Cunha e Silva Filho
 Na Rodoviária de Curitiba,  estávamos aguardando que  meu filho, Francisco Neto,  me apanhasse de carro. Minha mulher e eu acabávamos de  desembarcar do ônibus. Era  uma manhã de sol acolhedor. A cidade pra  mim  sorri e é um sorriso que não sei  explicar do ângulo  meramente pragmático, materialista. Você sabia, leitor,  que as cidades falam a sua  própria língua?. É só atentar  pra esse lado de sentir   a natureza, quer artificial, quer   a natural, composta do solo, das árvores,  dos lagos, dos rios, dos pássaros, enfim, de tudo com que a Providência nos   prodigalizou. A manhã de uma cidade psicologicamente é diferente da tarde ou da noite. Cada qual nos  comunica alguma coisa que se vai  instilar no recôndito de nossa alma. Em literatura, há um termo para exprimir melhor  essa ideia, a “atmosfera,”  sentimento de emoção exercida sobre o nosso ser em determinado lugar ou ambiência.
De repente,  assomam lá na extremidade da porta de entrada de quem  vem do estacionamento, duas criaturas queridas, meu filho e Amanda, a netinha mais nova, de cinco anos apenas. Lá vêm os dois com passos apressados. Amanda,  desvencilha-se da mão paterna e vem correndo ao encontro dos avós  paternos.  Toda sorrisos que se vão refletir no  brilho dos seus  olhos verdes. Cada vez que a vejo  me dá a impressão de  que está maior. A mais velha, Isabella,  de dez anos,  não pôde vir. Está na escola.
Nos  abraçamos e ela logo me entrega duas folhas de papel  sem pauta, dobradas em forma de  envelope. Abro-os e neles vejo, desenhados, com tinta azul, duas figuras  humanas. Nos dois “envelopes”, um nome da remetente que dispensou  os protocolos dos Correios: Amanda. Logo descubro quem são os representados nos desenhos: a imagem  do avô e da avó. São traços simples  mas eloquentes  de uma criança  de cinco anos que  desejou homenagear e dar as boas-vindas à avó e avô. Não lhe  interessou fazer  as duas   imagens  de corpo inteiro, mas só do rosto. A avó ali está  figurada nos cabelos em forma de uma maçã,  no olhar  de esguelha e numa linha curva simbolizando a boca. O avô de imediato se descobre: tem  um rosto másculo, meio  alongado (o meu é arredondado), com alguns fios de cabelos  encaracolados ( os meus são  levemente ondulados) e  o desenho do avô,   feito  com amor e perspicácia  infantil, não esquecera  um detalhe importante: nos olhos  a presença dos óculos com os quais se acostumou a ver a minha  figura.
Em casa, já com a irmãzinha de volta da escola,   com os cuidados da mãe, do meu filho e    dos avós, a rotina  da família era quebrada com aquela   amistosa troca  de informações sobre  o dia-a-dia de uma família  reunida. Agora,  só  brincadeiras do avô com a netinha mais nova,  perguntas  feitas à mais velhas sobre a vida escolar, os livros lidos  por ela (levei-lhe um livro de literatura  infantil), os passeios  que iria fazer ou que já fizera recentemente e tantas outras coisas  aprazíveis que  constituem as delícias do mundo  infantil.
Há dez anos  tenho vivido a experiência  de ser avô e por isso  posso mesmo  adiantar algumas  conclusões sobre essa  nova fase de minha vida. A condição de avô nos  pega de surpresa. Nela nos  mergulhamos por  inteiro. De certa maneira, ser avô é momento  apropriado  para  refletirmos  sobre a  existência  e o sentido tanto da  efemeridade da vida quanto da importância da necessidade da perpetuidade dos seres sobre a Terra. Isto é,  o ser avô nos leva à consciência plena da vida entendida na sua  totalidade, ou melhor, na sua complementaridade, onde o finito se funde ao infinito formando a unidade do ser. Não é um elo perdido,  mas um encadeamento  de  mistura  e de permanência  de genes cuja  compreensão só pode ser lobrigada  com mais clareza à medida que avançamos na nossa vida adulta e adentramos  na velhice.
Ao nos tornarmos  avô,  não se pode negar que  há uma nova  transformação de nossa  natureza psíquica e humana. Passamos da  condição de seres que  orientam para seres que  orientam duas vezes, nossos filhos e nossos netos. Porém, não é uma orientação com  o rigor de pai ou mãe. Antes,  é uma  orientação tolerante,  conciliadora,  sábia, modelo de dignidade passado  adiante, própria de quem  já pode ter um olhar  mais distanciado, sem  os deslizes dos jovens pais, sem os arroubos da paternidade mais diretamente  comprometida. A experiência dos  avós  geralmente   se faz  proveitosa sem o antigamente  chamado  “conflito das gerações.” Não, nada disso. O conhecimento que  os avós  transmitem assenta-se no diálogo seguro,  aberto e resultante da combinação do amor incondicional  e  da vontade  de ver o bem-estar  dos seus descendentes. Por essa razão, frisei atrás que a maior herança dos avós aos netos é    o exemplo de dignidade familiar que – isso sim -, pode ser transmitido através das gerações  da mesma  família que, com outras  famílias,  pelo mundo afora,  constituirão uma cadeia  de união,  felicidade e duradoura  paz.
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