domingo, 8 de novembro de 2009

Poesia e charge: o encontro perfeito*

Poesia e charge: o encontro perfeito*

Cunha e Silva Filho



Os vinte e cinco “Poemitos da Parnaíba” de Elmar Carvalho, agora tipograficamente grafados PoeMitos da Parnaíba, com certeza para combinar duas funções da linguagem propostas por Roman Jakobson (1896-1982) a poética e a metalinguística, conheci da primeira vez em que apareceram na parte final da edição de A rosa dos ventos gerais (Editora Gráfica da UFPI, 1996) – coletânea de poemas reunindo dezoito anos de poesia daquele poeta com prefácio de Hardi Filho e Posfácio da minha autoria.
É provável que, naquela ocasião, não tivesse dado maior peso crítico aos poemitos sobre figuras populares de Parnaíba, importante cidade piauiense. Os pequenos ou médios poemas tinham para mim um certo sabor circunstancial tanto quanto é costume encontrá-los em outros poetas brasileiros, como seria o exemplo de Manuel Bandeira ( 1886-1968) em Mafuá do Malungo (1948), definido pelo próprio Bandeira como poesia circunstancial, mas negada energicamente pelo prefácio de Carlos Drummond de Andrade(1902-1987). Com uma diferença que faço questão de aqui assinalar: os poemas circunstanciais de Bandeira não são de modo algum satíricos; é possível que em alguns haja humor, mas não sátira.
Posteriormente, Elmar Carvalho reedita a mencionada coletânea, numa edição acrescida de mais dezesseis poemas e acompanhada de uma boa fortuna crítica, além de um estudo erudito final tratando do uso de tropos na poesia de Elmar assinado por José de Ribamar Freitas. A edição foi publicada pela SEGRAJUS, 2002, 258 páginas Até no título houve alteração, com a exclusão do artigo precedendo “Rosas”. Essa edição contém uma pequena introdução de quem assina esta Apresentação.
Entretanto, em 2006, Elmar, comemorando seus cinquenta anos de idade, lança uma bem organizada antologia reunido o que lhe parecia de maior significação da sua lírica, inclusive até demonstrando real modéstia ao solicitar-me opinião sobre que poemas deveriam figurar ou não na coletânea. a que deu o título de Lira dos cinquentanos, propositalmente remetendo à Lira dos cinquet’anos (1948) de Bandeira. Não seria, claro, uma pretensão tal título, mas uma homenagem ao grande lírico de Pasárgada.
Essa bela antologia, em edição primorosa da FUNDAPI, Teresina, 2006, 271 páginas, com apresentação do autor, inclui, além disso, alguns textos em prosa, uma Entrevista com Elmar concedida à historiadora e ensaísta Teresinha Queiroz e à ensaísta, crítica e professora Maria do Socorro Rios Magalhães, uma bem considerável fortuna crítica do poeta, bela iconografia biográfica do autor e, finalmente, uma síntese biográfica. Nesse volume, ficaram de fora os poemitos parnaibanos.
No entanto, não contente ainda com a sua inquietação intelectual, o poeta Elmar Carvalho, juntando-se a outro artista piauiense, o chargista Gervásio Castro, natural de Parnaíba, mas radicado no Rio de Janeiro, resolveu, de comum acordo, dar uma dimensão pictográfica aos “PoeMitos da Parnaíba”. Seus personagens, outrora figuras de carne e osso, conhecidos tipos ou figuras populares de Parnaíba, se transformaram em excelentes charges pelas mãos criativas e reveladoras dos melhores atributos dos grandes chargistas.
As 25 figuras ou tipos populares, recriadas poeticamente por Elmar - e se diga a bem da verdade -, com o mesmo cuidado que o poeta destinou aos chamados poemas sérios, com os seus processos de composição centrados no trabalho da linguagem lírica e com os recursos de criatividade já conhecidos dos seus principais exegetas, saltaram do espaço poético para o desenho ilustrado, adquirindo ainda mais vida e complementando as descrições físicas, morais e psicológicas pelas quais ficaram conhecidos na crônica social da cidade de Parnaíba.
Acredito que, agora, elevadas à arte da charge, aquelas figuras ou tipos, com suas peculiaridades diferenciadas, ora exóticas, ora engraçadas, ora provocando o riso e a chacota, ora causando sentimento de emoção poética e ternura, hão de ressignificar sua importância na crônica viva do passado parnaibano.
É claro que algumas dessas figuras que combinavam traços grotescos ou escatológicos e foram vítimas dos gaiatos da época certamente o foram pelos excessos de traquinagens de crianças e adolescentes e até de adultos brincalhões.
