quarta-feira, 13 de julho de 2011

Quero voltar no tempo

Cunha e Silva Filho


Pouco me importa se me infantilizo, que é melhor do que virar “o homem medíocre’ de José Ingenieros (1877-1925). Quero ir pro fundo da memória lá onde há tanto tempo a terra me viu primeiro sob o terno olhar de mamãe. Passagem do não ser ao ser. Do vagido aos primeiros segundos fora de mamãe, dela desejando umbilicalmente apenas os seios fartos de leite – força da vida e da saúde materna. Em verdade vos digo: era o início de tudo, da vida e das transformações céleres, continuas e irreversíveis com marcas corporais do tempo e cicatrizes da alma. Tudo, visto e posto: data, hora, - enigmas. Limite da matéria e passagem para a metafísica. Num e noutro caso, tudo são mistérios, campo do insondável.
O lugar: uma casa simples e velhíssima, com porta e janelas (duas, no máximo) que ainda não consegui precisar, visto que ninguém até hoje me disse onde se fincava como habitação. “Olha, lá adiante, do lado direito da Avenida Amaral. É uma daquelas casas. Já foi reformada, certeza não tenho.” O tempo é fumaça. Só volta se o transformarmos em arte ou História para não confundir com os ambíguos estória e história da ficcionalidade.
Uma vez que não sou historiador, escolho o caminho da arte ou o que imagino que o seja. Opção que nada tem a ver com os dois caminhos de Robert Frost (1874-1963) no poema “The road not taken” (1916).
Dando os primeiros passos da longa estrada, ali estou nos cueiros aos cuidados de minha mãe, uma jovem senhora de cabelos escuros ondulados, pele morena clara e ainda bela naquele sempre lembrado sinalzinho por sobre os lábios.
Amarante ... A calma Amarante do fim da Segunda Guerra Mundial. Era o início de dezembro. Lá estava eu na rede. Imagino que fosse rede, pois berço era raro. Ninguém me disse.
Papai, no Atheneu Ruy Barbosa, não muito distante dali. Umas duas ou três ruas. Estava com quarenta anos. Bem moço, ocupado com a preparação de suas aulas em tantas matérias: português, aritmética, álgebra, história, geografia, desenho rudimentos de física, de química, até noções de francês e inglês. Era o tempo em que imperavam os livros velhuscos de Antonio Trajano (aritmética e álgebra ), Suzanne Burtin Vinholes (francês), Jacob Bensabat (gramática inglesa), Pe.. Júlio Albino Ferreira (An English Method), entre outros.
Segundo me diria mais tarde, quando eu já era adolescente, sua disciplina no Atheneu era rígida. Os alunos o respeitavam. Por isso, muito feliz foi como professor com alunos que passaram pelas suas mãos e, na vida púbica e profissional se deram muito bem. Tornar-se-iam adultos ilustres: governadores,ministros, prefeitos, militares do Exército de alta patente altos funcionários do Banco do Brasil, médicos, engenheiros, dentistas, e uma gama de outras atividades nas quais se saíram vitoriosos. Seus ex-alunos de Amarante foram seu verdadeiro orgulho de professor nato, como ele costumava se definir.
Além da atividade do Atheneu, Ruy Barbosa, desde cedo começara a escrever artigos para jornais de Floriano e de Teresina. Eram artigos que já chamavam a atenção do leitor para o seu talento e competência. Isso tudo só mais tarde vim a saber por ele ou por outros meios de informação.
Eu, criança, ia me desenvolvendo: um ano, dois anos, três anos. Já falava alguma coisa talvez atrapalhadamente. Já andava, já brincava. De poucos incidentse me recordo plenamente. Um foi, quando pequenino, caí no chão de casa e tive um rasgão no queixo. Lembro-me de quem então mais se preocupou comigo: minha avó paterna, Candinha. Foi ela quem cuidou do ferimento.
Lavou-me o queixo sangrando, passou-me sal no local. Não sei bem se era sal, mas a sensação que tenho agora é que tinha o gosto de sal que seguramente se espalhou pela boca escorrendo – quem sabe – do colo dela onde pusera a criança chorando de dores. Resquícios do ferimento ainda tenho até hoje. Quase invisíveis.
Um outro incidente se refere à viagem de ônibus de Amarante para Teresina. Estávamos de mudança para fixarmos residência na capital. Ônibus que não era fechado dos lados. Só havia os assentos sem nenhum conforto. Era o ano de 1948. Esse incidente, porém, me foi contado por mamãe. O casal Cunha e Silva já contava com quatro filhos. Eu, o terceiro. Papai e mamãe cuidavam de segurar três: Sônia, Winston e Evandro, o quarto. Um senhora, companheira de viagem, pediu à minha mamãe que eu fosse para o colo dela, no que mamãe acedeu agradecida. Era menos um peso e cuidados.
Outros fatos ou circunstâncias da viagem não me vêm por enquanto à memória. Deixarei para mais tarde - seguirei o conselho de Álvaro Lins(1912-1970) - a narração desta primeira tentativa de uma aspiração de adulto saudosista ao espólio da memória – coisas da idade que já começam a borbulhar no espírito mas que deste fazem parte no” balanço da vida.”

Nenhum comentário:

Postar um comentário