quarta-feira, 8 de julho de 2015

Elmar Carvalho : a toga, a memória e o lirismo


                  


                                                            Cunha e Silva Filho


         
        A carreira do escritor  Elmar Carvalho se divide, a meu ver,  em duas  fases: a de  maior  expressão,  a poesia de vanguarda, que lhe deu  notoriedade e a da sua produção em  prosa  algo  conservadora, mas não anacrônica. A poesia, por enquanto, quero  crer que  possivelmente hoje  a cultive por via indireta,  ou seja, pelo saudável  exercício das leituras.
       Contudo,  ninguém  pode exigir que um  poeta que escreveu obra de  reconhecida  qualidade  estética seja obrigado a produzir  por vontade e desejo alheios. A poesia, como qualquer  obra literária,  não nasce por decreto ou  por injunções legais. Só ao poeta é dada a possibilidade de livremente criar  ou não.
      A criação literária   é um fenômeno  artístico que só medra  como manifestação   natural  da vontade de quem a produz, no tempo que lhe aprouver. O silêncio  poético só aos poetas  pertence. Em consequência,  não temos  o direito de  exigir deles  nada no domínio criativo.
      Ao falar da   prosa de Elmar  Carvalho, me refiro   ao  gênero  ficcional. Por outro lado,  não estou  insinuando que  em outras manifestações da escrita não-ficcional, ele  tenha produzido  obra inferior, porquanto no ensaio não acadêmico, na crítica igualmente não-acadêmica, assim como na crônica   de caráter lírico, dramático  ou lidando com matéria sobrenatural, o poeta Elmar  Carvalho  tem sabido   produzir alguns  textos  de  indiscutível qualidade literária.
     No autor, entretanto,  a poesia se insinua em sua produção  não-poética, i.e.,  o lirismo,  nele permanente  como estratégia de linguagem  de maior   imaginação criadora, não lhe permite  deixar de vez a poesia, ainda que não o queira. Por conseguinte,   no ponto mais alto de sua obra,    continua  poeta e, em segundo plano, o prosador, quer no  ensaio,  na crítica  esporádica e na  ficção. É dentro dessa perspectiva  de abordagem crítica que me volto para comentar-lhe o livro de memórias  recém-editado, Confissões de um  juiz (Teresina: Academia Piauiense de Letras,  2014, 193 p. Prefácio de Reginaldo Miranda).
      Determinadas vidas merecem transformar-se literariamente em memórias em face de  sua  específica trajetória  profissional e pessoal. No exemplo do poeta Elmar Carvalho, pelas circunstâncias  e impactos de sua vida  pessoal e profissional, o recurso do autor  a reproduzir  criativamente   certas partes  significativas de sua vida  não lhe veio  por veleidades  ou exibicionismos  subalternos, mas  para dividir com o leitor  o que de sua   percurso  existencial valeria a pena  ser compartilhado  pelos seus coetâneos.       
   Pode ter sido uma forma de  catarse, pode também  ter sido uma  vontade insopitável  de dar testemunho  da experiência de vida do seu tempo  tanto  na  carreira de magistrado  quanto na de  um homem que enfrentou  os   desafios  e os rigores  provocados  por uma doença que o atingiu por duas vezes e da qual saiu  vitorioso.
   Suas memórias, segundo assinalou no final do prefácio, são “confissões,”   o que  quer dizer que nelas  os  relatos se fizeram a bem da verdade, sem subterfúgios,  sem maquinações.
   Procurou,  assim, a verdade  limpa e desnuda, a que, enfim,  interessa como  lição de vida dividida entre o afeto,  a dor,  a saudade, as perdas, os ganhos  e o pacto com  a literatura  rememorativa,  que se alinha,   desde os primeiros  cronistas  portugueses, aos primeiros historiadores lusos, às primeiras biografias em língua   portuguesa a se interessarem  pelo experiência vivida em  várias situações  da existência humana.
     Aí se incluem os nomes que primeiro  vão  dando um contorno memorialístico  a narrativas   que fizeram história, aí se incluindo os nomes de Garcia de Resende, com  as suas Miscelâneas, e  de Fernão Mendes Pinto  com a sua Peregrinação. A linhagem  se avoluma com o passar dos séculos até chegar  à contemporaneidade.
