quinta-feira, 8 de março de 2018

SOBRE A AMIZADE E OUTRAS VARIAÇÕES

                             

                                                                             Cunha e Silva Filho


           A amizade é um vocábulo cuja acepção tem que ser levada a sério. Não pode ser  banalizado nem pode ser  dito da boca pra fora, a não ser quando,  em circunstâncias ditadas apenas pelas convenções sociais,  seja usado por mera formalidade, como sói acontecer amiúde nas redes sociais. No segundo caso,  o seu uso é vazio  de sentido. Creio que, na psicologia  do brasileiro em geral,  há uma tendência a tratarmos  outrem com  uma certa  intimidade ainda que, aos olhos do interlocutor,  sintamos  um certo   desagrado. 
          Ou seja,  somos  avessos aos protocolos e, por conseguinte, só  a muito  custo  aceitamos  os distanciamentos.   Preferimos as liberdades, as  aproximações antecipadas, as intimidades.  Por esta razão não apreciamos os diversos  pronomes de tratamento  na comunicação oral  e descontraída. Escolher um “você,” um “tu, ” um “senhor” causa  alguma dificuldade no nosso  interior. Em razão mesmo  dessa dificuldade  de uso de tratamentos, há duas  opções gerais: ou usamos em grande parte do país,  um “você,” como é tão frequente no Rio de Janeiro, ou, em outras regiões, no Sul do país, por exemplo,  empregamos  um “tu.” Por outro lado,  o mesmo indivíduo, ainda tomando o Rio de Janeiro como referência,  usa indistintamente , no mesmo dialogo,  os pronomes  você e tu( mistura de tratamento), o que é muito  frequente no  português do Brasil, já bem observado  pelo  linguista J. Mattoso Camara Junior (1904-1970).
          Porém, não é  de gramática ou variações linguísticas  que quero falar nesse texto, mas do sentido da amizade nas relações humanas, atualmente ou  em priscas eras. Em resumo,  a minha hipótese, se é que é hipótese,  é a de que o fator  determinante   da amizade  vitoriosa  não é sempre o tempo, seja de cinco, dez, vinte,  trinta anos ou mais. No conjunto de  fatores  secundários que leva duas pessoas  a manterem  uma saudável amizade  por toda a vida teremos que  considerar as afinidades  de ideias,  de gostos,   de valores  éticos, religiosos, ideológicos  e de outros valores culturais.
        Tomemos, em princípio, a categoria tempo, a duração  das amizades e seu fim. Dois amigos se encontram,  Começa uma amizade  que  dura um longo tempo. De repente,  não se sabe por que cargas d’água,  um foge do outro sem explicação plausível alguma. Evidente que  houve um fator de estremecimento da amizade.Houve uma razão  íntima que não aflorou às consciências de ambas  as partes. Da noite pro dia  apagou-se a chama da amizade.
       Subitamente,  a amizade feneceu,  deixou de nela haver  um sopro forte  do verdadeiro sentimento  da amizade, vocábulo  que, na sua formação  está intimamente  ligado à união, ao amor no sentido  lato. Os dois lados se separaram. Houve, então,  um quebra, uma ruptura  de afinidades  eletivas que, num átimo, desfez  todo  um  repertório de sentimentos  de mútua admiração que  se pensava ter enraizado.  E aí, doce ilusão, a amizade  perdeu  a motivação,   os liames  sólidos que  a mantinham inabalável como uma rocha. Entre a amizade de outrora e a realidade atual fez-se um abismo. Contudo,  os fundamentos da amizade ruíram  e se preferiu o silêncio  das partes. Cada qual foi cuidar de seus restos de vida. Aquele sentimento  inicial,  tão caro ao ser humano,  aparentemente virou uma página final  de um livro.
       Me vem, agora, a imagem da baleia de Moby Dick(1851) de Herman Melville (1819-1891)). Nada sobrou  após a vitória dela e o naufrágio  de todas as perseguições debalde  feitas contra  ela. Só o oceano - pélago profundo -,  ficou como  testemunha  da fúria dos homem e da baleia branca.
