Cunha e Silva Filho
A literatura é uma arte construída com a linguagem
A. Hill
Este estudo pretende mostrar
como João Antônio (1937-1996), contista paulista, conseguiu imprimir à
linguagem uma marca revolucionária a partir mesmo da sua obra de estreia,
Malagueta, Perus e Bacanaço (1963). Nas décadas
de sessenta a oitenta do século passado, João Antônio foi voz destoante da
maioria dos ficcionistas então surgidos, exatamente porque ambientava histórias
no submundo da malandragem ou nas camadas sociais mais desvalidas da sociedade
brasileira, ao passo que escritores dele contemporâneos situavam histórias
sobretudo no ambiente da classe média, com seus conflitos existenciais e suas
frustrações sociais e políticas durante a ditadura militar implantada no país
em 1964.
O autor, uma voz quase solitária, voltando-se
aos humildes e à marginália, encontrou uma original e subversora forma de
discurso ficcional se contrastada com seus contemporâneos. A primeira parte de
nossa análise procura demonstrar que a linguagem do contista vem a ser, na
história da literatura brasileira,uma voz rara de um ficcionista que consegue
com êxito e originalidade recuperar a fala dos oprimidos , ou melhor, que consegue libertar o
texto sequestrado nos termos formulados pelo crítico Donald
Schüller, conforme veremos adiante .
A segunda parte deste trabalho, considerando
um
corpus de cinco contos
[1], detém-se em quatro aspectos da linguagem
do autor: comparação, gíria, frase sentenciosa e um paratexto, a epígrafe. A
análise demonstra que, ao mobilizar tais recursos estilísticos, o escritor
sempre teve como finalidade romper com práticas ideológico-expressivas do discurso
ficcional de estofo burguês.
No estudo de Jesus Antônio Durigan, “A
ciranda da malandragem, ” há uma observação que bem de perto singulariza a
ficção joãoantoniana como obra subversora no que concerne ao componente da
linguagem:
(…) Ao contrário de
muitos narradores que falam da pobreza, às vezes do alto da torre, seu narrador assume e, com isso, dá voz ao objeto representado.
(grifo nosso ) (DURIGAN, 1983: 218)
Tomando-se em conta o lexema “ voz ” e o
sintagma “ objeto representado”, podemos combinar os termos de nossa equação
que configurarão não só a linguagem , mas também a sua correspondente
estratificação social . Ou seja, o escritor delimitando o seu mundo
representado – o espaço da malandragem – e o discurso que lhe servirá de canal
comunicativo, através de uma adequada e original manipulação da linguagem
literária plasmada não nos moldes tradicionais do discurso das classes
dominantes, mas – e aqui podemos divisar sua originalidade –, partindo de
uma engenhosa maneira de combinar esteticamente
a língua literária e a oralidade do
discurso popular.
O resultado, proposto nos termos do
texto joãoantoniano, não conduz ao artificialismo que comumente verificamos em
tantas tentativas de aproximar a linguagem literária da oralidade.Diríamos que
talvez semelhante tentativa vitoriosa podemos apenas observar na fala dos
personagens de Guimarães Rosa, tal como foi lucidamente compreendida pelo
ensaísta Paulo Rónai (RÓNAI, 1972: 29-58), isto é, o processo de adequação
ficcional linguisticamente verossímil se dá através da utilização de uma forma
elaborada criada pelo artista no sentido de convencer o leitor, sem cair no artificialismo
naturalista. A linguagem dos personagens rosianos nos passa a impressão
de verdade e convencimento. Sentimo-la como tal, graças
à engenhosidade alcançada pelo ficcionista que, não abdicando de seu estatuto
literário, consegue ajustá-la à psique dos personagens. É a elaboração
literária que dá naturalidade à linguagem.
Desta maneira, a linguagem a que recorre
o autor não é, como parece a alguns analistas de sua obra, nada
descompromissada com a arte literária. Não se confunda arte literária da
narrativa de estofo burguês com arte literária de estofo popular. O tema pode
ser popular mas a linguagem pode até bem
ser aristocratizante em seus artifícios e fórmulas de construção narrativa, como
de certa maneira ocorreu a Macunaíma, de Mário de Andrade.
Ao contista importa - e muito -,
o componente linguístico. O estranhamento que o leitor experimenta no primeiro
contato com a sua ficção é aquele universo autocentrado na expressão da
linguagem, nos lembrando uma realidade
que mal conhecemos, mas na qual podemos identificar determinadas situações da
comunicação social. O saldo que obtemos pela persistência da leitura não é
desanimador, embora por vezes haja certos trechos do seu discurso que nos
enredam e causam perplexidades pelo inusitado da sua sintaxe e sobretudo de seu
campo vocabular.
Compreendemos, mais tarde, que o
estranhamento ou perplexidade do seu discurso ficcional, ao contrário , se
funda na própria realidade violenta e ambígua do “ jogo da vida ” dos seus
personagens marginalizados, geradores de sua própria linguagem, linguagem essa
cifrada pela dor do medo e da força bruta de suas vidas diante da luta pela
sobrevivência, quer a condenemos ou não , nós outros bem instalados em sofás
burgueses.
Não procede, a nosso ver, a afirmação de
estudiosos da literatura brasileira que não percebem em João Antônio um
escritor que tenha contribuído sem dúvida com novas formas de linguagem e
recursos de técnicas narrativas. Ao contrário, no contista pouco mais veem do
que uma surrada dimensão de cunho populista, o que não é verdade, segundo temos
procurado demonstrar até aqui, assim como ainda o faremos no decorrer do estudo.
