domingo, 22 de janeiro de 2017

DIÁLOGO COM TODAS AS COISAS, OBJETOS E SERES: A POESIA DE NATHAN SOUSA






                                                                  CUNHA E SILVA FILHO


        Com pouca  informação sobre o  autor,  o poeta  piauiense  Nathan Sousa, 43 anos, sem  lhe conhecer  a produção  até agora  editada,  me agarro a seu mais recente livro publicado, Dois olhos sobre a louça  branca(Guaratinguetá: Penalux, 2016, 85 p.). Essa editora vem  publicando  outros  poetas e  ensaístas, alguns dos quais  conheço, como  Luiz Filho de Oliveira, poeta  piauiense, e Valdemar  Valente,  ensaísta.
       Residindo  no Rio de Janeiro há tanto tempo,  não tenho  condições  de acompanhar tudo que tem sido  publicado no Piauí, sobretudo seus autores mais jovens ou menos jovens..O que me vem ao conhecimento  é quase por acaso. As minhas  referências  aos novos autores  vou buscar  nos poucos historiadores literários  de que  o Piauí  dispõe, como  Francisco Miguel  de Moura e Herculano  Moraes.
      Como diria  os mais velhos  até do que eu,  de um assentada li  o livro em exame. Leitura  rápida que me  impulsionava a ir adiante. Foi o que fiz  e posso  adiantar: não  foi  tempo  perdido. O jovem poeta como  aconteceu com  Luiz  Filho de Oliveira, me surpreende por várias razões, (com a sensação estranha   e satisfação com que  li o  poeta  Elmar Carvalho  nos anos  1990 e quando lhe  analisei a obra poética nos anos seguintes), em especial  pela qualidade  inquestionável de seus versos.
    Eu tentei ver se na obra  de Nathan  poderia  encontrar  uma  imperfeição,  seja de natureza da linguagem  literária, seja  da própria  elaboração  da sua fatura  poética, a meu  singular,   orignal,  na qual, a palavra,  a  frase,  a estrofe  e o  poema  inteiro  vão-nos deleitando  pela  leque  de situações   formais  e humanas levantadas pelo  autor.   Aposto na  consagração  desse  poeta e logo logo na sua visibilidade  fora dos limites do Piauí.
     Nathan  Sousa  nos enseja uma poética que  muito  se aproxima  do âmbito  filosófico, sem, no entanto,   desprezar  a concretude da vida, a realidade  quotidiana e seus  problemas   e impasses,    os objetos inanimados, a flora, a fauna, coisas  em geral, i.e., o mundo natural e o mundo  cultural,   Tudo no livro  parece  querer  atingir  uma dimensão  universal. Em Nathan nada lhe escapa  ao que  se convenciona denominar   de mundo  real  e mundo abstrato. Luz, sombra e mitos. Por  isso, sua poesia é tão invadida  por  objetos, coisas,  seres humanos ou irracionais, pela frequência  alusiva, ou seja,  pelo  intertextualidade, quer    endoliterária, quer  exoliterária (Cf. Vítor Manuel de Aguiar e Silva. Teoria da literatura. 8 ed.  19ª impressão. Coimbra: Livraria Almedina, 2011,  p. 629-630),  um traço  muito  comum  nos  poetas  de hoje e já anunciado,  conforme   amiúde tenho  repetido, desde a  previsão do crítico literário  inglês I.A. Richards. (1893-1979)) 
        Optou – seria o   termo  certo para r  uma poesia constelada de signos, metáforas e símbolos? -  por um  poesia  de corte   contraditoriamente aristocrático,  na qual  os verso  resultam  de poderosa  imagística que toca  em  muitos ângulos  do se podia  rotular de  grande poema em todas as épocas. Contudo – cabe  ressaltar -  o adjetivo  “aristocrático,”  aqui particularmente  empregado,  não tem nada a ver  com  um  poesia  tradicional  parnasiana ou   neo-parnasiana. Longe disso. O adjetivo  refere a um tipo de poesia  inapelavelmente  pós-moderna no sentido mais lato  possível. Quer  dizer,  uma  poesia   que supera  as vanguardas  brasileiras  a partir   das mudanças   efetuadas  pelo  Concretismo  de 1956  e outras formas de  vanguardas  pós-concretistas. Nathan faz parte de um grupo de poetas  que pertenceriam a uma fase  na qual   os ismos  datados  forma superados e, em lugar dele,  a poesia teria  em cada  poeta  uma forma individual  de composição. Não significa por isso  que   nesses novos  poetas que estão surgindo no pais   a anarquia da forma e  de temas,  mas  um percurso  poético  pessoal  que tenha  recebido   as mais diversas   contribuições  tanto da tradição literária quanto  das diferentes vanguardas  pelas quais  passou  a  poesia brasileira..
