quarta-feira, 15 de julho de 2015

O milagre, não o suave de Eça de Queiroz





                                                        
                                                                  “Obed é rico e tem servos.”
                                  

Cunha  e Silva Filho



       Chegando ao meu apartamento,  me dei conta  de que  não se encontrava na minha  carteira de dinheiro a minha  identidade. Eu havia  ido à farmácia com a minha mulher  comprar  um remédio.Senti um calafrio como se  tivesse  visto um fantasma.   
         Um fantasma diferente, um   fantasma que  nos provoca  medo e apreensões. Era a quase certeza de que, perdendo um  documento  tão  vital como a identidade, equivaleria a  vislumbrar um série de  problemas  que  iria enfrentar: não poder  fazer uma retirada  de maio  valor no banco,  não poder  abrir um  crediário,  não  poder  irar um  passaporte, não poder  fazer compras com cartão de crédito que exija a comprovação  da identidade  do comprador, enfim,  a perspectiva  de não poder fazer isso tudo  me  deixava arrasado,  apavorado,  perdido  como  uma criança  na multidão. Como iria  provar quem  eu era diante  de um situação que  me obrigasse a exibir a minha  carteira de identidade.
       Neste país chamado  Brasil,   o domínio da burocracia  tem força  de lei. Se você vai a uma repartição  pública e lhe faltar um item  de uma documentação   exigida,  você  fica  travado, de mãos atadas. Um vez, um ministro brasileiro desejou  desburocratizar a máquina  administrativa  do país,  mas tudo foi  debalde. Alguma coisa ele fez, mas o grosso  da mania  da exigência do papelório teima  em ser uma lei consuetudinária. Se não  se tem  tudo  o que se nos pede em matéria  de  documentos,  nada se consegue.
      O atendente  da burocracia fica  até  irado quando alguém  lhe entrega  tudo que lhe foi  pedido a fim de   conseguir alguma coisa de natureza burocrática. Somos uma sociedade cartorial,   tabelionária,   documentária.Até para morrer,  se o de cujus  não estiver  direitinho  com  as exigências  da burocracia para esta difícil  e traumática  passagem  da vida para o  andar  de cima,  ele ficará  em estado de putrefação ou senão  volta  para  a geladeira  dos necrotério.
    A burocracia  ainda tem  fortes elos  com  os tempos  do  Brasil  colonial, das capitanias  hereditárias, dos tempos dos  meirinhos do Rio de Janeiro  joanino. O que neste país  vale é o documento. A palavra  empenhada de nada mais vale. Tudo deve estar  escrito e  chancelado no cartório. Meu reino  pela  burocracia!  - a única  força-motriz que leva este  país  para a frente de não sei de quê...
     Diante de toda  esse calvário, me encontrava  completamente desolado e sem  chão. Onde foi  cair a bendita   identidade? Foi na farmácia? Perdeu-se em casa em alguma pilha de  papéis? Minha mulher me  sugeriu  a possibilidade de voltar à farmácia  a  fim de ver se eu  deixara  caída no chão  a minha  identidade. Então,  a minha pobre  mulher decidiu  ir  novamente à farmácia. Ao chegar lá,  perguntou  a  vendedor com quem  fizera a  compra do remédio se ele por acaso  não  vira uma identidade no chão, ou se um cliente  honesto  a pegara e entregara aos cuidados da farmácia. Qual nada! Ninguém  vira minha identidade. Voltou para casa  desolada.
   Enquanto minha querida cara-metade  estava  na rua para ver se encontrava a minha carteira,  em casa  eu revirava tudo: gavetas,  fichários,  armários,  pastas etc. Tudo fiz para  não ter nenhuma dúvida de que  a identidade não  estava comigo.
  Olhei,  examinei todas as divisões de minha velha  carteira de dinheiro e nada de encontrar a identidade. Meu medo era  que algum  malandro a encontrasse e fizesse algum mal  a mim, ou seja,   retirar a minha foto e, em lugar dela,  colocar a foto de alguém com  alguns  traços   que indicassem pertencer à minha   faixa etária ou,  por outras artimanhas, falsificar meus dados  pessoais,  inclusive  meu CPF, e transferi-los  para  terceiros. Meu pavor  era ser vítima  de um  estelionatário que até poderia usar meus  dados para fins de lavagem de dinheiro,  aposentadorias  falsas ou outras maldades  de que são tão  férteis  esses escroques em plagas basílicas...
   Foi, então, que pensei em São Longuinho, o santo dos que perdem  objetos  e outras  coisas. “Valei-me, meu São Longuinho!Valei-me,  meu São Longuinho!" Esse santo  é tiro e queda. Entretanto,  não desisti de  procurar em outros lugares do apartamento: quartos,  cozinha,  banheiro,  debaixo das cama,  das mesas, onde me fosse possível lobrigar  alguma   ponto do apartamento  em que pudesse  se ocultar a minha identidade.
     Exauridas  todas as minhas  energias, tomamos  minha mulher,  meu filho mais novo e eu uma decisão  para que  os meus receios  se tornassem menos penosos: ir à delegacia do bairro e fazer um  BO (boletim de ocorrência).  Nós três saímos  com passos  largos  em direção a uma  avenida  perto do meu prédio. Atravessamos e ficamos esperando acenar para o primeiro táxi  disponível que surgisse .Passaram  vários  sem  ligarem para o nosso  aceno até que um parou. Indicamos ao motorista  o nosso destino: a delegacia.
   Chegando lá, subindo uma rampa, entramos  no prédio e  nos dirigimos ao balcão de atendimento, atrás do qual havia uma funcionária de semblante amável. Lhe  contei todas as circunstâncias  do dramático incidente  e lhe disse que  desejava fazer  um BO. A funcionária  era  amável, simpática. No momento em que me pediu dados  pessoais consignados na  identidade,  de certa forma  involuntária, retirei minha carteira de dinheiro do bolso direito da calça e foi aí que  percebi um objeto  plástico que  surgiu de uma das partes da carteira. Era a minha identidade. “Milagre!  Milagre!- exclamei  numa alegria  incontida. A funcionária sorriu e entendeu tudo.
       Descemos a rampa. Na calçada, ainda cresceu a minha alegria. Queria compartilhá-la com  todos. Passou  um moço que,  pelos seus  modos de vestir,  via-se  que era um  investigador de polícia. Contei para ele o que ocorrera comigo. Ele mostrou-se receptivo.Nos despedimos e  caminhamos  em direção a outra rua que dava para uma praça.
        No caminho,  com voz embargada de tanta emoção, falei com a minha mulher: “É um milagre! O milagre existe.”  Sem perceber, estava  falando e chorando  baixinho. Nesse instante,  me lembrei  do meu apelo a São Longuinho. Ele me dera  ouvidos, me atendera. Era bem tarde da noite. Numa calçada,  acenamos para  outro táxi. Nele entramos e, com  o coração  esfuziante  de  contentamento,  resumi  o acontecido  para o motorista,  um moço   de fisionomia  bondosa.

        Não fora um grande milagre como  o daquela criança doentinha, pobre,  que procurava  pelo Salvador, o Rabi,   o Messias. No momento em que não esperava,  Jesus anunciou-se a ela:  “_Aqui estou.” O meu  pobre grande   milagre igualmente  se realizou. São Longuinho, que tantas  vezes  invoquei com sucesso,  naquela delegacia se fez  presente e o milagre, mais uma vez,   me convenceu  pela fé. Ó incrédulos,  não duvideis  dos milagres!

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