Ora, não é preciso ler João Antônio por
inteiro para se constatar os inúmeros recursos inovadores de sua ficção e de
seu discurso, mesmo a partir da obra de estreia. Que exemplo mais taxativo da
qualidade estilística de um escritor do que aquela peça literária magnífica, aquele
instante de lucidez de composição e de avanço estético, que é o texto
“Amsterdã, ai!”, da obra “Abraçado ao meu rancor (1986).”
[2] Esse texto apenas é suficiente para
o considerarmos um ficcionista que atingiu o ponto mais alto de sua maestria e
de consciência técnica de produzir literatura de qualidade universal.
Um dos mais intrincados dilemas (ou problemas)
de qualquer autor de ficção – a linguagem literária –, se coloca sempre que o
criador se defronta com a técnica da narrativa, isto é, como irá lidar com o
discurso do narrador e do personagem, e sobretudo como deverá
falar este
último o seu discurso quando representa um indivíduo analfabeto ou semiletrado
ou mesmo um doente mental ?
[3] No exemplo de João Antônio, a voz
narrante se encontra entre estas situações, é a voz de um malandro, de um
marginal. Qualquer tentativa de fazer esta voz articular-se por padrões cultos
ou letrados se torna falso e inoperante.
A questão de dar voz ao personagem, que é
o que acontece com o texto joãoantoniano, nos remete agora a um elucidativo
capítulo, a nosso ver,chave para aprofundarmos o exame da linguagem do autor. Referimo-nos
ao ensaio de Donald Schüller, Teoria do romance , em
especial o capítulo 3, sob o título “Intertextualidades,” no qual focaliza o
que denomina texto sequestrado e texto liberto.
(SCHÜLLER, p. 25.)
Schüller, de forma sucinta, conforme a
natureza do ensaio, concorda com a ideia de quem viu em Macunaíma,
de Mário de Andrade, alguma “ ressonância alencarina” logo na introdução do
romance, argumentando em seguida que os pontos divergentes entre o romance de
Mário e o de Alencar, Iracema, são também visíveis.
Primeiramente, discutindo a parte de
capítulo “ Texto sequestrado,” lembra que Carlos Fuente vê a América Latina
constituída de “ textos sagrados ” que precisavam de ser profanados a fim de
dar voz a “(…) quatro séculos de linguagem sequestrada marginal e desconhecida.”
( Idem , ibidem, p. 21) É à volta desta questão – ou
sequestro do texto – que Schüller desenvolve uma breve e fina análise de Macunaíma.
Mário de Andrade, considerado o
subversivo da linguagem literária canonizada e há séculos detentora do
monopólio daquela linguagem, não foi bem entendido por filólogos, gramáticos e
mesmo colegas da aventura ficcional.
[4] Apegados a uma visão dissociativa
entre a linguagem literária e linguagem popular, entre o culto e o coloquial, aqueles
estudiosos não alcançaram o sentido inovador , estético-parodístico de
Macunaíma,
já que lhes faltava conhecimento teórico de narratologia, das implicações
complexas entre narrador, personagem, focalização, tema, leitor etc. A visão
que demonstravam era meramente unilateral. Era o ponto de vista gramatical então
dominante,e que de certa maneira se manteve durante muito tempo depois do
lançamento de
Macunaíma.
Com
base na tese de sequestro do texto, mostra que o “ herói sem caráter ” provindo
do mundo primitivo das florestas, assimila a cultura dita civilizada de forma
acrítica. Sua visão se inverte, passa a falar, ou melhor, a escrever na língua do dominador, segundo
vemos na “ Carta pra Icamiabas.”
O “ herói sem caráter ” não sequestra só
a linguagem, a falada, mas a escrita , a
letrada, a erudita. A força do texto sequestrador invade também a realidade. A
inversão assume, então, a sua dimensão paródica. Macunaíma passa a ver São
Paulo como um paraíso. Aos olhos da cultura autóctone,é visto como “ reformador,
” com experiência da vida industrial paulista. A “ Carta pra Icamiabas,” não é
senão a forma contundente, que Mário de Andrade emprega para ridicularizar a
ignorância e a impostura sob a capa de saber clássico do civilizado, incapaz de
revelar a real face da civilização, isto é, o texto sequestrador é impotente
para exprimir o “ referente. ”
Em seguida, adianta que o
conservadorismo da linguagem do sequestrador é mais durável que o político. Para
ele, Mário de Andrade visa romper com o “ mundo sequestrado.” Cumpriria a Mário
lutar por essa libertação não só ideológica mas sobretudo da língua literária. Por isso, seria preciso
desconstruir o texto sequestrador, a fim de que, mostrando suas falhas, limitações
e principalmente seu absolutismo, surgissem da destruição as outras vozes
subjugadas. Adverte com razão Schüller que Mário de Andrade não foi o primeiro
a dar esse passo. O passado também tem peso e voz, insinua o ensaísta. Nesse
caso, disso seriam exemplos um Gregório de Mattos, um Manoel Antônio de
Almeida, um José de Alencar, um Lima Barreto, um Machado de Assis.
Num segundo momento da mesma parte do
capítulo em questão, ainda desenvolve reflexões sobre uma outra situação de sequestro
do texto, dessa vez voltando sua atenção para a obra Vidas secas,
de Graciliano Ramos. Recorda que, no caso de Macunaíma, o sequestro
se dá de fora para dentro. Agora com Vidas secas, o sequestro
é de ordem interna, dando como modelo o personagem Fabiano. O uso da linguagem
no conhecido personagem se realiza mais nos gestos e nos movimentos, porque, segundo
o ensaísta, Fabiano se comunica “num estágio anterior ao discurso lógico.”