       Uma vez  uma senhora me falou que a vida de cada um de nós tem um “prazo de validade.”  Com todas as letras eu poderia argumentar   contra essa assertiva. Mas, não vem ao caso aqui  alongar-me por  estas divagações  existenciais. No entanto, recuando  diante da minha dúvida, estendo  a minha linha de raciocínio àquela  observação das senhora e me pergunto ou pergunto a Você,  leitor querido:  “A amizade tem prazo de validade?” Eis uma pergunta que bem merece uma  discussão homérica.
    Retorno à minha hipótese sobre a amizade e a sua durabilidade. Na minha experiência de vida,  tenho   comprovado  que a amizade é uma “vexata  quaestio.” Posso  adiantar que já provei dela e de sua permanência,  como já  senti   o gosto acre  de suas perda  que sempre me deixou  intrigado e a me questionar: “Por que acabou?  Como se explica  isso?”  Num abrir e fechar de olhos  se evaporou.  Mas, a grande questão é que não estou me referindo somente  a quebra da amizade entre familiares que é, por sinal,  terrível em suas consequências  psicológicas, emocionais, sentimentais) mas  sobretudo a amizades entre  estranhos que se tornaram  amigos e que resultaram  desastrosas  no enfraquecimento  de seus laços  tão profundos.
      No nosso  “eu  profundo," como diziam os poetas simbolistas,  de vicissitudes, que   amargamente   colhemos   pela vida afora,  é que sentimos a alma dilacerada.  É certo que muita gente   de altas qualidades morais  nos estimam. Contudo, é certo também  que, a qualquer momento,  por um motivo ou outro, lá se vai   fenecendo a amizade que supúnhamos   duradoura. É tudo tão imprevisível como o ser humano, essa  esfinge que nos   espreita  no curso de nossa existência, de nossa  travessia  pelo sofrido  mundo dos vivos.  
   Há um consolo que gostaria de cultivar: que as nossas amizades durem a efemeridade  própria  do ser humano  no planeta Terra. Não é isso uma solução  à amizade transcendente, mas,  pelo menos é um fato  que  vamos   constatando  com o passar dos anos.  Ah,  terminei me esquecendo de   dar demonstrações cabais  de minha  pobre hipótese  de trabalho.
     Deixarei, assim, para as locubrações (termo que, pela primeira vez,  vi  no título homônimo de um  livro do escritor maranhense Antonio  Henriques Leal (1828-1885), no exemplar datado de 1874 que pertenceu a meu  pai e que guardo com carinho há tanto tempo)  muitas vezes, áridas e cansativas  de uma possível   dissertação acadêmica, com bibliografia,  ementa e  tudo o mais  que os muros das universidades tanto prezam.  Por falar desse autor maranhense,  que se doutorou em medicina no Rio de Janeiro, foi Comendador da Imperial  Ordem da Rosa,  Membro do Instituto  Histórico, Geográfico e Etnográfico e da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa. Alfredo Bosi, em sua História concisa da literatura brasileira,  por equívoco, afirmou ser português esse autor maranhense.
    Em Locubrações (em português  há duas  variações gráficas “lucubração” e “elucubração”), obra  dedicada  ao Imperador Pedro II. Além de reunir  estudos científicos  realizados  pelo autor, ele dedicou um capítulo, “A literatura brasileira contemporânea” (p.187-233), escrito em Lisboa. Outros capítulos ainda discorrem  sobre uma edição de Iracema(1865),  em ensaio  de caráter filológico,  de José de Alencar (1829-1877), sobre autores portugueses, um ensaio sobre a Guerra do Paraguai. Locubrações se divide em duas  partes: ciências e  letras. Merece uma  leitura ou releitura, sobretudo   porque  é uma oportunidade de entrarmos em contato com  as perspectivas  críticas do autor  sobre  alguns autores brasileiros  mais conhecidos  de então.
      


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