      A poesia  de Nathan  Sousa, em alguns  aspectos  formais e de comportamento  com a linguagem,  me lembra  outro  poeta  brasileiro que conheci muito,  o Jurandyr Bezerra (1928-2014),  autor de um  único livro  publicado,  Os limtes do pássaro(Belém: Editora  SEJUP, 1993) bem recebido pela crítica  especializada. Tinha prontos, pelo menos oito livros de poesia a serem editados. Bezerra nasceu  no Pará e, em seguida,   radicou-se no Rio de Janeiro. Recebeu prêmios e teve poemas traduzidos para o italiano e eu mesmo  verti um  poema  dele para o inglês, de título “Poema para Izabel,”extraído do livro  já mencionado.
     Como  Nathan,    ostenta uma poesia  de fino  senso  de beleza,  onde o sentido  do poema  se encontra  no próprio fruir   da linguagem  e  de  seus recursos  imagéticos,  em sua  potência   criativa  e no seu  substrato  profundamente humano além de musical, visível  influência dos simbolistas.
      Jurandyr  Bezerra foi leitor  voraz dos  grandes poetas  não só  brasileiros (Cecília Meireles,  Cruz e Sousa,  Murilo Mendes,  Fernando Pessoa),  mas  um  do porte do expressionista alemão  Georg Trakl.(1887-1914). Tinha  especial  interesse  pela leitura de  respeitados ensaístas, por exemplo, um Mário Faustino,  um Benedito Nunes, um  Antônio Olinto, um Antonio Carlos Secchin,  um José Guilherme Merquior.
       Recordo vivamente que Jurandyr citou especialmente  o último dos citados poetas  no parágrafo anterior, da mesma maneira  que gostava de citar Cecília Meireles, os simbolistas. Foram, assim,  uns mais outros menos, os que, segundo ele,  lhe ensinaram  finalmente o que é poesia  depois de tanto tempo  e canseiras  de releituras, porque,  acrescentava ele, a poesia é também  um aprendizado  do domínio técnico – uma espécie de epifania, uma  porta aberta aos olhos espantados   dos que amam e querem  para si   a entrada  firme e certeira  do sentido da linguagem e  da matéria  poética que se traduz, ao fim, em criação verbal e de apreensão do que seja o grande verso,  a grande poesia.
       Jurandyr, tal qual   todo  bom  poeta,  passou a vida inteira  lendo o que havia de melhor na poesia  universal tanto  de brasileiros quanto de   estrangeiros. E como sabia ter a vocação e a maneira cavalheiresca   de  ofertar obras  da grande poesia aos amigos! Uma desta ofertas foi uma antologia de poetas  expressionistas alemães.
       O livro Dois olhos  sobre a louça  branca,  de resto,  de título   insólito e enigmático, compõe-se de quatros  partes, respectivamente  intituladas  “Ogiva de Vidro” “Lágrima de quartzo,” “China,”  e “Estuário / Saliva.” As quatro  partes  reúnem  cinquenta e um  poemas. É óbvio que,  numa simples resenha, não daria conta  de um comentário  abrangente o suficiente  para  apreender  a riqueza  facilmente  detectável  em seus  poemas, em que a linguagem  da poesia  é medida milimetricamente  e se encaixa  no  tema  eleito.Esse frêmito também, em  relação a  novos poetas    do Piauí, experimentei  na leitura  da poesia de Sonia Leal Freitas, O cedro do Éden (2002) e  na poesia satírico-social mas também estruturalmente  refinada  de Luiz Filho de Oliveira  na obra Das bocadas infernéticas (2016).
      Não seria neste espaço que adensaria  minha análise  da poesia de Nathan  Sousa,  mas me impulsiona o desejo  de  tecer  alguns breves  comentários gerais  do livro. Tomemos,  por exemplo,   três poemas, entre tantos no livro,  que me suscitam  a curiosidade crítica:  “Eu e a Cidade” (p.32-33), “Sabor”(p.75) e “Ceia de cegos” (p.85) e  
      O primeiro  escolhido retoma um tema  já poetizado  por  outros   autores piauienses,  um deles  sendo Paulo Machado. Todavia,   o tratamento  entre este o de Nathan  é bem diverso e reflete outros tempos  poéticos. Nos poemas de Paulo Machado sobre Teresina  a poesia, num lirismo  distanciado, se entronca  com  a denúncia social  e  o testemunho  do tempo  histórico, enquanto  que em Nathan  Sousa  existe uma relação  mais íntima entre  o  sujeito lírico e o tema de Teresina, ou seja,  entre o sujeito lírico  e o objeto amado complicado  desta vez pelos tempos  de agora,  líquidos e  apressados no torvelinho da  pós-modernidade   impessoal  e brutal.
      O poema é uma mini-autobiografia do poeta que se debruça corajosamente  sobre  o seu tempo  presente e o passado. Fala do presente da sua cidade, Teresina,   em constante  metamorfose. É um belo  poema, um dos melhores  do livro costurado entre a saudade dos entes queridos  e as transformações  que o amadurecimento  vai  exercendo sobre o homem-poeta: “retorno  à cidade onde nasci/e onde  vi meu pai e (pouco depois) minha mãe partirem/para sempre”.(p.32, primeira estrofe).  