( Idem, ibidem, p. 23.) Fabiano, mal se comunicando com simples
ordens ou interjeições e expressões soltas de indignação, se assusta com a
realidade dos que detêm melhor o poder da fala ou são investidos do poder
instituído, o soldado amarelo, o interlocutor privilegiado que o acabrunha e
deixa-o inerte e sufocado.
Schüller, ademais, mostra que a
linguagem de Fabiano, um ser incapaz de se articular normalmente, foi, portanto, outra vítima de sequestro linguístico
interno. Assustado até mesmo no seu habitat, amedrontado com o
discurso alheio, ato linguístico acima das possibilidades de retirante sem voz
e vontade mesmo de lutar contra as condições mesológicas, Fabiano – escreve
Schüller –, situa-se entre “o homem e o animal. ”
Fabiano é o indivíduo preso às forças
primitivas e cósmicas, um personagem atado a instâncias diversas, um ser a quem
se negou a própria linguagem como forma de representação plena e decisória. Por
isso, finaliza o crítico, o texto sequestrador impede que a matéria narrada
manifeste a sua própria natureza e forma de linguagem liberta.
No terceiro momento do capítulo 3, “O
texto liberto, ” analisa o discurso de Riobaldo em Grande Sertão Veredas,
de Guimarães Rosa. Partindo de elementos internos da narrativa, receptor e
referente, frisa que o objetivo do narrador é conseguir sua autonomia.
Em Grande Sertão Veredas encontramo-nos
novamente com a questão do texto sequestrado e sequestrador, com a diferença de
que agora se soltaram as amarras do discurso sequestrador que vem acompanhando
o percurso da literatura brasileira desde os árcades, passando pelo indianismo
e mesmo chegando até os modernistas, com as raras exceções em que houve, em
certa medida, a busca da autonomia de voz do discurso literário em confronto
com o discurso dos dominadores. Desta forma, o texto liberto permitirá que a
fala do sertanejo de Minas assuma o próprio controle da expressão de sua
subjetividade, de seus conflitos, dúvidas e contradições, livre dos interditos
longamente consolidados pelo discurso elitista e reacionário. Ou, como
salientou Schüller, o discurso de Riobaldo deixa de ser servil, não se permite
assimilar ao discurso do civilizado. Fala como igual, não só com respeito aos
problemas existenciais locais como também verticaliza sua universalidade. É um
personagem disponível à libertação. Seu diálogo com o mítico ou civilizado
mantém-se equidistante. Não se dobra ao silêncio. Seu discurso rompe
hierarquias da mesma, reconhece o ensaísta, como havia ocorrido numa
modernidade antecipadora com Machado de Assis, outro ficcionista avesso à
subserviência de uma linguagem presa a um passado estéril, acrítico e acomodatício.
No caso particular de João Antônio o
dado externo, de natureza meramente biográfica, não pode, porém, deixar de ser
considerado O autor, antes de se tornar ficcionista, vivenciou aquele nível de
linguagem do marginal e das populações humildes muito antes de transformá-lo em
escrita literária. A sua linguagem resulta, conforme assinalou Cassiano Nunes,
da “ vivência, não só da observação. ” (Cf. NUNES, 1983: 35)
As falas, os desabafos e os monólogos
dos personagens malandros, iletrados e miseráveis, nos dão a mesma sensação (
auditiva ) que ouviríamos daqueles mesmos tipos sociais, ou seja, encontram uma
perfeita e admirável homologia, no plano literário, graças
à impressão sonora e movimentos rítmicos resultantes do tipo de frases, torneios,
pausas e construções empregados pelo escritor, com o mundo empírico. Tal é a
habilidade de elaboração estética lograda pelo caráter oral do
discurso. É aquela mesma impressão de autenticidade artística
que podemos sentir quando lemos um texto rosiano, conforme já acentuamos anteriormente.
Esse procedimento em lidar com a
linguagem nada tem a ver com a reprodução artificiosa e pouco convincente que, no
Pré-Modernismo, inclusive em Lima Barreto, e, depois, em pleno Modernismo, alguns
autores procuraram aproximar a linguagem literária da oralidade, ainda
mesmo se levarmos em conta uns poucos ficcionistas que tentaram fundir, no
discurso do narrador, expressões ou modismos do discurso oral e regional dos
personagens, segundo bem demonstrou o José Maurício Gomes de Almeida em estudo
fundamental sobre o romance regionalista brasileiro. (ALMEIDA, 1980: 137)
Salienta aquele crítico que
Oliveira Paiva, em Dona Guidinha do Poço (c.
1891), romance escrito, pois, nos fins do século 19, mas só publicado em 1951
por estímulo de Lúcia Miguel Pereira, segundo nos dá notícia Alfredo Bosi
(BOSI, 2001: 195-196), já marca a presença de uma obra cuja linguagem prefigura
características expressivas do romance de 30 e bem assim alguns traços
expressivos regionais de Guimarães Rosa (ALMEIDA, 1980: 142 e 144). Ou seja,
antecipou-se mesmo no uso da linguagem literária a outros autores de valor que
surgiriam posteriormente e se distinguiriam pela assimilação, pelo menos ao
nível do léxico, das formas de linguagem dialetal de um Valdomiro Silveira e
Simões Lopes Neto, estes já próximos do Modernismo.
