Cunha e Silva Filho
A carreira do escritor Elmar
Carvalho se divide, a meu ver, em duas fases: a de maior
expressão, a poesia de vanguarda,
que lhe deu notoriedade e a da sua produção
em prosa algo conservadora, mas não anacrônica. A poesia,
por enquanto, quero crer que possivelmente hoje a cultive por via indireta, ou seja, pelo saudável exercício das leituras.
Contudo, ninguém
pode exigir que um poeta que
escreveu obra de reconhecida qualidade
estética seja obrigado a produzir
por vontade e desejo alheios. A poesia, como qualquer obra literária, não nasce por decreto ou por injunções legais. Só ao poeta é dada a
possibilidade de livremente criar ou
não.
A criação literária é um fenômeno artístico que só medra como manifestação natural
da vontade de quem a produz, no tempo que lhe aprouver. O silêncio poético só aos poetas pertence. Em consequência, não temos
o direito de exigir deles nada no
domínio criativo.
Ao falar da prosa de Elmar Carvalho, me refiro ao
gênero ficcional. Por outro
lado, não estou insinuando que em outras manifestações da escrita
não-ficcional, ele tenha produzido obra inferior, porquanto no ensaio não
acadêmico, na crítica igualmente não-acadêmica, assim como na crônica de caráter lírico, dramático ou lidando com matéria sobrenatural, o poeta
Elmar Carvalho tem sabido
produzir alguns textos de
indiscutível qualidade literária.
No autor, entretanto, a poesia se insinua em sua produção não-poética, i.e., o lirismo, nele permanente como estratégia de linguagem de maior
imaginação criadora, não lhe permite
deixar de vez a poesia, ainda que não o queira. Por conseguinte, no ponto mais alto de sua obra, continua
poeta e, em segundo plano, o prosador, quer no ensaio,
na crítica esporádica e na ficção. É dentro dessa perspectiva de abordagem crítica que me volto para comentar-lhe
o livro de memórias recém-editado, Confissões de um juiz (Teresina: Academia Piauiense de
Letras, 2014, 193 p. Prefácio de
Reginaldo Miranda).
Determinadas vidas merecem transformar-se
literariamente em memórias em face de
sua específica trajetória profissional e pessoal. No exemplo do poeta
Elmar Carvalho, pelas circunstâncias e
impactos de sua vida pessoal e
profissional, o recurso do autor a
reproduzir criativamente certas partes significativas de sua vida não lhe veio
por veleidades ou exibicionismos subalternos, mas para dividir com o leitor o que de sua
percurso existencial valeria a
pena ser compartilhado pelos seus coetâneos.
Pode ter sido uma forma de catarse, pode também ter sido uma
vontade insopitável de dar testemunho da experiência de vida do seu tempo tanto
na carreira de magistrado quanto na de
um homem que enfrentou os desafios
e os rigores provocados por uma doença que o atingiu por duas vezes e
da qual saiu vitorioso.
Suas memórias, segundo assinalou no
final do prefácio, são “confissões,” o que
quer dizer que nelas os relatos se fizeram a bem da verdade, sem
subterfúgios, sem maquinações.
Procurou, assim, a verdade limpa e desnuda, a que, enfim, interessa como lição de vida dividida entre o afeto, a dor,
a saudade, as perdas, os ganhos e
o pacto com a literatura rememorativa,
que se alinha, desde os
primeiros cronistas portugueses, aos primeiros historiadores
lusos, às primeiras biografias em língua
portuguesa a se interessarem pelo experiência vivida em várias situações da existência humana.
Aí se incluem os nomes que primeiro vão
dando um contorno memorialístico
a narrativas que fizeram
história, aí se incluindo os nomes de Garcia de Resende, com as suas Miscelâneas,
e de Fernão Mendes Pinto com a sua Peregrinação. A linhagem se avoluma com o passar dos séculos até
chegar à contemporaneidade.
O mesmo se poderia afirmar das primeiras produções literárias brasileiras
com acento memorialístico, desde
a carta de Pero Vaz e Caminha até aos tempos de hoje, em que o Brasil pôde contar
com grandes nomes de autores de memórias, Joaquim Nabuco, Gilberto Amado, Érico Veríssimo, Álvaro Moreira, Humberto de Campos ate culminar com o grande memorialista Pedro Nava.
