Cunha e Silva Filho
O ano de 1965, que foi
decisivo para (1) os meus estudos
preparatórios e autodidáticos com o objetivo
de entrar para a universidade, me leva a falar de um
encontro com alguém que
iria ter um
sentido intenso e definitivo na minha vida afetiva e amorosa.
Estava eu sentado numa das mesas da Biblioteca “Castro Alves,” de frente para a entrada, ao lado da
qual ficava o balcão de informações com as suas
funcionárias prontas a atenderem
aos usuários daquele
ambiente cercado de livros, com um acervo rico nas
áreas de literatura e de
línguas, além de obras de referência, quando de repente percebi que uma mocinha magrinha, de olhos
quase verdes, de estatura
baixa, pele morena, vestida discretamente numa
saia meio comprida com uma blusa de tecido leve e também discreto por dentro, sentou-se
à minha frente, com um sorriso que não mais esqueceria. Me perguntou sem rodeios,
o que estudava, de onde era, e outras perguntas que não me vêm mais à mente
após tantos anos:
“Você é do Piauí?” “Sim,” respondi-lhe
com um sorriso largo e com certo ar de surpresa.
“Sim,
sou de Teresina, estou me preparando
para o vestibular de letras.”
“Ah,
vai fazer letras, por que não faz
outro curso, mais adequado para
homens, como química, matemática,
engenharia, medicina? No curso de letras só há mais mulher.”
Lhe disse
que tinha vindo para o Rio fazer medicina, mas larguei dessa ideia e resolvi fazer letras, pois me sentia atraído para os estudos literários. Ela, então, me cortando a conversa, me falou que estudava química na Nacional de Filosofia.
“Que bom!, ” acrescentei.
Seu nome, Elza, Veio do Piauí, de Teresina e, a princípio, pensara fazer
enfermagem na Ana Néri. Foi, então, que lhe indaguei:
“Se você morava em Teresina, deve
ter estudado lá e deve ter conhecido o
meu pai, o professor Cunha e Silva."
“Francisco, que coincidência, seu pai
foi meu professor na Escola Normal “Antonino Freire!”
A conversa foi crescendo e se
tornando cada vez mais interessante. Notei que a jovem dava
mostras de que sentia uma
atração mais forte por mim. Não
nego que me agradou muito aquele encontro por acaso. Da
biblioteca, saímos praticamente namorando.Foi um namoro
fulminante. Parecia que éramos conhecidos
de longa data
Soube depois por Elza que ela já me
havia visto cerca de um ano atrás, sem que eu percebesse.
Me contou que, uma vez, sentada a um dos bancos de concreto, uma espécie de pequeno largo, junto do prédio da Casa d’Italia e que dava para a Avenida Antônio Carlos, de repente viu passar um jovem, seguramente
indo em direção ao Calabouço.
Ela
conversava com uma colega da
Nacional de Filosofia e,
dirigindo-se à colega, fez a seguinte observação:
.“Que rapaz lindo
não é? Ainda vou namorar com ele.”
Este rapaz era eu e, no dia
que casualmente foi à Biblioteca “Castro Alves,” acompanhada de uma colega, se
aproximou de mim porque, conforme acentuei acima, já me tinha visto há meses, e nunca mais me tinha visto
desde aquela primeira vez
que estava sentada num banco ao lado do edifício da Faculdade Nacional de Filosofia.
Suponho que
o meu sumiço se deveu a meros
desencontros de horários de minhas idas ao Calabouço, ou, quem sabe, o nosso encontro
real já estava traçado pela mão
da fortuna...
Páginas atrás, mencionei o nome do Weyden, um primo meu, irmão do Wellington e do Norberto, todos
tinham vindo para o Rio à procura de emprego.O último veio primeiro e foi morar provisoriamente na casa de uma tia avó, a tia Chiquinha,
do lado materno.
Norberto,
depois de alguns empregos mais modestos,
entrou como praça da Polícia Militar do Rio de Janeiro. Casou-se
com a Licinha, uma moça que morava e ainda mora no bairro de Oswaldo Cruz. Teve
dois filhos, um deles falecido precocemente. Hoje, Norberto
está aposentado como oficial da Polícia Militar. Tem uma filha médica e dois netos. É um apaixonado pelo Piauí.
O Wellington, trabalhava no
Laboratório Silva Araújo, no
escritório da Avenida Beira-Mar. O emprego fora arranjado pela minha irmã Nélia, de que já
falei nestas recordações. Depois, regressou
a Teresina, tornou-se
escrivão da Polícia Civil,
constituiu família e ainda mora em Teresina.
