Cunha e Silva Filho
              Os poemas inspirados, a ficção fluente
e espontânea  têm, sim, seu valor. Literatura
não é só um produto cerebral Não é técnica apenas. É transfusão do
espírito  encarnado pela palavra ou pelo
Verbo, pois a obra literária, assim como a obra artística em geral,  tem algo de divino,  de pacto com 
a Criação, quer seja entendida 
como o  relato bíblico de Adão e
Eva ( agora,   reavaliado pelo  Papa Francisco, numa posição que
descontentou  parte do  cardinalato, gerando  controvérsias),  quer seja entendida cientificamente. 
          Não importa. Quem disse que o cerebral
não  implica  o elemento 
da inspiração,  do sopro    de vida inflamando  a técnica? Quem disse que a criação
literária  hoje está   de costas 
para a inspiração  só porque  essa percepção remonta ao  Romantismo? Alguém já afirmou que esse
movimento literário permeia todos os outros, tanto  pretéritos quanto  posteriores a ele.
            Existe
um tanto de pudor incompreensível  atualmente de confessar que ser romântico é
passadismo de saudosistas,  de quem  vê a criação literária   como 
algo que caiu dos Céus. Quer dizer, o homem dito  moderno ou 
pós-moderno  tem medo de  ser romântico, de ser nostálgico quando a
sociedade e suas construções 
culturais  estão sempre   voltando a tempos decorridos.
            A
televisão  é prova disso, já que, nas
suas programações, há  recorrências a
relembranças de filmes, shows,  apresentações
musicais,   entrevistas,    as quais 
recortam  fatias do passado. A
hipertrofia do presente seria insuportável. 
O esquecimento  voluntário é uma
forma de  destruição do  porvir. Já imaginaram um presente e  um futuro sem passado? Já imaginaram  um civilização sem  a sua história e os seus  feitos e fastos? 
           Os 
mecanismos  psíquicos, no meu juízo,
carecem de reequilíbrios  constantes que
somente a memória  histórica,
social,  cultural   é capaz de 
regular, de harmonizar o nosso 
mundo  interior. A história da
humanidade, perdendo a memória, se aniquilaria. Tornar-nos-ia semelhantes aos
que são acometidos pelo  mal de
Alzheimer. Ou seja,  a  linguagem  é a manifestação  mais 
cabal da existência, sem a qual 
nós todos seríamos fatalmente  aniquilados. O mundo sem linguagem seria a
morte  da humanidade.
          Retomemos  o fio da meada deste artigo.Ao dizer que o
sentimento  é basilar,  no que tange às formas artísticas,   estou 
pensando em gêneros  literários
que mais se avizinham da questão do sentimento
transformado  em obra literária
independentemente de que sejam 
antigas   ou pós-modernas ou
outras  classificações ainda mais  recentes, como a ficção  que já chamam de “pós-pós-moderna,”  segundo li, 
não faz tanto tempo,   numa
pesquisa  empreendida  por 
alunos de pós-graduação  da
UFRJ  e sob, se não me engano,  a supervisão 
do professor e ficcionista Godofredo 
de Oliveira Neto. 
        Quando 
aludo a essa  obras  que se 
aproximam  muito  do sentimento 
do “eu,’  da confissão, do   memorialismo, da autobiografia,   da biografia (em que o sentimento do “eu” se
transfere para a  responsabilidade de
um  outro autor, de um ghost writer, ou  não), do diário. 
      Estou 
levantando  a questão  de alguém 
desejar  narrar  a sua vida, ou parte dela – um decisão de
foro  íntimo  que tem 
os seus percalços e as suas alegrias ou tristezas. 
     Não é a vaidade nem o exibicionismo pessoal que
animam algum escritor a contar  passagens
da sua  própria vida. Antes, presumo que
seja um chamamento  intelectual  que 
nos   impulsiona,  em determinada fase de nossa vida,  em geral, 
o amanhecer da velhice ou mesmo 
no ocaso da idade provecta. 
      O ensaísta e historiador Massaud Moisés (
Dicionário de termos  literários. 6. ed.