Entretanto, provavelmente foi em
Guimarães Rosa que a linguagem literária, pelo caminho da oralidade, radicalizou
a aproximação do narrador e do personagem, alcançando uma fase de invulgar capacidade
expressional, colocando em pé de igualdade a linguagem dos dominadores e dos
dominados.
Essa mesma estratégia com resultados
positivos – não confundir com o material linguístico, erudito, neológico, ou
meramente popular ou regional de que copiosamente lançou mão Guimarães Rosa –
no trabalho com a escrita literária identificamos
em João Antônio. Estamos falando nesse caso de realização artística, de
adequação de linguagem conseguidas por um escritor urbano e
por um ficcionista regional mas de dimensão universal.
Em João Antônio a linguagem parece ser, entre
os escritores dele contemporâneos, uma das mais bem acabadas formas de
realização do discurso da oralidade compatível com a classe
social dos personagens, não apenas ao nível do léxico, mas sobretudo ao nível
sintático, ao ritmo e musicalidade da frase, e a um estilo literário que, lido
em certas passagens , parece mimetizar o próprio ritmo das falas e ações dos
personagens. Ou seja, da fala dos personagens percebemos não só o desenvolvimento
da trama, mas principalmente um certo gosto
de experimentar o prazer da construção do texto, num ludismo de linguagem cujo
objetivo é talvez testar os limites das virtualidades rítmicas, melódicas e
semânticas da frase, da construção, enfim, do discurso narrativo malandro.
Essa estratégia é intencional, o seu caráter metalinguístico é
incontestável:
A cambada é grande, folgada, pensando que
a noite lhe pertence, ainda mais aqui nestas casas da Zona Sul. O que vai me
baixar pela frente, não está em nenhum caderno. O que vai pintar de trouxa, espertinho,
pé grande, mocorongo do pé lambuzado, muquira, bêbado amador, loque, cavalo de teta, Zé mane dando bandeira,doutor
de falsa fama,papagaio enfeitado, quiquiriquis, langanhos, paíbas, não será fácil
. Eu aturando, ô pedreira ! ( LC, p. 5-6 )
É nesse nível de inventividade
estilística que podemos considerar João Antônio um escritor original e
conscientemente empenhado em trabalhar a linguagem. Talvez esse fato tenha
passado mesmo despercebido por alguns críticos, muitas vezes mais interessados
em apontar-lhe uma alegada tendência populista ou ideológica, de que foi vítima
também parte da ficção de Jorge Amado.
Não pretendemos negar alguns elementos, não
todos, da linguagem e do espaço humano que, o contista trouxe do Realismo ou do
Naturalismo do século 19, aí se incluindo, por exemplo, o recurso à gíria, a
linguagem direta, a preferência pelas camadas mais humildes da população, o
lado documental, a linguagem coloquial, direta, vulgar. (Cf. COUTINHO, 1968:
179-199)
Do Realismo cremos que o contista tenha
aproveitado uma particularidade, de resto, aquela que nenhum escritor deve
subestimar, o cuidado com a linguagem, elevada ao máximo de suas
potencialidades criativas, como são modelos os seus textos ficcionais ou
não-ficcionais, nos quais mais do que os temas, os enredos, a preocupação com a
linguagem e com os recursos narrativos de composição está sempre presente na
sua atividade de artífice da palavra, quer nos textos ficcionais ou
não-ficcionais, quer nas entrevistas, nos paratextos que nos legou, como são
insofismáveis testemunhos de sua experiência de escritor e de visão de
intelectual os textos “Paulo Melado de Chapéu Serralho ” (ANTÔNIO, 1980:
79-129) e “ Corpo-a-corpo.” (ANTÔNIO, 1976: 141-151)
A grande distância, porém, a separar o
autor dos realistas/naturalistas está exatamente no fato de que ele subordinou
a escrita literária aos parâmetros da linguagem popular, à autonomia de
conceder o ato de comunicação a um narrador marginal, isto é, um narrador que
recuperou a capacidade de pensar e se expressar por si mesmo, sem mais a
intermediação da voz autoral culta e distanciada do texto sequestrador.
Foi mercê dessa conquista ou estratégia
de renovação do discurso narrativo que o seu texto ficcional adquiriu maior
autenticidade. Foi pela recuperação do texto sequestrado que o ficcionista
optou por uma linguagem transgressora de padrões linguísticos geralmente comuns
em escritores de origem burguesa, conquanto estes se disponham a inovar
técnicas narrativas complexas e sofisticadas.
Nesta parte a discussão em torno da
linguagem do contista se restringe a aspectos pesquisados circunscritos à visão
dos contos analisados, pois foge aos objetivos do trabalho a análise da
linguagem de toda a obra do autor. Isto posto, julgamos merecedores de atenção
no estudo da linguagem do contista quatro aspectos, dos quais os três primeiros
assinalados abaixo são altamente recorrentes nos limites dos contos
pesquisados:
a) O
emprego da comparação de natureza zoomórfica;
b) A
gíria;
c) As
frases sentenciosas;
d) O
uso de um paratexto: a epígrafe.
O emprego da comparação de natureza
zoomórifica
Consideremos o primeiro aspecto, o da
comparação de natureza zoomórfica, o qual para nós não passa obviamente de um
resíduo do Naturalismo, encontrado, por exemplo, em O cortiço, de
Aluísio Azevedo.