Por outro lado, há que levar em conta outras figuras dignas da consideração e da admiração dos seus contemporâneos, seja pelo talento, seja pelas qualidades morais, seja pela ingenuidade, pela insanidade, pelo quixotismo, pela megalomania, enfim, pela multifária idiossincrasia de cada um. Nesses poemitos texto e charge se complementam e se engrandecem artisticamente.
Os melhores poetas fizeram algum uso, a par de seus textos chamados sérios, de assuntos elevados, nobre, também da poesia cômica, burlesca, satírica, e até obscena., cujo exemplo maior na literatura brasileira do Barroco começou com Gregório de Matos (1636-1695), com os seus conhecidos poemas satíricos. Carlos Drummond de Andrade, poeta sisudo, retraído, aparentemente bem comportado, da mesma sorte escreveu poemas sensuais e mesmo eróticos.
O certo é que não podemos deixar de nos enternecer, com certas figuras desses poemitos elmarcarvalhianos, com essas figuras encantadoras como Alarico da Cunha, Mestre Ageu, Mário Reis, Zé bispo, Parassi, Cego Bento, ou com tipos realmente engraçados e histriônicos como Maria das Cabras, Marechal, Boa Idéia, Pacamão, ou tipicamente burlescas como Simplição, Lobaia, Alain Delon, ou ainda patéticas como Jibóia, Derocy, Hosana, Marechal.
Não é, contudo, somente a crua biografia da figura ou tipo popular que, pela suas virtualidades cênico-cômicas, faz a grandeza do texto poético. Falar com descontração, no registro oral, é uma coisa. Transformar em síntese poética tais figuras ou tipos é tarefa difícil de composição literária. Que formas de linguagem, que semântica expressiva, que dicção adequada ao personagem resultariam eficazes em obras de arte poética? Só muita experiência, talento e domínio da técnica do verso.
Da mesma sorte, ao artista da charge se exigem dotes especiais, de atenção, de concentração, de perspicácia visual-anatômico-psicológica para captação, no caso, pela via indireta, ou seja, pela linguagem literária, dos traços certos do personagem desenhado em direção ao que física ou moralmente é depreendido e transfundido pela desproporção das formas e pelo exagero das pinceladas do artista. Traços certos que seguramente são o reflexo da verdade do texto.
Penso que Gervásio Castro atingiu esse ponto de captação de cada figura ou tipo por ele caricaturado, sem se falar aqui da forma erótica ou mesmo obscena implícita, explícita ou no nível da ambiguidade pictórica, cuja depreensão depende da perspectiva do olhar do observador do desenho, tal como ocorre com as figuras de Maria das Cabras, Lobaia, Pacamão e Simplição. Convém ponderar que nos poemitos nem sempre há charges, há também caricatura, entendendo os dois processos artísticos de criação pictográfica conforme a realidade físico-psico-moral da figura ou tipo tratados pelo desenho.
Se a figura ou tipo configuram uma sátira pura ou humor, tem-se a charge; se há apenas a intenção do desenho acentuando o lado humorístico das gestualidades, dos “vícios e hábitos particulares em cada indivíduo”, tem-se a caricatura. Ambas as formas de ilustração não podem prescindir do exagero e da intencional desproporção de traços. É preciso que, ao olhar para a charge ou a caricatura, logo venha, sem esforço, à mente a pessoa ali figurada. Não podemos, ademais, levar ao extremo afirmando onde exatamente começa e termina a fronteira entre a charge e a caricatura.
É pena que, numa simples Apresentação aos PoeMitos da Parnaíba, não tenhamos espaço para aprofundarmos a análise das duas linguagens que ora se apresentam, juntas, no trabalho criativo do poeta e na destreza genial dos traços do chargista parnaibano. Entretanto, dou uma sugestão em mão dupla ao leitor: leia o texto de Elmar e, em seguida, faça a leitura visual das charges procurando no intertexto pictórico a literariedade dos PoemMitos da Parnaíba. Use a outra mão, e veja o resultado produtivo do processo de leitura inverso.

Rio de Janeiro, 05 de setembro de 2009

* O texto acima é reprodução da Apresentação (p. 7-13) do livro PoeMitos da Parnaíba, de Elmar Carvalhoo. Teresina: Gráfica do Povo, 2009, 64 p.

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