segunda-feira, 25 de março de 2013

Uma ida ao Centro do Rio de Janeiro



Cunha e Silva Filho



Agora que tenho um pouquinho de tempo mais, de quando em quando, vou ao velho Centro da Cidade Maravilhosa. Uma vez, meu pai, em carta pra mim, desabafou com essa afirmação: “.. Maravilhosa não para aqueles que vêm para ela lutar, sofrer e, quem sabe, vencer, ou não, na  vida..” Era um desabafo com alguma indignação como resposta a uma carta anterior que lhe fizera contando-lhe os aperreios de um jovem nordestino sem mesada tentando sobreviver na grande urbe carioca. E já grande urbe, se comparada às capitais menos desenvolvidas do país no meu tempo de recém-chegado ao Rio.

Hoje, no final da manhã, fui ao Centro com a minha mulher e o meu filho mais novo, o Alexandre. Tomamos o ônibus na Tijuca e saltamos na Presidente Vargas, essa avenida cansada de guerra, de mudanças na direção do trânsito, nas faixas de pedestres e nos pontos de ônibus. Na cidade grande tudo é efêmero relativamente. Nada dura muito ou sempre.

As cidades são como as pessoas, com o tempo mudam de fisionomias, só que, na mudança, vão subsistir dois planos de sua arquitetura: um, representando o passado com as suas velhas edificações algumas tombadas, outras sujeitas aos capricho dos prefeitos;outro, representado pelas mudanças radicais apontando para a modernidade, com os seus arranha-céus surgindo em quase todo canto do miolo do Centro. Aprendemos a conviver com essas mudanças, acompanhamos as modificações, sofremos com as interdições nos períodos de grandes transformações arquitetônicas.

O que era rotina dos pedestres em termos de terminais de coletivos, se altera e por isso causa um certo transtorno, aborrecimentos diante da nossa impotência de resistir às diretrizes da prefeitura com as suas ideias cíclicas de redimensionamento do plano geográfico da cidade. Que por vezes dá certo e outras vezes, não.

O habitante da grande cidade não passa de um homem tentando conviver com a sua anomia no meio da multidão indiferente e individualista, cuja manifestação mais evidente é a pressa, o dinamismo, o vai-e-vem dos pedestres e o fluxo incessante dos carros. Um escritor francês, no seu tempo, dizia que os habitantes de Paris são de “...uma curiosidade tanta que chega à extravagância.” Não sei mais se no Rio de Janeiro somos ou fomos o que eram os franceses. Já houve um tempo  em que pensei que os cariocas eram também muito curiosos a ponto de alguém fingir que está olhando para um ponto no alto dos edifícios e, de repente, muita gente formar uma espécie de circulo em torno dele e começar a olhar também idiotamente para o alto procurando algo que, na verdade, não existe , pois não passou de uma brincadeira.

Saltamos do ônibus, tomamos a direção da Rua Miguel Couto. Nosso destino era o Largo do São Francisco. Lá entraríamos num prédio para tratar de assunto pessoal. Antes, porém, de chegarmos no Largo do São Francisco, passamos pela vetusta Rua do Ouvidor. Como sempre, cheia de pedestres nas duas direções, como também ladeada dos dois lados por lojas, butiques, lanchonetes, prédios de escritório, comércio generalizado.  Pensei comigo: como está distante da famosa Rua do Ouvidor do tempo do escritor da Moreninha (1844), o romântico Joaquim Manuel de Macedo, que, por sinal, tem um livro fascinante sobre essa rua, Memórias da rua do Ouvidor (1878),

No tempo do II Império, era uma rua aristocrática, na qual passeavam escritores, homens de negócios, senhoras distintas da alta sociedade, com seus vestidos vaporosos, suas jóias brilhantes, às vezes acompanhadas de cavalheiros elegantemente vestidos, conversando sobre variados assuntos da vida pessoal ou fazendo comentários sobre os folhetins da época com as suas histórias de aventuras amorosas ou de amores desencontrados, ou mesmo como no caso de dois guapos cavalheiros, comentando algum assunto do cenário político do momento. No meio daquela rua outrora elegante charmosa, esplendorosa, afrancesada, feérica, eu me encontrava, em pleno século 21, numa insossa e decaída rua carioca, imaginando cenas de tramas saídas da pena de um José de Alencar, do próprio Macedo ou de um Machado de Assis.

Olhei pra frente, no Largo de São Francisco de Paula, ou simplesmente, Largo de São Francisco, e logo avistei a antiga Escola de Engenharia, onde, hoje ainda funciona o famoso IFICS (Instituto de Filosofia e Ciências Sociais) da UFRJ, desdobramento da antiga Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil (1939). O mesmo prédio histórico já abrigou a Escola Politécnica e nessa construção já funcionou a Real Academia Militar. Olhando também para o lado esquerdo de quem sai da Ouvidor, revejo a Igreja de São Francisco, na qual, meia hora depois, dobravam os sinos que ouvi do 12º andar de um velho prédio do Largo, local do meu destino no Centro da cidade.

Almoçamos na Travessa do Passo, bem pertinho da Praça XV. Percorremos, a pé, várias ruas há muito conhecidas de minha permanência longa no Rio e, para falar a verdade, cada rua, de alguma forma, me leva ao passado em tempos e pensamentos superpostos, ou seja, cada lembrança tem o condão de se associar a outras lembranças, boas ou más, mas sempre lembranças. As lembranças, a posterori, ressignificam parte das nossas memórias, que nunca vêm à tona cronologicamente e com precisão cirúrgica, mas misturadas ou simultâneas, numa ida e volta, sem planos estratégicos, mas retomadas por um fluxo contínuo de imagens, gestos, ações, palavras, situações, sons e cheiros.

O passado, já observei, quando muito recuado, mistura muitas vezes a ordem dos acontecimentos e nos deixa na encruzilhada do que antecedeu e sucedeu. Algo da retentiva embaralha alguns incidentes, sobretudo na tentativa de procuramos harmonizá-los dentro de uma cronologia rígida. A memória é falha e talvez por isso é que somos impelidos a preencher os vazios e, ao fazê-lo, somos traídos pela imaginação ou fantasia, quer dizer, penetramos, por vezes inconscientemente, no mundo da recriação rememorativa. As memórias, assim, se transmudam em realidade e ficção.

Volta pra casa. O ônibus que íamos tomar não tem mais seu terminal, virou ônibus circular com as obras que comporão os projetos de urbanização da área portuária do atual prefeito sob o nome geral de “Porto Maravilha,” aí incluindo parte da Praça XV, onde fica o Mergulhão (interditado agora para a realização de obras que fazem parte daqueles projetos), passagem subterrânea por onde fluem pesadamente os coletivos e outros veículos que vão para os bairros da Zona Sul. No Mergulhão ficava o ponto final do ônibus que costumávamos tomar. Tivemos que pega um ônibus no Largo da Carioca que, aliás, nos surpreendeu pela percurso rápido e objetivo em direção à Tijuca, lugar de nosso regresso pra casa.



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