sábado, 24 de dezembro de 2016

JOSÉ RIBAMAR GARCIA: O FICCIONISTA, A LINGUAGEM E UM PASSO ADIANTE









                                                  Cunha e Silva Filho


            É possível  um ficcionista, que entrou na casa dos setenta anos, ainda se sustentar ficcionalmente?  É, sim,  e José Ribamar Garcia não está sozinho na ficção brasileira contemporânea. Não vou citar  os autores porque  o leitor  aficionado de literatura  já sabe a quem me refiro.
          Pois é. O piauiense  Ribamar Garcia põe  à venda um novo  livro, Leveza, só da brisa (Rio de Janeiro: Litteris Editora,  2016, 127 p, capa de Teresa Akil.)  reunindo  contos e crônicas, posto que  a  ficha de catalogação o classifique no gênero de crônicas.
         Sem querer entrar em considerações   genológicas,  é evidente que,  a rigor,  a obra contém  crônicas e contos. São 27 textos  de extensão curta,  média e até curtíssima, como  é o único   exemplo “Fora dos eixos” (p.29)  escrita   em  meia página, mas  longe de ser uma excrescência se  lida com  a devida atenção. 
           No texto tudo faz sentido: tem personagens,  a maioria  animais,  dois humanos,  o primeiro apenas mencionado  de passagem, o segundo,  um  idoso mal completando  oitenta anos,  tem espaço,  tem diálogo   e uma  história  que  nos  provoca  uma  boa  gargalhada,  dado que  o tom  humorístico-burlesco  é bem  bolado soltando  faíscas  de ironias  desabridas  para um  tema   hoje quase tabu,  diante dos movimentos   de defesa  da causa gay.
        Ainda bem que o ancião, ao comentar o homossexualismo  da família,  ainda  brinca com  a sexualidade do cachorro.Tudo no microtexto  funciona, diga-se desta forma,  às avessas,  inclusive o relato minimalista   da antropofagia de animais  de espécies diferentes. Mas, outros temas ainda  se desentranham  no texto,  o do meio-ambiente, do desmatamento, violência. Tudo, no entanto,  relatado de uma perspectiva  histriônica.
        Ribamar Garcia,  autor de 12 obras literárias incluindo esta que ora comento, variadas em sua natureza, é um  ficcionista  e observador arguto  da alma humana, dos relacionamentos sociais e seus  inúmeros conflitos, dos dramas e tragédias brasileiros, sobretudo  enfocando  os extratos médios e baixos da pirâmide social,  em  obras  que  o tornaram  mais   visível aos leitores  e a uma parte da crítica literária,  como  o bem urdido romance  Filhos da mãe gentil (Litteris Editora,  2011).
       Dos textos inseridos  em Leveza,  só da brisa, pode-se inferir uma recorrente atmosfera  que permeia  suas obras, seus contos, suas crônicas, seus romances,  que é  a denúncia e a crítica social  contra  as mazelas  e os desatinos  a que são relegados  os humildes   em nossa sociedade.
      Observe-se, com atenção,  que, no título desse volume,  a vírgula empregada depois do lexema “leveza.”  é determinante  no significado geral  da obra. Tirasse a vírgula, e a intenção seria outra. Quero dizer,  com a vírgula    o seu peso  semântico  desvela a camada mais  profunda  da ficção do autor: a dureza de viver  num país  com  tantos  problemas para  serem resolvidos.
         Por isso, também, o lado meio solto, meio  desorganizado, meio  malandro, meio cínico, de uma   tipo de sociedade  que ainda não se  caracterizou  devidamente  em sua identidade e é o próprio  autor que,  num dos textos do livro falando de sua formação  intelectual, na crônica “Fora do contexto,”  declara sem vacilações nem  ufanismos  hipócritas: [...] “o brasileiro ainda  se encontra em formação, sobretudo com relação ao tipo físico e características  próprias.” (p.126).
        Merecem lugar sobranceiro  no volume  os contos,  além do mencionado   “Fora do eixo,” os seguintes  “Lero-lero no Galeto” (p.91-.97) e “A confidente” (p.111-113). Estes três contos, pelo que venho  há tempos  acompanhando as obras lançadas  pelo autor e, na maioria,  por mim  resenhadas  ou  analisadas, oferecem, do ponto de vista  da linguagem literária,  um passo à frente que já começara no livro Em preto e branco (Litteris Editora,1995, 1|ª edição e 1ª reimpressão em 2005), romance  construído  em  dois  planos  narrativos, o da história  narrada  e o do relato   paralelo conduzido pela mesma   voz narrativa comentando os acontecimentos  políticos da época da  ditadura  militar.  no país.