A frequência desse traço relaciona-se a
nexos que se estabelecem no plano social entre o homem e os seres irracionais
que, no âmbito da frase, instituem o
processo retórico da comparação ou símile de cunho e matriz determinista. Deve-se
referir neste caso a natureza disfêmica do conjunto de comparações. Isto é, não
se identifica em nenhuma delas alguma que venha exprimir um sentido de
positividade, visto que todos procuram estabelecer uma invariante semântica
rebaixadora no que respeita às qualidades humanas, ou por outra, a
metaforização comparativa esvazia o indivíduo de qualquer valor positivo. Vejamos,
a título de ilustração, alguns exemplos desse tipo de comparação, os quais
destacamos com grifos:
1. Em “ Malagueta
, Perus e Bacanaço”:
a) “ Não
andam como coiós apertando-se nas ruas por causa
de dinheiro.” ( p.107);
b) “Grudam-se, se
chocam como bichos , que a coisa ali por bem não
vai.” (p.110);
c) “Fica quebrado
, quebradinho, igualzinho à coruja ”. (p.1140)
2. Em “
Leão-de-chácara ”:
a) “(...) mas
também molhando a mão dos ratos (...)” (p.6)
“(...) e esta vida cachorra é
uma dissimulada dos capetas. (...)”
(p.7);
b)
“(...) mandavam de galos nos cabarés e leonavam (...).” (p.9)
3. Em “Joãozinho
da Babilônia”:
a) “ Como feito
um gato velho .” (p.40);
b) “Endeusado
assim , o cavalo deslumbrou e a gorjeta veio dobrada.” (p..45);
c) “O cachorro
não teria tempo de dar à mauser.” (p.51).
4. Em “Paulinho
Perna Torta ”:
a) “A gente na
rua parecia cachorro enfiando a fuça atrás de comida .” (p.62);
b) “ Como bichos
.(p.63);
c) “ Um bicho
gordo . Vermelho , com o cigarro que não saía do bico .” (p.66).
5. Em “ Dedo-Duro
”:
a) “Essa aves ,
de comum , nem jogam, nem apostam (...).” (p.153);
b) “Senti um frio
nas pernas e aquela coisa animal , o pressentimento fera do batedor .” (157);
c) “A rataria
sempre age com rapidez .” (p. 153).
Os três exemplos dos cinco contos
acima dão uma nítida ideia da imagística igualando homens e irracionais com o
objetivo de denotar o ambiente violento e embrutecido do comportamento humano
no espaço da malandragem
A rusticidade dos gestos, reações e
vida desse contingente, combinando carência afetiva e material, resulta na
correlata forma comunicativa e pragmatismo nos relacionamentos sociais tensos
entre os interlocutores.
A gíria
Um dos traços definidores da linguagem
do universo malandro joãoantoniano é a utilização da gíria
[5] que por vezes se confunde com a
própria obra do contista, porquanto frequentemente associada à sua trajetória
de escritor cujo ponto alto gravitou em torno da marginália, em cujo espaço –
devemos reconhecer – imprimiu a marca de sua melhor produção ficcional, tendo à
frente os dois contos primorosos “ Malagueta, Perus e Bacanaço” e “Paulinho
Perna Torta. ”
O recurso da gíria,
[6] se é componente básico na
configuração do espaço da marginalidade, não é, todavia, condição vital à
grandeza de sua ficção. Tanto é assim que o leitor do seu texto jamais vai
entender todo esse léxico ou expressões cifradas da linguagem do malandro, que
requerem pesquisa e iniciação, razão pela qual
sentimos, durante a leitura do texto a falta de um glossário, à
semelhança do que já fizera Antônio Fraga (p. 71-72) para a maior facilidade do
entendimento do léxico ou de torneios frasais irredutíveis à plena compreensão
do leitor.
Mas, se não é vital para a realização
artística do texto, se é apenas um pormenor enriquecedor e marcador da
linguagem de um determinado estrato social, o nível de excelência do texto só
se manifesta quando levamos em conta a maestria do escritor ao conseguir
amalgamar o substrato da tradição literária com os componentes adicionais
provenientes da oralidade de cunho popular.
A gíria entra na substância da linguagem
como forma, aí sim, de ruptura e de reação à linguagem de estofo conservador. Os
elementos de fundo popular contribuem, na fusão com a tradição literária, para
definir uma forma de tratamento estilístico do autor. Dessa maneira, se
justifica o mosaico de frases truncadas, de colagens, de montagens, de
expressões da gíria, de provérbios, de relatos sensacionalistas, já
oportunamente lembrados por Cassiano Nunes (Cf. NUNES, 1983) e Jesus Antônio
Durigan. (Cf. DURIGAN, 1983)
O estranhamento de construções de sabor
popular ou mesmo vulgar, a nosso ver, constitui um sinal de modernidade do
estilo de João Antônio. A sua linguagem, “contra-ideológica,” (NARRID MESQUITA,
SAMIRA: 1984:64) para usarmos uma expressão
da ensaísta Samira Nahid Mesquita vai na contramão do conservadorismo burguês, alvo
frequente da prosa de João Antônio, que mesmo não poupava certos segmentos
acadêmicos da intelectualidade brasileira, conforme podemos ver em textos a um
tempo vigorosos e polêmicos como “ Corpo-a-corpo com a vida ” (ANTÔNIO, 1976:
142-151)
[8] e “O buraco é mais embaixo ” (Cf.
ANTONIO, 1977: 4-5.).
A frase sentenciosa
Assim como a gíria marca a classe
social ou profissional, há na ficção de João Antônio um riquíssimo veio
composto de provérbios, anexins, ou do que se costuma chamar de “ frase
sentenciosa, ” cuja motivação vem expressar aquele mesmo propósito de deixar falar
o vulgo, o ignorante, o grosseiro, o iletrado.