     O mesmo se poderia   afirmar das primeiras   produções literárias  brasileiras  com acento  memorialístico, desde a carta de Pero  Vaz e Caminha até  aos tempos de hoje, em que o Brasil  pôde contar  com  grandes nomes  de autores de memórias, Joaquim Nabuco,   Gilberto Amado, Érico Veríssimo,  Álvaro Moreira,  Humberto de Campos ate culminar com  o grande memorialista   Pedro Nava.
    No Piauí,   penso que  temos ainda um   quantidade  considerável de  livros de memórias ou autobiografias. Do meu conhecimento, alguns autores já enveredaram  por este  gênero Sem  citar os títulos,  menciono  pelo menos os  autores: H. Dobal, Nasi Castro, Francisco Miguel de Moura,  Eleazar Moura,  Geraldo Almeida Borges, Celso Barros Coelho, Homero Castelo Branco,  José Ribamar Garcia, Assis Fortes, Olemar de Souza Castro e  o autor deste artigo, que acaba de  concluir  um livro de memórias, de título Apenas memórias. 
   Cada livro de memórias singulariza-se por uma traço  particular, por um  escolha geralmente  circunscrita à vida profissional  do autor, que pode ser um médico,  um professor, um escritor  profissional,  um  juiz, um cientista,  um político  um ator, um militar etc. A profissão  compreende as vivências   do memorialista e é a partir delas que  o autor  se alia ao papel do escritor-memorialista. No exemplo de Elmar Carvalho se repte esta  estratégia narrativa neste gênero  literário.
    No poeta Elmar Carvalho, do ponto de vista  profissional,  um ciclo de vivências  se fechou logo que lhe  veio a aposentadoria de juiz. É desse recorte de sua experiência  como juiz  que nele surge a possibilidade de contar  suas memórias. Dessa empreitada se saiu muito bem como  artista da palavra  a serviço das evocações de um juiz que percorre lugares diversos do interior  piauiense, do seu dia-a-dia de julgador de litígios, de conciliador  nos momentos em que era preciso  pesar na balança da justiça  os prós e contras a fim de  dar o veredicto mais  justo  possível ou, como o memorialista  deixa sugerir nos seus relatos, julgar  sempre tendo em vista o lado dos mais fracos.
   Seu percurso  de magistrado se realiza em várias comarcas, cada qual com suas  peculiaridades,   com a sua realidade  própria e com seus  diferentes  problemas. Poder-se-ia dizer,  o juiz Elmar Carvalho é sempre aquele viajante compelido,  por seu ofício,  a mudar  de lugares, a conhecer  outras  pessoas, a conviver  com  o provisório.  
  Poderia  chamar seus relatos de memórias telúricas,  visto que  o juiz com suas “confissões” não perde tempo para ir registrando fatos,  cenas,  paisagens,  natureza  diversa, pessoas  diferentes  que encontrou  em cada  comarca interiorana para a qual era designado.
   A paisagem   interiorana, os costumes,  os hábitos, a vida social,  a vida cultural,  se lhe fixaram  na retentiva. Tal  espólio da memória - “quase dezessete anos de magistratura” -,  se lhe tornaria farto material  de rememoração e   de  análises  instigantes em forma de  livro.
    Confissões de um juiz não se cinge apenas à experiência  técnico-burocrática de um   magistrado-poeta. As memórias se expandem a outras vertentes  de sua  função.   
  O memorialista não é só  o homem da Justiça, mas o cidadão que tem  suas   aspirações  e seu idealismo, além  de sua atuação  de escritor, de cronista,  de ficcionista, de ensaísta que não para de  publicar,  tem seu blog,  vive a vida  intelectual piauiense,  está em sintonia com  o mundo acadêmico e  com a vida literária de seu Estado. Participa  de questões  ambientais,  culturais,  desportistas, como, no caso da primeira,  a da preservação  do rio Parnaíba em páginas   contundentes  de reação  contra os inimigos  da natureza.
