domingo, 24 de julho de 2016

LITERATURA É SENTIMENTO, O RESTO É TÉCNICA





                                                    Cunha e Silva Filho


              Os poemas inspirados, a ficção fluente e espontânea  têm, sim, seu valor. Literatura não é só um produto cerebral Não é técnica apenas. É transfusão do espírito  encarnado pela palavra ou pelo Verbo, pois a obra literária, assim como a obra artística em geral,  tem algo de divino,  de pacto com  a Criação, quer seja entendida  como o  relato bíblico de Adão e Eva ( agora,   reavaliado pelo  Papa Francisco, numa posição que descontentou  parte do  cardinalato, gerando  controvérsias),  quer seja entendida cientificamente.
          Não importa. Quem disse que o cerebral não  implica  o elemento  da inspiração,  do sopro    de vida inflamando  a técnica? Quem disse que a criação literária  hoje está   de costas  para a inspiração  só porque  essa percepção remonta ao  Romantismo? Alguém já afirmou que esse movimento literário permeia todos os outros, tanto  pretéritos quanto  posteriores a ele.
            Existe um tanto de pudor incompreensível  atualmente de confessar que ser romântico é passadismo de saudosistas,  de quem  vê a criação literária   como  algo que caiu dos Céus. Quer dizer, o homem dito  moderno ou  pós-moderno  tem medo de  ser romântico, de ser nostálgico quando a sociedade e suas construções  culturais  estão sempre   voltando a tempos decorridos.
            A televisão  é prova disso, já que, nas suas programações, há  recorrências a relembranças de filmes, shows,  apresentações musicais,   entrevistas,    as quais  recortam  fatias do passado. A hipertrofia do presente seria insuportável.  O esquecimento  voluntário é uma forma de  destruição do  porvir. Já imaginaram um presente e  um futuro sem passado? Já imaginaram  um civilização sem  a sua história e os seus  feitos e fastos?
           Os  mecanismos  psíquicos, no meu juízo, carecem de reequilíbrios  constantes que somente a memória  histórica, social,  cultural   é capaz de  regular, de harmonizar o nosso  mundo  interior. A história da humanidade, perdendo a memória, se aniquilaria. Tornar-nos-ia semelhantes aos que são acometidos pelo  mal de Alzheimer. Ou seja,  a  linguagem  é a manifestação  mais  cabal da existência, sem a qual  nós todos seríamos fatalmente  aniquilados. O mundo sem linguagem seria a morte  da humanidade.
          Retomemos  o fio da meada deste artigo.Ao dizer que o sentimento  é basilar,  no que tange às formas artísticas,   estou  pensando em gêneros  literários que mais se avizinham da questão do sentimento transformado  em obra literária independentemente de que sejam  antigas   ou pós-modernas ou outras  classificações ainda mais  recentes, como a ficção  que já chamam de “pós-pós-moderna,”  segundo li,  não faz tanto tempo,   numa pesquisa  empreendida  por  alunos de pós-graduação  da UFRJ  e sob, se não me engano,  a supervisão  do professor e ficcionista Godofredo  de Oliveira Neto.
        Quando  aludo a essa  obras  que se  aproximam  muito  do sentimento  do “eu,’  da confissão, do   memorialismo, da autobiografia,   da biografia (em que o sentimento do “eu” se transfere para a  responsabilidade de um  outro autor, de um ghost writer, ou  não), do diário.
      Estou  levantando  a questão  de alguém  desejar  narrar  a sua vida, ou parte dela – um decisão de foro  íntimo  que tem  os seus percalços e as suas alegrias ou tristezas.
     Não é a vaidade nem o exibicionismo pessoal que animam algum escritor a contar  passagens da sua  própria vida. Antes, presumo que seja um chamamento  intelectual  que  nos   impulsiona,  em determinada fase de nossa vida,  em geral,  o amanhecer da velhice ou mesmo  no ocaso da idade provecta.