      Nesse  poema  há um controlado halo de  nostalgia  indefinida  do que foi  a cidade  do período  existencial  do  autor  por ele mesmo situado: “Será esta a Teresina/que se abriu em cores e vozes/ naquele distante ano de 1973? (p. 33, estrofe 7). É evidente que essa sensação  de  estranheza sentida por alguém que se afastou   da sua cidade berço é compartilhada por outros  pessoas, até pelo  “homem  comum,”  porém  sobremodo pelos artistas,  poetas,  escritores em geral, gente  com maior   sensibilidade  de transmitir  emoção  e beleza  através da comunicação  literária.O poema é um  grande mergulho  no sentimento da saudade  contida  pela   emoção  controlada pela  mensagem sintética  tão afinada que deve ser  com  o  ato  poético e pela consciência  e razão  metapoética.
       No poema ‘O  sabor,”  existe um “topos,” o da imagem da “louça branca” que,  ,por sinal , faz parte do título do livro. Ele, portanto,  é recorrente, aparece aqui e ali  na obra.Não é meu intuito aqui me éter  neste sintagma ou no lexema “louça.” Sua hermenêutica  será certamente uma das linhas de força  do poema. Nathan, tanto quanto  outros  poetas de hoje,   usam de alguns  artifícios que já foram  empregados  por poetas da modernidade,   como  um  Vasco Graça Moura  (1942-2014) poeta  português, ou um mais antigo, e o norte-americano  e.e.cummings (1894-1962). Eles usaram  letra minúscula  para  nomes próprios, assim também  as empregaram depois de um  ponto. Outra traço  tipográfico  semântico-visual igualmente  encontrado na  poesia de Luiz Filho de Oliveira) é, entre parênteses,   incluir  um  enunciado alusivo  ao poema ou mesmo  de sentido  enigmático ou indecifrável.
     Cumpre não  esquecer  que a poesia  atualizada de Nathan  Sousa  tematicamente  se irradia  para múltiplas direções, não somente para  o olhar  dirigido aos objetos,  coisa  e seres, segundo  assinalei, mas  para  outras questões que  embutem no  poema voltadas ao universo das artes, da temas sociais e globais, Combina  os mundos  ocidental e oriental. Desloca-se  como uma espécie de globe-trotter.
      Há uma visada para uma abrangência  universal  atingindo, além disso,  outros  espaços  naturais,  a água,  o líquido,  os pássaros (frequente nele também  é suas referência a essa espécie  animal.  Voltemos ao poema “Sabor.”  Há sempre  um segundo ou terceiro ou mais sentidos  num só poema que converge para uma opacidade  de sentido abrindo-se ao hermetismo  e  a um esteticismo  acessível a poucos iniciados.
      Neste ponto,  sua poesia é muito mais    sofisticada do que foram  os poetas da geração-70, com o mimeógrafo, com alguns  poetas  reunidos  em antologia a cargo de Heloísa Buarque de Holanda, antologia  que se tornou,  por assim dizer,  um clássico, sob o título de 26 poetas  hoje ou mesmo  com  os da  geração-90, que teve duas edições (Editora Aeroplano) e mereceu uma  outra antologia  intitulada Esses poetas, também  organizada por Heloísa Buarque de Holanda.
      No poema  “sabor” é evidente uma  dicotomia  entre o abismo  de uma hecatombe natural insinuada pelo binômio “goela e o big bang e um desejo   meio que incerto, a despeito  do risco,   do recurso à poesia. O poema se inscreve entre o  disfêmico ( big bang, “mefistofélico”, “combustão desavisada” e “armas” e o  eufêmico ( “louça branca,” “canto de louvação,”  “educada”). O poema não afirma abertamente, se camufla semanticamente.
      No poema  “Ceia dos cegos,” o derradeiro  do livro,  que exibe uma epígrafe de escritor  português Miguel Torga, está associado  à religiosidade cristã na acepção  do conhecimento  atento  do Novo Testamento, do qual é citado uma frase de Mateus (não sei por que o poeta grafou em inglês mathew, quando  poderia fazê-lo em português).
       As referências  ao “mito” e ao “sono da caverna” são bem indicativas  das intenções oblíquas  (se é que há intenções num  poema)  da natureza  do tema  do poema.  Apontam para muitos questionamentos de cunho mitológico, social,  estético e  filosófico. A citação de Mateus, por sua vez,   reenvia ao topos dos “olhos” e da “louça branca”   que formam  o título da obra. O poema  “Ceia dos cegos” não se torna  por isso  religioso, católico ou de outra denominação. A uma afirmação  do sujeito lírico  corresponde uma  desconstrução. O  conceitual  se desfaz,  muda de rumo e causa estranhamento não  pelas aporias   existentes como  ainda por  sua súbita metamorfose semântica, levando  àquela opacidade, àquela  conceituação  de Mallarmé:

