Cunha e
Silva Filho
É possível um ficcionista, que entrou na casa dos setenta
anos, ainda se sustentar ficcionalmente?
É, sim, e José Ribamar Garcia não
está sozinho na ficção brasileira contemporânea. Não vou citar os autores porque o leitor
aficionado de literatura já sabe
a quem me refiro.
Pois é. O piauiense Ribamar Garcia põe à venda um novo livro, Leveza,
só da brisa (Rio de Janeiro: Litteris
Editora, 2016, 127 p, capa de Teresa Akil.) reunindo
contos e crônicas, posto que a ficha de catalogação o classifique no gênero de crônicas.
Sem querer entrar em considerações genológicas,
é evidente que, a rigor, a obra contém
crônicas e contos. São 27 textos
de extensão curta, média e até
curtíssima, como é o único exemplo “Fora dos eixos” (p.29) escrita em
meia página, mas longe de ser uma
excrescência se lida com a devida atenção.
No texto tudo faz sentido: tem
personagens, a maioria animais,
dois humanos, o primeiro apenas
mencionado de passagem, o segundo, um
idoso mal completando oitenta
anos, tem espaço, tem diálogo e uma
história que nos
provoca uma boa gargalhada, dado que
o tom humorístico-burlesco é
bem bolado soltando faíscas
de ironias desabridas para um tema
hoje quase tabu, diante dos
movimentos de defesa da causa gay.
Ainda bem que o ancião, ao comentar o
homossexualismo da família, ainda
brinca com a sexualidade do cachorro.Tudo
no microtexto funciona, diga-se desta
forma, às avessas, inclusive o relato minimalista da antropofagia de animais de espécies diferentes. Mas, outros temas
ainda se desentranham no texto,
o do meio-ambiente, do desmatamento, violência. Tudo, no entanto, relatado de uma perspectiva histriônica.
Ribamar Garcia, autor de 12 obras literárias incluindo esta
que ora comento, variadas em sua natureza, é um
ficcionista e observador arguto da alma humana, dos relacionamentos sociais e
seus inúmeros conflitos, dos dramas e
tragédias brasileiros, sobretudo
enfocando os extratos médios e
baixos da pirâmide social, em obras
que o tornaram mais
visível aos leitores e a uma
parte da crítica literária, como o bem urdido romance Filhos
da mãe gentil (Litteris Editora,
2011).
Dos textos inseridos em Leveza, só da brisa, pode-se inferir uma
recorrente atmosfera que permeia suas obras, seus contos, suas crônicas, seus
romances, que é a denúncia e a crítica
social contra as mazelas
e os desatinos a que são
relegados os humildes em nossa sociedade.
Observe-se, com atenção, que, no título desse volume, a vírgula empregada depois do lexema
“leveza.” é determinante no significado geral da obra. Tirasse a vírgula, e a intenção
seria outra. Quero dizer, com a
vírgula o seu peso semântico
desvela a camada mais
profunda da ficção do autor: a
dureza de viver num país com
tantos problemas para serem resolvidos.
Por isso, também, o lado meio solto, meio desorganizado, meio malandro, meio cínico, de uma tipo de sociedade que ainda não se caracterizou
devidamente em sua identidade e é
o próprio autor que, num dos textos do livro falando de sua formação intelectual, na crônica “Fora do
contexto,” declara sem vacilações
nem ufanismos hipócritas: [...] “o brasileiro ainda se encontra em formação, sobretudo com
relação ao tipo físico e características
próprias.” (p.126).
Merecem lugar sobranceiro no volume
os contos, além do
mencionado “Fora do eixo,” os seguintes
“Lero-lero no Galeto” (p.91-.97) e “A
confidente” (p.111-113). Estes três contos, pelo que venho há tempos
acompanhando as obras lançadas
pelo autor e, na maioria, por mim
resenhadas ou analisadas, oferecem, do ponto de vista da linguagem literária, um passo à frente que já começara no livro Em preto e branco (Litteris Editora,1995,
1|ª edição e 1ª reimpressão em 2005), romance
construído em dois
planos narrativos, o da
história narrada e o do relato paralelo conduzido pela mesma voz narrativa comentando os acontecimentos
políticos da época da ditadura
militar. no país.
