segunda-feira, 2 de novembro de 2009

A literatura que vende

A literatura que vende

Cunha e Silva Filho


Uma vez, conversando informalmente com um professor universitário que me deu aula no doutorado, a um passo de nossa conversa, me fez (ou fez a si mesmo a meia voz ) esta pergunta em tom de perplexidade: - Por que Paulo Coelho vende tanto livro? Que mistério seria esse que faz de um autor um best-seller pelo mundo afora? Eu tenho minhas dúvidas sobre o fator determinante de tanto sucesso, concluiu ele com um rosto demonstrando funda reflexão a respeito do tema do sucesso de um ficcionista.
Inferi de suas palavras um certo convencimento de não ser possível no autor best-seller, não haver alguma coisa expressa em forma de valor na sua obra, quer dizer, os livros daquele escritor seguramente contêm algo que, por ser minimamente positivo no campo da ficcionalidade, induzisse leitores, mesmo em traduções para inúmeras línguas, a serem atraídos pelo seu universo constelado de magos, aventuras de peregrinos, feiticeiros e sortilégios contagiantes.
Aquele meu professor, ele próprio, tem livros publicados na área da ficção. No meio acadêmico universitário, acredito que seja respeitado e até admirado. Contudo, meu ex-professor não se tornou um sucesso de venda, e talvez não o será, como outros bons ou ótimos prosadores nossos, contemporâneos ou não.
Essa preocupação de um ficcionista de talento, mas que não vende tanto assim, dá o que pensar se voltarmos nosso foco para a questão da atividade literária, questão que, no fundo, envolve compreender por que a literatura de bom ou alto nível de formalização estética não tem vingado em geral, no meio editorial brasileiro, ou melhor, não tem se transformado em, pelo menos, relativo êxito de venda.
Vejo, entre outras razões, um componente antagônico nessa relação entre escritor e público leitor: o ficcionista da literatura de estilo mais complexo, mais sofisticado, em grau maior ou menor, vai com certeza apenas dispor de um número de leitores intelectualmente equipados a assimilar e a fruir esteticamente aquela escrita que, como dado de construção, não vai abrir mão do experimentalismo na sua forma narrativa. Creio que em parte será esta a condição em que sobreviverá esse autor de estilo literariamente elitista, empregando este termo na sua acepção de qualidade e não como forma de criar arte ficcional de viés social e culturalmente preconceituoso, o que não seria correto na criação artística em geral.
Nesta sentido, não há senão que divisarmos, grosso modo, dois tipos de autores no gênero da ficção: a) os que escrevem para atender a um público não exigente culturalmente falando, ou seja, tratar-se-ia de um escritor para o leitor de background mediano: b) os que permanecerão cultivando um estilo literário para cuja compreensão e deleite estético implica leitores com repertório cultural sofisticado, em nível, pois, de compatibilidade receptiva aos intrincados meandros da narrativa atual.
Essa questão, a meu ver, se põe como desafio à sociologia da literatura. Todavia, não vejo que as duas espécies de escritores aqui considerados manter-se-ão continuamente em campos opostos.no tocante ao problema do sucesso de venda. Ocorre-me, agora, recordar aquele estudo de Antonio Candido discutindo, com a conhecida argúcia e luminosidade de sua crítica, o papel da literatura junto à sociedade em escalas de estratos sociais diversos. Aludo ao ensaio “O direito à literatura”, que faz parte da obra Vários escritos (São Paulo: Duas Cidades, 1995, p. 235-263), sobre o qual escrevi um artigo, nesta coluna, de título “A literatura como inclusão social”.
Para Candido, a compreensão da literatura, ainda que nas suas formas de expressão estilística refinada ou revolucionária, deve ser um bem cultural a ser compartilhado por todas as classes desde que, com o avanço da educação dos indivíduos, possam estes alcançar um nível de excelência ou próximo desta tanto quanto o das segmentos sociais mais letrados que ainda detêm essa hegemonia de absorção e assimilação da chamada alta literatura ou das outras espécies de arte ainda privilegiadamente consumidas pela burguesia letrada.