(...) referir-se a um objeto  pelo seu nome é suprimir três quartas partes da fruição do poema, que consiste na felicidade de adivinhar pouco a pouco; sugeri-lo, eis o que sonhamos. É o uso perfeito desse mistério que constitui o símbolo; evocar pouco a pouco um objeto para mostrar um estado de alma, ou,  inversamente, escolher um objeto para e desprender dele um estado de ama  por uma série de decifrações.” (apud Tavares, Hênio, Teoria literária. Belo Horizonte: Editora  Itatiaia Limitada,  8.ed. rev. e aum., 1984, p.89).

       As múltiplas vozes de espaços  e tempos  diferentes tornam a  poesia  de Nathan Sousa um  poliedro   que, num melting-pot,  sabe agasalhar  ou  recusar todos os caminhos  possíveis da poiésis – um desabrochar  de temas cruciais  e de  questões  filosóficas, que atravessam  rios,  oceanos,  mares,  lagos, continentes  do Ocidente e do Oriente e tentam  encontrar  ressonâncias  ao seu  canto  de pássaro  ávido  para  ao menos tornar  o nosso  universo mais humano e  fecundo, onde o lirismo  se faz onipresente mesmo  em meio à contramaré  da  contraditória e tumultuada   existência contemporânea na Terra.
         
       

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