“Lero-lero” se passa num espaço restrito, um restaurante, onde, um grupo
de conhecidos ou amigos, se sentava a uma mesa após um dia de trabalho a fim de
espairecer as caseiras profissionais. O
que mais chama a atenção da narrativa é o dado polifônico em que
se passa esse período de conversas descontraídas, brincalhonas, fofoqueiras, malandras,
farsescas num clima de camaradagem, cuja tônica era falar de si e dos outros em meio a
pedidos de cervejas e
petiscos diversos.
O que faz do conto “Lero-lero,” acima-citado, uma
pequena obra-prima é o emprego
do recurso do dialogismo ou polifonia, recurso, de resto, que já encontramos em Machado de Assis (1839-1908), no romance Quincas
Borba (1891). Esse recurso é claramente
percebido pelo burburinho de vozes dos clientes que compunham o grupo em mesa de bar, segundo já referi, com seus intervalados ou simultâneos pedidos ao garçom. A narrativa tem um ritmo
frenético, reproduzindo as
conversas entre os amigos nas quais não faltavam
alguns palavrões para apimentar ainda mais o
ambiente carnavalizado do
restaurante. A narrativa se desenvolve com longas falas de
personagens iniciadas
por travessão.Creio que seja uma estratégia nova nas narrativas de Ribamar Garcia..
O
todo da narrativa se torna, assim,
compacto, uma bem
elaborada reprodução artística de
como se faz habilidoso o autor
para dar vozes na babel de tantas falas e contrafalas..
Por sinal, no conto há uma referência
sintomática a essa multiplicidade de vozes proferidas simultaneamente, sinalizada pelo sintagma “confusão-polifônica” (p. 91.) O
conto faz parte das inúmeras narrativas
de Ribamar Garcia na quais as histórias
acontecem no Rio de Janeiro,
enquanto outras ocorrem
em Teresina, no Piauí, tanto nas
áreas urbanas quanto na periferia dessas
cidades.
No conto “A confidente,” temos uma
história estruturada em duas
camadas narrativas: uma se desenvolve num diálogo com travessões em
que um homem e uma mulher, sem serem nomeados,
conversam sobre um possível
início de namoro. Ela terminara um
noivado. Ele, que alega ter uma
namorada, lhe reforça que a deixou. Todavia, ela só lhe daria
alguma chance de relacionamento amoroso quando ele desse por concluído o namoro.
Na segunda camada narrativa, duas amigas,
uma delas aquela que inicia a narrativa falando com o possível namorado,
faz suas confidências a uma amiga, que também não vem nomeada,
sobre o comportamento do rapaz interessado nela.Faz um resumo do
que se passa na vida dele, da ida a um motel. Informa que ele vive com mãe em Jacarepaguá, (subúrbio
da Zona Oeste do Rio de Janeiro), e que
tem uma filha da relação com a ex-namorada. Enfim, ela está encantada com
as qualidades do futuro namorado, rapaz simples, gentil,
bom de cama, ou seja, tudo aquilo
que era o reverso do ex-noivo.,
A história se desenrola, assim, alternando
diálogos dos dois presumíveis jovens que se preparam
para um namoro e o relato
da futura namorada reportado
com detalhes para a amiga.O único nome revelado,
Daniel, é o do ex-noivo da futura namorada
Tal recurso lembra o chamado corte de cenas de um filme moderno ou de alguns ficcionistas
contemporâneos. A narrativa é simples, mas
possui essas duas formas de relato. Os vazios de enunciação e enunciado
que aí ocorrem ficam para serem
preenchidos pela imaginação do
leitor, tal são paradigmas os
contos”Sovina, brochante e...”(p.67-70) e, de alguma forma, o escatológico conto “A potiguar porreta”(p.71-74).
Nos demais contos
do volume, há um caleidoscópio
de temas implicados. O amor poetizado
no conto “A leveza da brisa”(p.11-13),
o primeiro do livro, narrativa em que o amor
passageiro e delicado compete com
o amor à magia e beleza do rio, que, pelas indicações de pontos da cidade, seria o Parnaíba e a cidade, Parnaíba, no Piauí, cidade litorânea, possivelmente
no início dos anos sessenta do século passado, a se ver pela alusão ao filme “Suave é a noite.” Neste conto, não existem nomeações de personagens. Continuam os gaps enuciativos
a serem completados pelo leitor.