Tia Chiquinha
morava também em Oswaldo Cruz no tempo
em que vim para o Rio.Wellington, por
pouco tempo, morou também com
essa tia, uma velhinha bonita, de pele muito branca, alvinha, como
se diz no Piauí. Ela acolhia sempre os sobrinhos da irmã, a tia Lolosa,
apelido afetivo pelo qual atendia a mãe
desses primos. Quando cheguei ao Rio, o marido dela ainda era vivo. O casal teve muitos filhos. Me parece que um só está vivo, o Jurandyr, conhecido como Jura. que é solteirão.Tia Chiqinha morava de aluguel. Quando o casal residia no Piauí, vivia bem e confortavelmente, mas, no Rio, sobretudo após a morte do marido, tia Chiquinha teve seu padrão de vida reduzido.
Lolosa, cujo nome verdadeiro era Aurora
Teixeira e Silva, foi, na
mocidade, uma mulher
bonita, que conquistou de imediato o coração do meu tio Luizinho e com ele se casou. Mais tarde, modificou
o sobrenome para Aurora Cunha e Silva, omitindo o sobrenome “Teixeira,” que, se não erro, herdara da parte do pai. Professora primária diplomada, ficou
bem conhecida e conceituada por suas qualidades de professora em Amarante e Teresina. Inteligente como era,
tinha facilidade para
escrever e tinha um espírito elevado.
Foi uma grande mãe. Morava em
Teresina, teve dez filhos, dois deles já
falecidos. Tio Luizinho, cujo nome por extenso
era Luís Cunha e Silva, era irmão
de meu pai, o mais novo de três irmãos. Era escrivão de polícia e, por algum tempo, saindo de Teresina, foi
ser delegado em Palmeirais,
município do Piauí.
Tio Luizinho era um homem
muito inteligente, lido, não obstante
não ter-se formado em curso superior,
assim como o tio Enoch, sobre quem adiante me reportarei. Sabia escrever com correção, inclusive por vezes
publicava algum artigo em jornal de Teresina. Amava ouvir o rádio,
sobretudo as estações do Rio de Janeiro
da época.Tinha uns olhos azuis profundos. Ao deixar Teresina, fui me
despedir dele. Se emocionou muito e me desejou
sucessos. Morreu ainda moço. Na
época escrevi para tia Lolosa um carta
de pêsames e de consolo. Ela ficou muito
feliz pelo meu gesto, de vez que a carta relembrava a figura dele, não em
termos formais, mas como um ente
amado e querido pela família e amigos.
Havia outro
tio meu, o mais velho, irmão de meu pai, e de tio Luizinho, o Enoch Cunha e Silva, homem de estatura baixa, tinha
olhos verdes. Foi ele quem cuidou dos negócios de meu avô após o
falecimento dele. Porem, ao que
todo indica, não tinha muito tino para os negócios, o comércio, assim como meu pai e tio
Luizinho.
Pessoa humana, calma, foi, por mais de uma vez, prefeito de Amarante e, pelo resto da
vida, foi fiscal de renda. Pessoa discreta,
honesta, de princípios
firmes. Casou-se com uma mulher
notável pelo valor humano, a tia
Maricô, uma mulher santa, que só
enxergava nos outros bondade. Tinha
belos olhos verdes e deveria ter sido
bela quanto jovem.
O casal teve três filhas:
a Dioneia, a mais velha, a
Valdineia e a Maria Nilza, a mais nova e a mais bela das três, falecida ainda moça. Maria
Nilza era professora, assim como
o é Valdineia, agora aposentada e a única sobrevivente das três. Valdineia e Maria Nilza se tornaram professoras primárias.Quando adolescente, sentia-me enamorado de Maria Nilza, talvez por sua beleza, sua doçura, sua feminilidade. Era mais velha do que eu.
Todas
nasceram com olhos verdes, belíssimos.
Tio Enoch ainda teve dois filhos: o Valdo e o Netinho. Não me lembro se o Valdo tinha
olhos verdes, contudo, é possível
que fossem. verdes. O primeiro nasceu com um problema
de nervos. Ficara interno no Meduna, hospital psiquiátrico, em Teresina dirigido pelo Dr. Clidenor de Freitas Santos, que pertenceu à Academia Piauiense de Letras e era homem ilustrado. Uma
vez, fui visitar o Valdo com a minha prima, Maria Nilza, sempre linda. Netinho possuía olhos muito azuis, tinha ótima aparência, e um palestra fascinante. Era um cronista ambulante de Amarante, sabia tudo sobre a sua época, o passado de Amarante, a vida da política do município, a vida íntima das pessoas. Era um arquivo vivo de informações sobre a sociedade de Amarante.
Na minha infância e até no princípio da
adolescência, tio Enoch, quando vinha a Teresina,
sempre visitava meu pai. Conversavam por
horas. Se davam muito bem. Sua chegada à minha casa era sempre aguardada com
ansiedade e tinha um motivo maior
que fazia a alegria da criançada.
Sempre ao se despedir, abria a carteira e dela tirava uma boa
quantia em dinheiro, segundo ele,
para repartir entre nós. Quanta alegria para nós!