Por outro lado, há que levar em conta um outro ângulo da mesma questão. O exemplo de Paulo Coelho não é, como todos sabemos, um caso tipicamente brasileiro. Sua literatura transpôs fronteiras de países altamente letrados e, mesmo nestes, o sucesso de vendas se mantém.A literatura mundial de best-sellers seria outro exemplo de venda certa contada em cifras de milhões de cópias vendidas no Brasil. Somos ainda, infelizmente, culturalmente apegados ao que vem de fora, ainda que não seja sempre de qualidade. É um exemplo nosso, entre outros, de comportamento de leitor ainda persistentemente colonizado via leitura de origem estrangeira notadamente de autores de língua inglesa.~
Mas, então, podemos argumentar: em outros países, da mesma forma que no nosso, a mediania de leitores é uma evidência. Portanto, não é um país altamente letrado que vai responder por essa questão de sucesso editorial.
A questão para mim se desloca para um outro patamar. A elevação do nível cultural dos leitores não deve ser considerada como um grande bloco privilegiado de indivíduos, mas como leitores isolados que, por uma razão ou outra, atingiram um alto nível de capacidade interpretativo-crítica a ponto de se igualar a determinados segmentos da burguesia altamente culta.
De outra parte, nada me assegura que, com a elevação cultural do público leitor, tomado na sua globalidade, haverá por força de mudanças de hábitos de cultivo da inteligência no domínio literário, uma melhoria tão significativa, a despeito das esperanças nutridas por Antonio Candido na fruição desejável das complexas narrativas contemporâneas ou pós-modernas, produzindo cada vez mais ficções ( ou mesmo poesias), as quais teoricamente se chamam de metaficções, ou seja, ficções sobre os mecanismos internos da própria criação literária, tão distantes formalmente daquela velha forma literária de alguns narradores tradicionais – José Américo de Almeida, Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo, Raquel de Queirós, entre outros - que centravam sua estórias predominantemente na criação de personagens, enredos espaço social ou psicológico, utilizando um estilo literário sem experimentalismos, sem grandes rupturas ou subversões estilísticas (caso da primeira geração modernista de 1922) que dificultariam o entendimento dos leitores, quer médios, quer mesmo cultos.
Daquele citado grupo de ficcionistas da chamada geração dos anos 30 e 40, regionalista ou urbana, talvez só Graciliano Ramos apresente certa diferenciação nos modos de sua narrativa em razão de alguns elementos de sua estrutura ficcional que já indicam inovações no equacionamento do enredo e mesmo da linguagem já em alto nível de qualidade estilística. Não se desejando, entretanto, aqui desconsiderar aqueles autores que, da mesma forma, escreveram algumas obras de altíssima qualidade literária. Entretanto, eram obras de ficção que tinham um legibilidade mais acessível a uma gama de leitores.
Penso que o excesso de instrumentos estilístico-formais na ficção contemporânea seja um fato determinante da persistente carência de leitores de hoje que se afastam do texto narrativo na medida em que ele se volte mais para tentar construir ficção com a obsessão de fazer da trama da obra um exercício centradamente metaficcional, sobretudo daquele romance que, em geral, tem como protagonista um escritor, o que é dar um primeiro passo para cair no vezo da arte ficcional autocentrada nos processos de ficcionalização, da quebra de ilusão mimética do realismo, num desvelamento que vai mostrando ao leitor que ali tem ele uma “construção da realidade” e de como o autor foi montando suas peças servindo, principalmente mais ao próprio autor ou a um seleto grupo de iniciados nas técnicas de desconstrução do edifício tradicional do antigo romance de origem burguesa de começo, meio e fim, do “velho e clássico realismo burguês,” cujo centro de gravidade era o enredo e os personagens, seguidos da linguagem, mas não fazendo desta o centro de atenção do leitor.
Os autores esquecem o fato de que o leitor, na obra, procura o prazer de, durante o tempo da leitura, conviver com vidas, com experiências ou vivências de personagens cheios de sangue, de nervos, mas também de alma, numa narrativa que nos permita haurir o sentido da realidade da vida e de seus problemas pelo mistério da criação literária. É pedir muito?

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