       “Lero-lero” se passa num espaço restrito, um restaurante, onde, um grupo de conhecidos ou amigos, se sentava a uma mesa após um dia de trabalho a fim de espairecer as caseiras   profissionais. O que mais chama a atenção da narrativa é o dado polifônico  em que  se passa  esse período  de conversas descontraídas, brincalhonas, fofoqueiras,   malandras,   farsescas  num clima de camaradagem, cuja tônica  era falar de si e dos outros em meio a pedidos  de   cervejas e  petiscos diversos.
        O que faz do conto “Lero-lero,” acima-citado, uma  pequena obra-prima é  o emprego do  recurso  do dialogismo ou polifonia, recurso, de resto,  que já encontramos  em Machado de Assis (1839-1908), no romance  Quincas Borba (1891). Esse recurso é claramente percebido pelo burburinho de vozes dos clientes que compunham o grupo em mesa  de  bar, segundo já referi, com seus intervalados ou simultâneos pedidos  ao garçom. A narrativa tem um ritmo frenético, reproduzindo  as conversas  entre  os amigos nas quais não  faltavam  alguns palavrões para apimentar ainda mais  o  ambiente  carnavalizado do restaurante.   A  narrativa    se desenvolve  com longas   falas de personagens   iniciadas  por travessão.Creio que seja  uma estratégia nova  nas narrativas  de Ribamar Garcia..
       O todo da narrativa se torna, assim,   compacto,  uma  bem  elaborada reprodução  artística de como  se faz habilidoso  o autor  para  dar vozes   na babel de tantas falas e contrafalas.. Por sinal,  no conto há uma referência sintomática a essa multiplicidade de vozes proferidas  simultaneamente, sinalizada  pelo sintagma “confusão-polifônica” (p. 91.) O conto faz parte das inúmeras  narrativas de Ribamar Garcia  na quais as histórias acontecem  no Rio de Janeiro, enquanto  outras  ocorrem  em Teresina,  no Piauí, tanto nas áreas urbanas quanto  na periferia dessas cidades.
      No conto “A confidente,” temos uma história estruturada  em duas camadas  narrativas: uma  se desenvolve num diálogo com travessões em que um homem e uma mulher, sem serem nomeados,   conversam  sobre um  possível  início  de namoro. Ela  terminara um  noivado. Ele, que  alega ter uma namorada,   lhe reforça  que a deixou. Todavia, ela só lhe daria alguma chance de relacionamento amoroso quando ele desse por concluído  o namoro.
      Na segunda camada narrativa, duas amigas, uma delas aquela  que  inicia a narrativa  falando com o possível  namorado,  faz suas confidências a uma amiga, que também não vem  nomeada,  sobre o comportamento  do  rapaz interessado nela.Faz um resumo do que  se passa na vida dele, da  ida a um motel.  Informa que ele vive com mãe em Jacarepaguá, (subúrbio da Zona Oeste  do Rio de Janeiro),  e que  tem uma filha da relação com a ex-namorada. Enfim, ela está encantada com as qualidades do futuro namorado, rapaz simples,   gentil,  bom de cama, ou seja,  tudo aquilo que era o reverso do ex-noivo.,
      A história se desenrola, assim, alternando diálogos dos dois  presumíveis jovens  que se preparam para um  namoro  e o relato  da futura  namorada  reportado  com  detalhes  para a amiga.O único nome revelado, Daniel,  é o do ex-noivo da futura  namorada
    Tal recurso  lembra o chamado corte  de cenas de um filme moderno ou de alguns ficcionistas contemporâneos. A narrativa é simples, mas  possui  essas duas formas  de  relato. Os vazios de enunciação e enunciado que aí ocorrem  ficam  para serem  preenchidos  pela imaginação do leitor, tal  são paradigmas os contos”Sovina, brochante e...”(p.67-70) e, de alguma forma,  o escatológico conto “A potiguar  porreta”(p.71-74).
      Nos demais   contos  do volume,   há um caleidoscópio de temas  implicados. O amor  poetizado  no conto  “A leveza da brisa”(p.11-13), o primeiro do livro, narrativa em que o amor  passageiro   e delicado  compete com  o amor  à magia  e beleza do rio, que,  pelas indicações  de pontos da cidade, seria  o  Parnaíba e a cidade,  Parnaíba,  no Piauí, cidade litorânea, possivelmente no início dos anos sessenta do século passado, a se ver pela  alusão ao filme  “Suave é a noite.” Neste conto, não existem  nomeações de personagens. Continuam os gaps  enuciativos a serem completados pelo   leitor.