São Paulo: Cultrix,1992)  analisando o
conceito de autobiografia, refere ao sentimento narcisista (eu diria na
sua  significação  positiva,  que é natural  nesse gênero). Todavia,
se na autobiografia  existe  “o extravasamento  do eu” (idem, ibidem, p. 50),  isso não se confundiria absolutamente
com  um sentimento subalterno  do cabotinismo, do autoelogio, os quais  só apequenariam  o valor 
da autobiografia.
    De
outra parte,  se a autobiografia se
centra na figura do autor, ela também  se
concretiza  graças  à inescapável 
interferência   da  época do autor, ou seja, graças  a realidades históricas  sociais, 
culturais,  políticas do tempo do
narrador, assim como acontece com as memórias.Se há  subjetividade 
do autor,  há igualmente  amplificações com  sub-relatos  de pessoas do convívio do autor ou de circunstâncias  várias 
no  seu percurso existencial, de
tal sorte que,   no conjunto,  a obra se torna  um   retrato 
da vida ou de aspectos consideráveis da 
existência  humana.
    A qualidade literária  da 
autobiografia,  das  memórias, 
da biografia e do  diário é um
outro componente  desse tipo de  escrita 
íntima. Seu valor  vai
depender  do talento  e do instrumental  da linguagem,  da técnica 
e dos processos  de  transformação   da história 
individual,  enquanto realidade
empírica, em transfiguração obedecendo a fatores  composicionais   que a elevem ao estatuto  de texto 
literário. 
    Eis por que Massaud Moisés fala de "processo
literário" na escrita  autobiográfica,
i.e., ela se vale ou tem que se valer de protocolos  relacionados 
ao estilo e narrativa (ibidem) e a modelos vigorantes
na época.
    Nenhum autor nesses gêneros centrados   primordialmente na subjetividade autoral - acredito
-, dificilmente   negligenciam  autores 
consagrados   nessa forma
literária. Literatura  é um
constante   diálogo entre
contemporâneos  como  também 
um diálogo com  a
tradição.visando, em ambos os casos,  a  novas perspectivas  e avanços  em direção 
ao futuro.  
   Claramente haverá as adaptações  pessoais e fatores  originais 
na  construção da escrita  autobiográfica e nas memórias ou biografias,
assim como nos diários. Da mesma forma, 
haverá  preferências  pelos aspectos  da vida pessoal do autor, sejam tristes
ou  alegres. Determinados ingredientes devem
estar presentes na feitura da autobiografia e da memórias a fim de que elas
atraiam  leitor nos relatos  apresentados, 
tais como  evitar-se  a monotonia, 
a  objetividade e, em troca,   empregar-se 
o humor,   o fato   pitoresco, 
as situações embaraçosas,  a fim
de manterem  o canal  comunicativo 
ativo  por parte  do leitor.
  Pessoas 
que não gostam de se  expor não
escreverão jamais  memórias, autobiografias,
diários. Por isso,  esses gêneros   são 
propícios  àqueles que têm a  coragem para a atividade da escrita e dos  processos 
composicionais  que, se bem  harmonizados, se tornam  lições 
de  vida,  ao   revelarem  seus sentimentos com a esperança de que  sirvam 
de exemplo   ou  para transmitirem, pelo sortilégio   da palavra 
e sentido  lírico  do texto, uma visão
da condição humana, no sentido do resgate 
responsável  de si e de seus  contemporâneos. É monumento e documento.
Serve à história cultural  de um país e
sobretudo  valoriza  a literatura quando desta  se serve para  produzir - 
reforço  - sentimentos,
beleza,  verdades,  emoções, vivências e   conhecimento.  
   Cumpre,
ademais, um papel relevante no campo das sociabilidades como testemunho e voz
atuante.   Por se exporem é que  autores 
há em nossa literatura  que  foram 
criticados  por  exageros 
nos julgamentos   de  pessoas 
que com eles   cruzaram  na vida. É o caso  dos livros de memórias de Humberto de Campos (1886-1934)
e sobretudo  do livro Sombras que sofrem (1934), que são
crônicas, sendo o autor muito 
criticado  à época  da sua publicação, ao contrário do livro de
memórias de Álvaro Moreira (1888-1964), Das
amargas ...não (1954). 
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