      O ensaísta e historiador Massaud Moisés ( Dicionário de termos  literários. 6. ed. São Paulo: Cultrix,1992)  analisando o conceito de autobiografia, refere ao sentimento narcisista (eu diria na sua  significação  positiva,  que é natural  nesse gênero). Todavia, se na autobiografia  existe  “o extravasamento  do eu” (idem, ibidem, p. 50),  isso não se confundiria absolutamente com  um sentimento subalterno  do cabotinismo, do autoelogio, os quais  só apequenariam  o valor  da autobiografia.
    De outra parte,  se a autobiografia se centra na figura do autor, ela também  se concretiza  graças  à inescapável  interferência   da  época do autor, ou seja, graças  a realidades históricas  sociais,  culturais,  políticas do tempo do narrador, assim como acontece com as memórias.Se há  subjetividade  do autor,  há igualmente  amplificações com  sub-relatos  de pessoas do convívio do autor ou de circunstâncias  várias  no  seu percurso existencial, de tal sorte que,   no conjunto,  a obra se torna  um   retrato  da vida ou de aspectos consideráveis da  existência  humana.
    A qualidade literária  da  autobiografia,  das  memórias,  da biografia e do  diário é um outro componente  desse tipo de  escrita  íntima. Seu valor  vai depender  do talento  e do instrumental  da linguagem,  da técnica  e dos processos  de  transformação   da história  individual,  enquanto realidade empírica, em transfiguração obedecendo a fatores  composicionais   que a elevem ao estatuto  de texto  literário.
    Eis por que Massaud Moisés fala de "processo literário" na escrita  autobiográfica, i.e., ela se vale ou tem que se valer de protocolos  relacionados  ao estilo e narrativa (ibidem) e a modelos vigorantes na época.
    Nenhum autor nesses gêneros centrados   primordialmente na subjetividade autoral - acredito -, dificilmente   negligenciam  autores  consagrados   nessa forma literária. Literatura  é um constante   diálogo entre contemporâneos  como  também  um diálogo com  a tradição.visando, em ambos os casos,  a  novas perspectivas  e avanços  em direção  ao futuro.  
   Claramente haverá as adaptações  pessoais e fatores  originais  na  construção da escrita  autobiográfica e nas memórias ou biografias, assim como nos diários. Da mesma forma,  haverá  preferências  pelos aspectos  da vida pessoal do autor, sejam tristes ou  alegres. Determinados ingredientes devem estar presentes na feitura da autobiografia e da memórias a fim de que elas atraiam  leitor nos relatos  apresentados,  tais como  evitar-se  a monotonia,  a  objetividade e, em troca,   empregar-se  o humor,   o fato   pitoresco,  as situações embaraçosas,  a fim de manterem  o canal  comunicativo  ativo  por parte  do leitor.
  Pessoas  que não gostam de se  expor não escreverão jamais  memórias, autobiografias, diários. Por isso,  esses gêneros   são  propícios  àqueles que têm a  coragem para a atividade da escrita e dos  processos  composicionais  que, se bem  harmonizados, se tornam  lições  de  vida,  ao   revelarem  seus sentimentos com a esperança de que  sirvam  de exemplo   ou  para transmitirem, pelo sortilégio   da palavra  e sentido  lírico  do texto, uma visão da condição humana, no sentido do resgate  responsável  de si e de seus  contemporâneos. É monumento e documento. Serve à história cultural  de um país e sobretudo  valoriza  a literatura quando desta  se serve para  produzir -  reforço  - sentimentos, beleza,  verdades,  emoções, vivências e   conhecimento.  

   Cumpre, ademais, um papel relevante no campo das sociabilidades como testemunho e voz atuante.   Por se exporem é que  autores  há em nossa literatura  que  foram  criticados  por  exageros  nos julgamentos   de  pessoas  que com eles   cruzaram  na vida. É o caso  dos livros de memórias de Humberto de Campos (1886-1934) e sobretudo  do livro Sombras que sofrem (1934), que são crônicas, sendo o autor muito  criticado  à época  da sua publicação, ao contrário do livro de memórias de Álvaro Moreira (1888-1964), Das amargas ...não (1954). 

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