A experiência nos ensina que, no
ambiente de cultura iletrada, semiletrada ou mesmo ágrafa, há uma forte
predisposição para que os falantes reproduzam de geração em geração expressões
populares que formariam parte da sabedoria ancestral. Não confundir sabedoria
com inteligência ou erudição. Ora, essa tradição popular em alguns indivíduos
de pouca ou nenhuma cultura letrada serve muitas vezes como receituário de vida,
ou modos de conduzir a vida, ou de entendê-la nos limites do conhecimento ou
experiência acumulada.
Um caso típico dessa sabedoria ou visão
de substrato popular poderemos ver no narrador-personagem do conto “
Leão-de-chácara, ” o Pirraça, que tem a mania de usar frases sentenciosas como
modo de entender a vida e como forma de se resguardar do perigo e das
dificuldades de sua própria e arriscada atividade de segurança noturno numa
boate carioca.Os provérbios ou frases sentenciosas aparecem também com boa frequência
nos demais contos investigados.
A escrita de João Antônio mais uma vez
rema contra a maré do texto de estofo burguês . O contista parece estar sempre
opondo a contribuição de elementos populares à fala dos letrados como
procedimento recorrente e contestatório.
Ao
recorrer a uma profusão de adágios, o contista renova a linguagem literária
através de inventivas modificações operadas naqueles ou através da contribuição
das frases sentenciosas que passam à condição de verdadeiro manual de sabedoria
dos malandros. Massaud Moisés, comentando a linguagem do contista no tocante
aos contos sobre malandros, cunhou com muita propriedade a expressão “
metalinguagem do malandro ” (Cf. MOISES, 1996: 483-484). O malandro, ruminando
seus monólogos ou em conversa com os outros, é alguém que parece estar
investido de uma filosofia blindada contra as asperezas e perigos da vida: “
Viver é brabo. ”(DD, p.135).
Vejamos alguns exemplos do uso de
provérbios ou dessas mencionadas frases sentenciosas que aparecem nos cinco
contos examinados:
1.
Em “ Malagueta , Perus e Bacanaço”:
“ Sem dinheiro, o maior
malandro cai do cavalo e sofredor algum sai do buraco .(p.102);
“A noite não gosta de
ver ninguém bom.”(p.102);
“ Mas onde há jogo bom,
piranha vem morder. ” (p.108);
2.
Em “Leão-chácara:
“(...) em lagoa de
piranha , jacaré nada de costas ou procura as margens .”(p.7);
“ Aquilo que dá grana ,
dá canseira .” (p.7).
“O falador se dá mal na
vida e o come-quieto só come porque não fala .” (p.8);
“ Comando o pão que o
capeta amassou com o rabo .” (p.12).
3.
Em Joãozinho da Babilônia”:
“Havendo grana ,
malandro fareja.” (p.47);
“ Devagar com o andor
.” (p.49);
“Vacilou, dançou”
(p.52);
4.
Em “Paulinho Perna Torta ”:
“ Mulher só serve para
dar dinheiro ao seu malandro .” (p.78);
“ Quem conta tostão não
chega ao cruzeiro .” (p.98);
“ Fala clarinho, que
para bom entendedor um pingo é letra .” (p. 103);
5.
Em “ Dedo-Duro ”:
“O peixe morre pela
boca (...)” (p.143);
“e sabe o buraco onde a
coruja dorme.” (p.143);
“ Que se foda o andor ,
qu’ eu não me chamo Nicanor.” (p. 144).
As modificações ocorrentes porventura
nos provérbios ou frases sentenciosas, contextualizadas assim num texto
literário, resultam num eficaz exercício lúdico-paródico, de corte irônico, de
muita vitalidade e humor. A ficção de João Antônio mais uma vez dá prova de
inovação de linguagem através dessas inventivas alterações, ou mesmo de
apropriações de frases dessa natureza certamente ouvidas da boca do vulgo.
O uso de um parateto: a epígrafe
Fábio Lucas, em fundamentado estudo sobre a
origens e o desenvolvimento da epígrafe considera esta um “ lema ou divisa ”
cuja finalidade seria exprimir resumidamente “(...) o espírito dominante de um
livro ou de um capítulo deste, ou de uma composição literária .”
[8]
A “ ideia dominante ” de que fala o
ensaísta parece ser a opção adotada por João Antônio, pelo menos nos domínios
dos cinco contos discutidos neste estudo. A utilização, porém, do paratexto em
causa mais uma vez reafirma a disposição do escritor para a atitude
transgressora dos usos convencionais, como a indicar aquele mesmo procedimento
narrativo de trabalhar a linguagem no sentido de recuperar o texto sequestrado,
isto é, o de adequar a realidade da história ao discurso do dominado,
devolvendo-lhe autonomia e autenticidade artística.
Enquanto em geral as epígrafes encimam
títulos de capítulos de obras literárias ou não chanceladas por autores de
renome nacional ou internacional, João Antônio, numa postura intelectual
intencionalmente contestatória, recorre a citações de autores em geral
provenientes da cultura popular brasileira ou ainda puramente apócrifa. Ou
seja, o contista foge, dessa forma, ao vezo aristocratizante das citações em
línguas estrangeiras no original -- até pelo fato de ele próprio talvez não as
dominar -- tão comuns em alguns escritores e autores nossos de todas as épocas,
afastando-se, ademais, daquele “ espírito bacharelesco” ou do “ presunçoso
espírito enciclopédico,” no dizer de Fábio Lucas reprovando “o abuso ” e a voga
das epígrafes entre os escritores modernos.