      No segundo conto, “O batismo” (p.15-16), um pastor  leva  alguns fiéis até ao Rio Poti,  um dos  dois rios  que banham  Teresina,   a realizarem  uma batismo nas águas do famoso  rio.Entretanto, ao  desincumbir-se de seu ofício à moda do profeta  João Batista, surge um  “cachaceiro” diante do pastor   que, por sua vez, o chama para  o ato do batismo. É aí que, no desfecho,  a história,  se torna hilariante.
        Ao mergulhar a cabeça do cachaceiro, o pastor lhe perguntou se ele tinha visto  Jesus. O bêbado lhe responde que não. O ato de mergulhar  o cachaceiro se repetiu outras vezes cada vez mais demorando  no mergulho. Foi, então, que o pastor  lhe perguntou se vira Jesus. Ao que o  vagabundo lhe  retrucou, já não suportando  o aumento do tempo do mergulho: “O senhor tem certeza que  ele afundou  aqui?”(p.16).
       Ribamar Garcia  é um ficcionista cuja temática   tem como recorrentes algumas  questões polêmicas  do cotidiano contemporâneo, além daquelas do  domínio  sentimental: ou de natureza psicológica. o amor, a amizade, a traição, o erotismo, o burlesco,  a frustração  amorosa, entre outras.
      A par disso,   tematiza  a vigarice, conto “O prêmio”. (p.27); o papel do  colecionador, conto “Relíquia”(p.32); com  final  imprevisível  e humor  negro; violência urbana,  conto “No morro da praia brava”(p.41-44). Neste conto,   o autor   me parece que, pela primeira vez  em sua  ficção,  atualiza mais um recurso narrativo  à maneira de outros  ficcionistas  de hoje,  mediante a inserção, sem travessão ou aspas   da  fala de personagens. Igual recurso  reaparece em outros  contos do livro.
     Dando sequência ao temas,  vemos o preconceito social, conto.”Na toada do antes”.” (p.49-51), um dos bons  textos  do livro; a carnavalização de um personagem, conto  “O coronel”(p. 53-56), talvez um dentre os melhores  contos da obra, lembrando algo  da ficção  de Fernando Sabino (1923-2004) pelo lado do  humor;  tráfico, sexo, violência e tragédia, conto “Que nem galo.”(p.57-61); violência no trânsito, conto  “O diabo  louro”. (p.63-65); crítica à precariedade do serviço público, conto “O doutor”. (p.75-78); uma visão microscópica  da corrupção  nas empresas, conto “Dona Sônia e a clínica”.(p.85-90); a “flânerie” na urbe carioca, e bem assim a corrupção policial de mãos dadas com a violência independente da hierarquia   militar ou civil,   conto  “Viessem os abutres” (p.99-105), notável narrativa pela dimensão cultural-literária  focando  um dia de um  personagem-narrador, um jornalista, situando-o nas suas peripécias  desde a hora  em que acorda “com humor revirado;”
      Por último, cabe uma referência a uma bem  composta    crônica “De Madeiro à Boca do Forno.” (p.119-122) que combina  uma  crítica à politicagem  populista e um recorte memorialístico, numa experiência  de viagens pelo  interior piauiense repassada de  saudade  e de lembranças tristes, como a daquela  menina de treze anos,  prima do autor, que quase  foi vítima  de uma tragédia em decorrência de uma descarga de um  fio elétrico que caíra de um poste  e no qual a menina  tropeçou ao passar com  um bebê no colo.
     Ribamar Garcia, com mais  esta  nova obra entregue ao público  e aos leitores  de suas obras,  sai fortalecido  como  escritor de ficção, sobretudo  porque soube, ao  longo dos anos,  seguir   uma receita que, a meu ver,   pode ser posta em prática  por todos os autores que escrevem  com responsabilidade:  a de que somente pode produzir bem e melhor  aquele  que domina a  técnica da arte narrativa.
      Tem  vasta experiência dos homens e da  vida, da história do seu povo  e do gosto  pelo que faz  criando, pelo talento, personagens, situações dramáticas ou não, vidas humanas  que nos levam   à emoção do prazer estético, ao choro, ao riso, à indignação    e  a refletir profundamente sobre os  mais diversos   problemas  enfrentados  pelo espírito  dos homens  na Terra, notadamente na diversificada  sociedade brasileira.      
     
      
     
             

Nenhum comentário:

Postar um comentário