Meu
pai e seus irmãos nasceram em berço de
ouro, em Amarante, onde meu avô era
comerciante de peso e um homem
respeitado por todos. Segundo me contou meu pai, o meu avô
Manuel Alexandre e Silva, hoje
nome de rua em Amarante, era de estatura
baixa, tinha olhos azuis, uma
aparência solene num rosto bonito
com uma bela cabeleira. Foi assim que o vi
numa foto de família, ao lado
de vovó Candinha.
Papai
me dizia que meu avô foi um pai extremoso. Gostava de tomar banho no rio Parnaíba, à noite, num
tempo que me dá inveja. Vovó Candinha,
ou melhor, Cândida da Cunha e Silva. Foi a única avó que conheci ainda viva. Tinha
eu três anos e estava perto de sair de
Amarante, porquanto meus pais foram
residir em Teresina.
Em
Teresinha, muito velhinha, já prestes a se despedir desse “vale de lágrimas, a sua figura vem à
minha lembrança como algo
esfumado, com alguém que não tive o prazer
mais intenso de beijar a fronte
querida, os cabelos branquinhos, a
voz carinhosa, cheia de cuidados comigo,
conforme eu narrei em parte numa crônica do meu livro As ideia no tempo. (1)Papai me
contou que era descendente de
cearenses. Subiu ao Céu bem
idosa. Me vem, agora, à mente a tarja
preta colocada numa das mangas do paletó de meu pai, em sinal de luto. Eu
era menino. Morava na Rua 24
de Janeiro, centro de Teresina.
O Weyden era o mais próximo
amigo meu. Companheiro das aventurosas romântico-amorosas nas noites de Teresina,
cujo epicentro era o adro e os fundos da Igreja de São Benedito e de lá o dom-juanismo adolescente
partia para outras partes da cidade, Cada um com uma
mocinha cheia de amor para dar,
ainda que fosse por uma noite só.
Éramos como dois irmãos, primos pelo lado materno e paterno.
Weyden gostava de cantar em inglês ou
cantar canções de conhecidos artistas da época, todos praticamente do Rio de Janeiro ou São Paulo.Tinha bossa
também para fazer a gente rir das piadas que sabia tanto contar, me matando de rir, fora as imitações
que fazia de figuras diversas. Era danado para encontrar os defeitos físicos dos outros
e com esta matéria, na minha companhia,
fazíamos as traquinagens,
provocando, ocultos pelas janelas ou portas semi-abertas, quem
passasse por acaso pela rua.
Morria de rir de suas brincadeiras e
sátiras.
Outro hábito que tinha era falar em inglês comigo por onde passássemos – um forma de esnobismo
ingênuo de adolescentes sem
rebeldia.Mesmo no Rio, quando estávamos
juntos, falávamos em inglês diante dos
balcões de bares do Catete, bairro da Zona Sul do Rio. Os garçons, ignorantes,
se entreolhavam embasbacados. Dizia o Weyden que era para passarmos por gringos, tirando onda com
as pessoas que se
encontravam perto de nós. Ele
não tinha tanta fluência, mas dava para se safar porque era inteligente e
espirituoso.
No Rio de Janeiro, morando por pouco tempo
na casa de tia Chiquinha, Weyden, por
algum tempo, continuou com a nossa amizade. Depois, tomou rumo sozinho,
foi morar na Glória, Rua Benjamim
Constant, zona sul, bairro bem peerto do Centro do Rio. arranjou emprego e nossos encontros foram se rareando. Weyden é inteligente, tem boa voz e sempre
esteve ligado à atividade de rádio. Tornou-se radialista,
creio, primeiro em Goiânia, onde morou, depois que deixou o Rio de
Janeiro e, de volta a Teresina,
firmou-se como um conhecido radialista e homem relacionado com a imprensa local.
Desde
adolescente, demonstrara ter vocação para o rádio. Uma vez, acompanhando, em campanha política o meu pai, candidatos a cargos políticos e eu, numa cidadezinha do
interior do Piauí, subiu a um improvisado palco
sobre um caminhão e
discursou para os ouvintes que se aglomeravam diante do carro.
Discursou, primeiro, meu pai e, em seguida, usaram da palavra outros oradores. Ocorreu, na ocasião, um fato pitoresco. Meu pai me pediu que usasse também da palavra Não
aceitei, alegando ser tímido,
encabulado. “O que eu tinha para falar? Nada,” pensei comigo. Me deixaram de lado, uma vez que da minha “oratória” não iria sair
nada, nem que invocássemos o talento do grande Demóstenes. Não tinha assunto nem interesse em dirigir
algumas palavras de agradecimentos aos que
estavam formando uma pequena
assistência. Entretanto, compensei minha timidez participando de um
baile de interior, com dança, forró e
tudo. O bom foi que havia ali moças bonitas
para um breve namoro de uma única noite.(Continua)
NOTA:
(1) A partir deste parte, deixaremos de empregar a forma coloquial "pra"" e derivados substituindo-os pelas equivalentes formas de linguagem culta. Revisaremos, neste caso, todos os textos precedentes de Apenas memórias. O emprego, entretanto, daquelas contrações limitar-se-á a enunciados em discurso direto.