Assim procedendo, João Antônio se mostra rigoroso e coerente com o seu tema da
malandragem, numa posição literária que nele revigora o compromisso de
valorização da nossa produção não-erudita por vezes vista aos olhos das elites
como de qualidade menor.
O diálogo intertextual que suas
epígrafes mantêm com os cinco contos selecionados encontra-se em perfeita
sintonia com as situações e conflitos apresentados nos contos.
Dessa sorte, ao recorrer a epígrafes
extraídas do compositor Noel Rosa, que aparecem nos contos por duas vezes, uma
no conto “ Leão-de-chácara ”, tirada da composição “ Esquina da Vida, ” de
1932, outra, que se encontra na abertura do conto “Paulinho Perna Torta, ”
tomada à composição “ Século do Progresso, ” de 1934, João Antônio nelas faz
ressoarem as duas realidades entremostradas. Na primeira depreende-se a relação
tensa e dissimulada entre as figuras do malandro e do otário:
É na esquina da vida
Que eu faço o confronto
Do malandro pronto e do
otário
Que nasceu pra
milionário . (LC, p.3)
Na segunda, a mudança da realidade
do malandro que, com o surgimento da arma de fogo, reduziu o seu espaço de
valentia dos tempos áureos da navalha ou capoeira :
Um valente muito sério,
Professor dos desacatos
Que ensinava aos
pacatos
O rumo do cemitério (PPT, p.59)
A utilização da epígrafe ou citação
mostra no contista um procedimento, a nosso ver, abertamente iconoclasta
quando, ao invés de empregar uma citação clássica de outro autor
em diálogo com o texto, o ficcionista o que faz é autocitar-se:
“... quem gosta da gente é a gente. Só. E apenas dinheiro interessa. Só ele é
positivo. O resto são frescuras do
coração.” (PPT, p.159).
Praticando desse modo a
intratextualidade, ele radicaliza ainda mais o procedimento canonizado. Ao
deslocar do corpo do texto narrativo um fragmento para servir de citação, parece
definir uma atitude de deliberado deboche ou indiferença pelas normas
cristalizadas do recurso do paratexto. Ironia que se aprofunda ainda mais
quando, dissociando a voz do narrador da voz do autor – é este quem escolhe as
citações que lhe pareçam convenientes à obra --, como que dessacraliza aquele
espaço reservado às celebridades.
No conto “Joãozinho da Babilônia” nos
deparamos com duas outras epígrafes:uma do tipo intratextual deslocada do corpo
do texto, com a mesma bipartição de vozes, a do narrador e a do autor: “... apesar da idade, tinha tanta coisa para
me ensinar na cama que eu perdi o remorso.” (JB, p.55) A segunda diz respeito a
uma modinha que, segundo o contista, remonta ao tempo de D. João VI no Brasil:
Se os meus suspiros
pudessem
Aos teus ouvidos
chegar.
Verias que uma paixão
Tem poder de
assassinar. (JB, p.35)
Ambas as citações, como nos exemplos
precedentes, remetem a um diálogo temático identificando as duas realidades, a
ficcional e a da citação. Ambas referem os dois motivos que assinalam os dramas
da história, a tragédia de natureza passional e o abissal sentimento amoroso.
Finalmente, no conto “ Dedo-Duro ” mais
uma vez distinguimos o mesmo procedimento no uso da seguinte epígrafe: “ Viver é brabo.” Ou seja, a bipartição de
vozes, a do narrador e a do autor: Desta vez com um tom inequivocamente
dessacralizador: “— aí dentro, ” encimada pelo uso em tom de oralidade indicado
pelo travessão: “ – outra ” Quer dizer,essa maneira de lidar com um texto
ficcional, usando uma explicação da fonte da epígrafe em construção coloquial,
indicia uma postura auto-irônica, carnavalizada, desestabilizadora. Nesse mesmo
conto João Antônio cita uma frase de um vagabundo do Méier,
conhecido bairro do subúrbio do Rio de Janeiro, remetendo a uma situação de
perigo iminente, em diálogo assim com a situação análoga no conto: “De´ repentemente, urubu ‘tá comendo gente.”
(DD, p.133) Veja-se, além disso, a nomeação do sintagma antecedido de travessão,
reforçando o seu sentido de oralidade e ironicamente redundante na explicitação
do paratexto, já que se encontra no próprio espaço a ele destinado na página: “ – uma epígrafe .”
NOTAS:
[1] Os
cinco contos mencionados são “ Malagueta , Perus e
Bacanaço” (ANTÔNIO, 1963); “ Leão-de-chácara, ” “Joãozinho da
Babilônia” e “Paulinho Perna Torta ” (ANTÔNIO, 1980); Dedo-Duro ” (ANTÔNIO,
1982). Os o contos, nessa ordem, serão aqui referidos, respectivamente, pelas
siglas MPB, LC, JB, PPT. e DD.
[2] Seria
conveniente ler, a propósito deste original e desconcertante texto de João
Antônio, um marco sem dúvida importante na sua obra no que concerne a aspectos
formais e de linguagem. Um verdadeiro trabalho de experimentalismo da sua
escrita, naturalmente que ainda contendo certos cacoetes estilísticos, mas
inegavelmente uma mudança inovadora nos seus procedimentos composicionais, que
o elevam ao patamar dos bons ficcionistas brasileiros.