No segundo conto, “O batismo”
(p.15-16), um pastor leva alguns fiéis até ao Rio Poti, um dos
dois rios que banham Teresina,
a realizarem uma batismo nas
águas do famoso rio.Entretanto, ao desincumbir-se de seu ofício à moda do
profeta João Batista, surge um “cachaceiro” diante do pastor que, por sua vez, o chama para o ato do batismo. É aí que, no desfecho, a história,
se torna hilariante.
Ao mergulhar a cabeça do cachaceiro,
o pastor lhe perguntou se ele tinha visto Jesus. O bêbado lhe responde que não. O ato
de mergulhar o cachaceiro se repetiu
outras vezes cada vez mais demorando no
mergulho. Foi, então, que o pastor lhe
perguntou se vira Jesus. Ao que o
vagabundo lhe retrucou, já não
suportando o aumento do tempo do
mergulho: “O senhor tem certeza que ele afundou aqui?”(p.16).
Ribamar Garcia é um ficcionista cuja temática tem como recorrentes algumas questões polêmicas do cotidiano contemporâneo, além daquelas do domínio
sentimental: ou de natureza psicológica. o amor, a amizade, a traição, o erotismo, o burlesco, a frustração
amorosa, entre outras.
A par disso,
tematiza a vigarice, conto “O
prêmio”. (p.27); o papel do colecionador, conto “Relíquia”(p.32); com final
imprevisível e humor negro; violência urbana, conto “No morro da praia brava”(p.41-44).
Neste conto, o autor me parece que, pela primeira vez em sua
ficção, atualiza mais um recurso narrativo
à maneira de outros
ficcionistas de hoje, mediante a inserção, sem travessão ou aspas da fala de personagens. Igual recurso reaparece em outros contos do livro.
Dando sequência ao temas, vemos o preconceito social, conto.”Na toada
do antes”.” (p.49-51), um dos bons
textos do livro; a carnavalização
de um personagem, conto “O coronel”(p. 53-56),
talvez um dentre os melhores contos da obra,
lembrando algo da ficção
de Fernando Sabino (1923-2004) pelo lado do humor; tráfico, sexo,
violência e tragédia, conto “Que nem galo.”(p.57-61); violência no trânsito,
conto “O diabo louro”. (p.63-65); crítica à precariedade do
serviço público, conto “O doutor”. (p.75-78); uma visão microscópica da corrupção
nas empresas, conto “Dona Sônia e a clínica”.(p.85-90); a “flânerie” na
urbe carioca, e bem assim a corrupção policial de mãos dadas com a violência
independente da hierarquia militar ou
civil, conto “Viessem
os abutres” (p.99-105), notável narrativa pela dimensão cultural-literária focando
um dia de um personagem-narrador,
um jornalista, situando-o nas suas peripécias desde a hora
em que acorda “com humor revirado;”
Por último, cabe uma referência a uma bem composta
crônica “De Madeiro à Boca do Forno.” (p.119-122) que combina uma crítica
à politicagem populista e um recorte
memorialístico, numa experiência de
viagens pelo interior piauiense repassada
de saudade e de lembranças tristes, como a daquela menina de treze anos, prima do autor, que quase foi vítima de uma tragédia em decorrência de uma
descarga de um fio elétrico que caíra de
um poste e no qual a menina tropeçou ao passar com um bebê no colo.
Ribamar
Garcia, com mais esta nova obra entregue ao público e aos leitores de suas obras, sai fortalecido como
escritor de ficção, sobretudo porque
soube, ao longo dos anos, seguir
uma receita que, a meu ver, pode ser posta em prática por todos os autores que escrevem com responsabilidade: a de que somente pode produzir bem e
melhor aquele que domina a
técnica da arte narrativa.
Tem vasta experiência dos homens e da vida, da história do seu povo e do gosto
pelo que faz criando, pelo
talento, personagens, situações dramáticas ou não, vidas humanas que nos levam à
emoção do prazer estético, ao choro, ao riso, à indignação e a refletir
profundamente sobre os mais
diversos problemas enfrentados
pelo espírito dos homens na Terra, notadamente na diversificada sociedade brasileira.
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