  A obra em exame não é só  depositário  de  fatos da vida de um  juiz,  mas  se compõe de textos  pictóricos onde  o estatuto  da linguagem  assume  toda uma força   lírica,  com belas  e comoventes  passagens onde se distingue  o talento  do memorialista  na pintura  da paisagem, da  flora e fauna  piauienses,  como são exemplos  paradigmáticos,  na segunda parte da obra, “Memórias afins,”  passagens de muita  beleza e vigor  descritivo (“Oração  à Vila de São Gonçalo de Regeneração”, p.57-65 “Evocação de Piracuruca,”  p.79-81).
   Porém,   a beleza de alguns textos não se fazem apenas de   paisagens   bem  descritas, mas também de textos alusivos  à condição  da justiça praticada para o bem e à necessidade  da prática da bondade consoante  lemos na seção “Exortação à justiça e à bondade (p.74-77).
   O memorialismo  de Elmar  Carvalho   reúne uma gama de  visões e perspectivas formando um painel  no qual  o autor  fala de  escritores,  pessoas comuns, servidores da justiça,  condição humana, injustiças,   prepotência,  vícios humanos,  erros  da administração  pública,  erros da justiça,  em que nada lhe escapa  ao olhar  de espectador  atento às misérias humanas.
   Outros  temas lhe são caros  nas relembranças,  a sua  participação  de atleta, de goleiro,  a sua  permanência no  Recife a fim de realizar  um curso de monitor  postal.
   Não lhe falta  fortaleza moral  para  reportar-se ao câncer de que foi vitima, da luta  para a sua recuperação e cura, de uma recaída, formando  estes relatos   um ponto algo trágico de sua  caminhada  existencial, felizmente  tendo  superado  tudo  com uma vida  renovada e pronta a seguir  sua travessia  agora mais  empenhada  no  universo  em que talvez  mais  se sente  bem e recompensado, que é o de  produzir literatura.
   Prende-me a atenção, de forma   especial,  por seu sentido  de humanidade, de afeto, e de saudade, a terceira parte das memórias, denominada “Memórias afetivas.” Neste capítulo  o poeta Elmar  despe-se  de qualquer formalismo  de linguagem e  adentra  o mundo  dos sentimentos, contudo, sem pieguismo.
  Discorre  sobre a perda da mãe, da família, da morte precoce e trágica de sua irmã Josélia, de seu amigo   inesquecível,  Zé Henrique,  de seus  antepassados,  da grandeza moral  de seu pai, Miguel Arcângelo, felizmente ainda lhe dando o prazer de seu convívio, da perda inconsolável de sua irmãzinha  Josélia,  falecida, aos quinze anos,   em acidente  de carro, de seus amigos, de seus irmãos e irmãs e last but no least, das mortes de duas cachorrinhas  de estimação, exemplos edificantes  da capacidade  de animais serem tão humanos, tão mais do que  alguns humanos, Belinha e Anita, em textos de  beleza  pungente,  em cujo tempo de leitura  não contive as lágrimas.
 Elmar Carvalho pertence à estirpe de escritores  que não deixam escapar a  conveniência de   entender  a “alma” dos bichos,  como o fazia  tão bem  outro  retratista de animais, o escritor  Guimarães Rosa (1908-1967), com a sua  modelar estória  de profunda  humanidade, “O burrinho pedrês,”  um conto de Sagarana (1946). Assim como  podíamos   citar outros  escritores que deram  estatura de humanidade a animais e bichos,  como   Graciliano Ramos(1892-1953), com a sua cadela  Baleia, de Vidas secas (1938) e o ficcionista  piauiense, Rivanildo Feitosa,  em clave cômico-erótica com a personagem-protagonista,  uma cadela  vira-lata, de nome Sabiá, do romance Reflexões de uma cadela vira-lata (2011)   

  A derradeira parte das Memórias de um juiz se destina ao que chama de “Memória fotográfica.” O bom é que a para cada  foto o autor  preparou pequenos  textos informativos alusivos  às fotos, num total de 29, representativas de  momentos marcantes de sua  vida pessoal, familiar  e profissional. Finalmente,  ao livro  acrescenta uma  quinta parte,  formada de depoimentos  sobre o autor  de figuras da vida cultural  piauiense. As duas  últimas páginas  contêm uma “síntese  biográfica do autor". 

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