O LADO OCULTO
     “Sinite parvulos venire ad mihi.”
           Aquela família continuava  levando a vidinha de sempre desde quando a linda criança, divina criança, nascida após tantos riscos e dores, cada dia que passava dava demonstrações de sua singularidade, se comparada com os amiguinhos da mesma idade.
Lá fora, no chão de barro, brincava com os companheirinhos, seus vizinhos mais próximos.  As brincadeiras eram as mesmas das crianças  de toda  parte, mas nem sempre de todos os tempos. 
“Jesus! Jesus!” Quase gritando, chamava-o Maria, aquela jovem suave, de pele clara, de olhos azuis, vinda do Nordeste. O menino de cinco anos, muito  claro e com um rostinho fino um tanto vermelho  de pegar sol  aberto de final da manhã, parou com a brincadeira, que consistia em apostar corrida, de um  lado a outro, numa extensão de trinta metros,  num terreno que mais  parecia um pequeno  campo de futebol, desses que, nos subúrbios  cariocas, fazem a alegria da criançada.
A criança, arregalando  os olhos mais azuis que já se viu na face da Terra, despediu-se dos coleguinhas e correu em direção à mãe.
“Jesus, é hora de almoçar. Você está queimado do sol. Veja como está suado.” Os olhos da criança pareciam brancos de tão azuis. A fisionomia era séria e o olhar dava sinais  de  quem queria falar alguma  coisa  importante. Entretanto, permanecia mudo, até distante. Ao exame atento da mãe não escapou toda essa disposição estranha de ânimo da criança. Não teria algo mesmo  digno de revelar ?
À mesa simples daquela casa de carpinteiro, sentaram-se para a refeição mãe e filho, cada um com seu prato. Comiam uma pequena posta de peixe que fora fritado atravessado por um pedaço de lenha como se fosse um espeto com fogo crepitando nas brasas por baixo  numa pequena  área descoberta, que ficava logo atrás da cozinha. O peixe fora comprado na noite anterior por José no supermercado  do bairro mais próximo.
Daí a pouco, entra na sala principal um homem magro, de estatura média, com uma barba meio longa e bigode, num rosto crestado pelo sol. Seus olhos denunciavam cansaço. O olhar, sereno e o rosto harmonioso, um tanto largo, tornavam-no uma figura do Novo Testamento, que se completava com   uma cabeleira não muito longa emoldurada com  belos cachos  negros e sedosos.
“Maria, que Deus seja louvado e abençoe nosso filho amado. A manhã foi trabalhosa, mas consegui terminar de fazer quatro bancos e seis cadeiras, que me deram, aliás, muita canseira, porque a madeira desta vez não era de tão boa qualidade. O sucesso dependeu  da minha  habilidade para tornar esses objetos seguros e ao mesmo tempo confortáveis. O Seu Simeão, que foi quem  fez a encomenda, ficou  contente com o trabalho. Ainda bem”.
“Venha, José, pra mesa. Já fiz seu prato, está coberto pra não  esfriar.  Jesus, como vê, está devorando o prato. Brincou a manhã toda, chegou faminto das brincadeiras. “Que bom que tenha sempre essa disposição para comer”, acrescentou o jovem carpinteiro.
José, no almoço, não   dispensava tomar meio copo de vinho doce umas três vezes por semana, vinho comprado na vendinha do Seu João. Maria não bebia senão água, refresco ou refrigerante. O marido, porém, era metódico e sabia até onde podia tomar sua bebida preferida.
Jesus, terminado de almoçar, pediu para ir até ao seu pequeno cômodo. Pequeno, sim, mas arejado com uma janela para fora, que dava para os fundos de  outra  casa. Nele havia uma caminha sempre arrumada e, mais perto da janela, um  bercinho que, até aos quatro anos,  lhe servia de cama. O quarto era de cor  branca. Tudo ali indicava  asseios e cuidados maternos. O berço tinha sido feito pelo pai com desvelo e muito amor. Havia ainda um pequeno guarda-roupa para as roupinhas de Jesus e, de um lado, um espaço reservado para alguns  brinquedos: bolas,   carrinhos de plástico,  lápis pretos, lápis de cores diferentes, borrachas, folhas  brancas para  rabiscos e desenhos do pequeno. Como muita criança, Jesus, com frequência, dormia  no quarto  dos pais,  deitava-se de lado, na cama entre eles. O sono era muito mais doce e  protegido.
A casa de Jesus era do tipo  popular, com dois quartos, sala,  um banheiro, cozinha  e área.  Construção igualzinha  às demais daquela comunidade do morro urbanizado. A palavra “favela” ia cedendo lugar àquela, que não exprimia nenhuma conotação depreciativa. José,  todavia, via, no emprego dessa palavra, um modo burguês  de  designar a mesma ideia para  a mesma coisa. Dizia que isso não passava  de modismos sociológicos com o fito de suavizar a realidade nua e crua. Apesar de carpinteiro,  José  era um homem que lia muito jornal e até livros que  tratavam de assuntos sociais e históricos. Tinha noções claras sobre estratos sociais, pirâmides sociais,  conceitos de mais-valia, sistemas de governo, Era um leitor assíduo de jornais populares, visto que não podia comprar os jornais das elites, estes só lia quando lhe caíam por acaso  nas mãos calosas.
