no chão. Não sendo Gullar   religioso, ainda assim, termino este texto de homenagem pedindo a  Deus  que  o abençoe pelo período de  sua  existência  entre nós que amamos a poesia  e a literatura em geral.
    
           

3 comentários:

  1. Bela e singular crônica, como singular foi Gullar nos seus escritos. Gullar dizia que escrevia no susto ou seja a partir de um susto era disparada a sua poesia. Ferreira Gullar dizia não acreditar na vida após vida ( ou se quiser, morte ), fico então a pensar no grande susto que ele levará ao despertar no plano espiritual, rodeado de amigos que partiram antes do combinado; a partir deste susto então escreverá o seu primeiro poema sem o corpo físico. A partir daí estará intuindo os novos poetas nas suas poesias. Um grande abraço. Muita Paz! Marcio Fasano

    ResponderExcluir
  2. Estimado amigo Marcio Fazano, V. leu o meu texto e com muita perspicácia fez um certo paralelo, pelo menos, no aspecto da singularidade com o que pensa do meu texto e o do grande texto que foi a obra de Gullar. Fico muito feliz por ter mais um leitor criterioso como V. V. tem uma forma pessoal de expor sua visão sobre um assunto. Além disso, sabe aproveitar bem o que ler nos escritores. Esse é o leitor que eu e outros escritores andamos procurando: o leitor ideal, o leitor inteligente, que sabe valorizar um texto como também sabe ver no texto alguma ideia contrária ao que V. pensa sobre a vida, o mundo, as pessoas e as a cultura em geral. Um grande abraço do Cunha.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Não sou merecedor do seu "hiperbolismo" sobre minha maneira de pensar. Aproveito para dizer que esta crônica me deu, uma idéia muito interessante e completa sobre quem foi (e é) Gullar. Um abraço e muita paz. Marcio

      Excluir