[3] Veja-se
o que afirmam acerca desta situação narrativa Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes:
“(…) o que está em causa é a narração, enquanto processo de
enunciação que pode decorrer no interior de uma personagem, e não a sua fixação
material, pois que esse processo de enunciação pode até ser protagonizado por
uma personagem analfabeta ou mentalmente deficiente, como é o caso de Benjy, em O sonho e
a fúria, de Faulkner.” Cf. REIS, Carlos & LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de
teoria da narrativa.p. 116. ( grifo dos autores )
[4] Cf.
a propósito desse tema a visão do ensaísta Barbosa Lima Sobrinho,ainda presa a
certos esquemas narrativos e tradicionais da linguagem literária, conforme
expõe na obra A língua portuguesa e a unidade no
Brasil. 2 ed. Rio de Janeiro, INL/MEC/Brasília, 1977. Ver especialmente o
capítulo em que trata da linguagem de Macunaíma, de Mário de
Andrade, p. 109-120. Não obstante reconhecer qualidades em Mário de Andrade, o
autor é contundente na crítica, ao ponto de reduzir a linguagem de Macunaíma ao
que denomina de “ robô linguístico mas robô, ” embora reconhecendo nela “a
imaginação humana, ” “ um ser prodigioso. ” O mais paradoxal é que o juízo de
Lima Sobrinho parece ajustar-se ao reconhecimento de Mário: “(…) e como se
trata do manifesto de uma língua que também não existe, como confessa o próprio
Mário de Andrade (…),” p. 120.
[5] Preferimos
neste comentário acerca da gíria não abonar exemplos lexicais ou frasais, de
vez que o tópico é muito abrangente e extrapolaria os limites que nos impusemos
no desenvolvimento deste estudo, inclusive porque o tópico encontra seu
adequado espaço de aprofundamento no domínio da linguística, e as nossas
reflexões neste caso apenas buscam situá-lo sob uma visão estética.
[6] Já existe uma ampla produção
bibliográfica sobre o assunto, sobretudo de autores estrangeiros. No Brasil,
seria proveitoso consultar: CÂMARA JR, Joaquim
Matoso. Princípios de Linguística Geral.
Confira sobretudo a seção “A gíria, propriamente
dita, e a Língua Literária, ” p. 283-284. Ver do mesmo autor o verbete “ gíria
” no Dicionário de Filologia e Gramática referente
a língua portuguesa. 3 ed. Revista e aumentada. Rio de Janeiro: J. Ozon Editor,
1968, p.173-174; MACEDO, Walmírio de. O
vocábulo e as classes sociais. In:_____ O poder da palavra com
um vocabulário rico. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, s/d., p. 37-40; SILVA BORBA, Francisco da.
Introdução aos estudos linguísticos. 5 ed. São
Paulo: Companhia Editora Nacional,1977. Cf. seção “IV – Gíria, ” p. 77-81;
NASCENTES, Antenor. A gíria brasileira . Rio de
Janeiro, 1952. De Portugal seria recomendável consultar LAPA RODRIGUES,
N. Estilística da Língua Portuguesa. 6 ed.
Rio de Janeiro: Livraria Acadêmica, 1970. Cf. principalmente a seção “A gíria,
” p. 55-58.
[7] Trata-se
de um substancial e vibrante depoimento-apêndice sobre o que o contista pensa
da função do escritor em relação à atividade
artística, à temática por ele explorada, à escrita e à sua posição corajosa e
realista de lidar com uma realidade que, nas condições atuais, não dá trégua a
ninguém, ou, conforme a visão do autor, com uma realidade que, posta na ficção,
faça desta uma literatura de bandido para bandido, fazendo pensar a história
por si mesma e pela “ ótica” do personagem, visão interior sentida e
experimentada no “ corpo-a-corpo com a vida.”
[8] LUCAS,
Fábio. O mundo das inscrições. In:___. Fronteiras imaginárias
– Crítica. Rio de Janeiro: Cátedra
Editora/INL/MEC, 1971, p.15. Uma análise
bastante sugestiva sobre a epígrafe em textos literários pode se encontrar
também em A tradição regionalista no romance brasileira de
José Maurício Gomes de Almeida, em que o crítico desenvolve reflexões em torno
deste tópico à luz do romance Inocência de Taunay. Ver o
subcapítulo “O sentido da epígrafe ”. Cf. ALMEIDA, José Maurício Gomes de. Op.
Cit., p. 91-103.
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Rio de Janeiro, Prefeitura do Rio de Janeiro , p. 71-72.
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CÂMARA JÚNIOR, Joaquim
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LAPA RODRIGUES,
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das inscrições. In: –––. Fronteiras imaginárias. Rio de Janeiro: Cátedra/Instituto Nacional
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literatura brasileira. V. 5 – Modernismo (1922 –
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romance. Série Fundamentos. São Paulo: Ática, [s.d.].
SILVA BORBA, Francisco
da. Introdução aos estudos linguísticos. 5 ed.
São Paulo: Companhia Editora Nacional , 1977.
FRAGA,Antônio. Desabrigo.
Rio de Janeiro: Prefeitura do Rio de
Janeiro, p. 71-72.
Cf. MOISES,
Massaud. História da literatura brasileira. V.
5 – Modernismo (1922 – Atualidade ). 3 ed. São Paulo, Cultrix, 1996, p.
483-484.
NOTA:
Capítulo 3 “O contos de
João Antônio: aspectos estruturais,
seção 3: “A linguagem na malandragem” p. 193-215) da minha Tese de Doutorado na área de Literatura Brasileira defendida na Faculdade de Letras da UFRJ, 2º
semestre de 2002, 349 p. Orientador: Professor Doutor Alcmeno Bastos. Este capítulo foi revisado e atualizado conforme o Novo Acordo Ortográfico.