Jesus, com cinco aninhos, frequentava a creche da prefeitura, localizada a três  esquinas de sua casa. Naquela  manhã que corria no descampado, o fazia porque a diretora da creche já havia  avisado que, naquela dia, não ia funcionar.  Iam  fazer reparos na caixa d’água. As crianças, pois, não podiam ficar sem água. Foram dispensadas.
De segunda a sexta, sua mãe o levava à Creche “Menino Jesus”. Lá tomava o café, almoçava, tomava o banho, jantava,  passava a manhã e a tarde brincando com outras crianças  e aprendendo alguns hábitos saudáveis, sobretudo socializando-se. Tinha até  tempo para tirar uma soneca. Além disso,  ensinavam as crianças a cantar pequenas canções  infantis, algumas  brincadeiras sob a vigilância   e supervisão  das professoras.
Maria ficava descansada,  confiante em que seu filho  estava seguro e  era bem tratado na creche. Não tinha  reclamação a fazer, ao contrário só elogios. Além do mais, era uma forma de permitir que ela trabalhasse fora como faxineira em casa de  família, em Botafogo, na Zona Sul do Rio de Janeiro. 
Jesus era superdotado. Embora na creche  a maior parte do tempo só brincasse,  já estava praticamente lendo sozinho A criança tinha a mania de pegar o jornal e ver as palavras, as fotos, a seção de quadrinhos e adorava ver os cartuns que provavelmente não entendia. Contudo, os desenhos lhe chamavam a atenção. Conhecia algumas letras. Diferenciava as maiúsculas das minúsculas, as  letras manuais das impressas e todo esse auto-aprendizado já deixava os pais  admirados e perplexos.
É bem verdade que José, em casa, quando lia o jornal, chamava a criança e lhe mostrava as letras, pronunciando os sons, juntando-os até tornarem-se palavras faladas. O menininho o acompanhava atento e  curioso. Logo se familiarizou com todas as letras e, de certa forma, já estava lendo alguma coisa. O mesmo ocorria com os números, já os sabia  dizer até  cinquenta.
Essa precocidade da criança enchia de orgulho  os corações dos pais.
“Jesus, leia esta frase aqui”. Era um jornal. A criança  esperta dizia então: “AMANHÃ HAVERÁ MISSA NA IGREJA DE  SÃO MATEUS.” As letras eram grandes e facilitavam a leitura e o aprendizado.
José trabalhava numa fábrica de móveis em Bento Ribeiro, subúrbio da  antiga Central do Brasil.  Homem trabalhador,   íntegro, tudo fazia pela família. Maria não ficava para trás. Esfalfava-se para contentar sua patroa, uma professora universitária de renome. Não havia ninguém que não gostasse daquela faxineira muito asseada, cuidadosa, honesta e pontual.
Um dia, José recebeu uma ligação da creche, pedindo-lhe que comparecesse urgente ao local. Maria, também, recebeu outra ligação. Eram três  e meia  da tarde de  uma sexta-feira.
Os pais de Jesus chegaram ao local com uma diferença de meia hora. Maria chegou primeiro e logo  estranhou  um aglomerado de gente à frente da creche, que ficava num terreno em plano elevado com  relação  à rua  estreita que a cortava.
“O que foi”?  indagou  Maria  nervosa e com voz rouca no meio daquela  gente.
“Houve tiroteio  há pouco menos de meia hora entre policiais e traficantes”, dissera alguém ali presente. “Bala perdida.”
 “Quem é a criança”, perguntou novamente Maria já desesperada. Só agora, ligou uma  coisa com  outra. O telefonema!. Se me chamaram aqui era porque algo de muito ruim  aconteceu com meu filho. Desvario da vida. Maria mal se aguentava nas pernas, mas, mesmo assim, entrou como um raio na creche. A diretora logo veio ao seu encontro, muito pálida e, gaguejando, contou-lhe o que a santa mãe jamais queria ouvir em toda a sua  vida. Bala perdida! Um tiro, saindo de alguma arma de policial ou de bandido entrou pelo buraco de uma janela com vidraça quebrada e foi atingir a cabeça da criança precoce.
Maria caiu desmaiada. José chegava à cena da tragédia, aos prantos, clamando por Deus. Nada mais havia a fazer. O pequeno Jesus jazia inânime com um  furo no olho direito. O rosto inchado e desfigurado. Uma chuva repentina caiu sobre a creche. Sangue sobre o rostinho inocente. Seu corpinho ainda estava descoberto. A mãe e o pai gritavam de dor.
Um morador da comunidade balbuciou atônito: “A polícia já informou que o projétil, durante o confronto,  partiu de um traficante do morro vizinho.”
A chuva engrossou. Relâmpagos e raios fulminavam no alto do céu repentina e misteriosamente. Tudo escureceu estranhamente no espaço ameaçador daquela tarde. Lá embaixo, na sala principal da creche, o choro era infinito de dor e de desesperança de dois corpos vivos prostrados sobre o corpo imóvel e indefeso do pequeno Jesus.
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