No Piauí,
penso que temos ainda um quantidade
considerável de livros de memórias
ou autobiografias. Do meu conhecimento, alguns autores já enveredaram por este
gênero Sem citar os títulos, menciono
pelo menos os autores: H. Dobal,
Nasi Castro, Francisco Miguel de Moura, Eleazar Moura,
Geraldo Almeida Borges, Celso Barros Coelho, Homero Castelo Branco, José Ribamar Garcia, Assis Fortes, Olemar de
Souza Castro e o autor deste artigo, que
acaba de concluir um livro de memórias, de título Apenas memórias.
Cada livro de memórias singulariza-se por
uma traço particular, por um escolha geralmente circunscrita à vida profissional do autor, que pode ser um médico, um professor, um escritor profissional,
um juiz, um cientista, um político
um ator, um militar etc. A profissão
compreende as vivências do
memorialista e é a partir delas que o
autor se alia ao papel do
escritor-memorialista. No
exemplo de Elmar Carvalho se repte esta
estratégia narrativa neste gênero
literário.
No poeta Elmar Carvalho, do ponto de
vista profissional, um ciclo de vivências se fechou logo que lhe veio a aposentadoria de juiz. É desse recorte
de sua experiência como juiz que nele surge a possibilidade de contar suas memórias. Dessa empreitada se saiu muito
bem como artista da palavra a serviço das evocações de um juiz que
percorre lugares diversos do interior
piauiense, do seu dia-a-dia de julgador de litígios, de conciliador nos momentos em que era preciso pesar na balança da justiça os prós e contras a fim de dar o veredicto mais justo
possível ou, como o memorialista
deixa sugerir nos seus relatos, julgar
sempre tendo em vista o lado dos mais fracos.
Seu percurso de magistrado se realiza em várias comarcas,
cada qual com suas peculiaridades, com a sua realidade própria e com seus diferentes
problemas. Poder-se-ia dizer, o
juiz Elmar Carvalho é sempre aquele viajante compelido, por seu ofício, a mudar
de lugares, a conhecer outras pessoas, a conviver com o
provisório.
Poderia
chamar seus relatos de memórias telúricas, visto que
o juiz com suas “confissões” não perde tempo para ir registrando
fatos, cenas, paisagens,
natureza diversa, pessoas diferentes
que encontrou em cada comarca interiorana para a qual era
designado.
A paisagem interiorana, os costumes, os hábitos, a vida social, a vida cultural, se lhe fixaram na retentiva. Tal espólio da memória - “quase dezessete anos de
magistratura” -, se lhe tornaria farto
material de rememoração e de
análises instigantes em forma
de livro.
Confissões de um juiz não se cinge
apenas à experiência técnico-burocrática
de um magistrado-poeta. As memórias se
expandem a outras vertentes de sua função.
O
memorialista não é só o homem da
Justiça, mas o cidadão que tem suas aspirações
e seu idealismo, além de sua
atuação de escritor, de cronista, de ficcionista, de ensaísta que não para
de publicar, tem seu blog,
vive a vida intelectual piauiense, está em sintonia com o mundo acadêmico e com a vida literária de seu Estado. Participa de questões
ambientais, culturais, desportistas, como, no caso da primeira, a da preservação do rio Parnaíba em páginas contundentes
de reação contra os inimigos da natureza.
A obra em exame não é só depositário
de fatos da vida de um juiz,
mas se compõe de textos pictóricos onde o estatuto
da linguagem assume toda uma força lírica,
com belas e comoventes passagens onde se distingue o talento
do memorialista na pintura da paisagem, da flora e fauna
piauienses, como são
exemplos paradigmáticos, na segunda parte da obra, “Memórias afins,” passagens de muita beleza e vigor descritivo (“Oração à Vila de São Gonçalo de Regeneração”, p.57-65
“Evocação de Piracuruca,” p.79-81).
Porém, a beleza de alguns textos não se fazem
apenas de paisagens bem
descritas, mas também de textos alusivos
à condição da justiça praticada
para o bem e à necessidade da prática da
bondade consoante lemos na seção
“Exortação à justiça e à bondade (p.74-77).
O memorialismo de Elmar
Carvalho reúne uma gama de visões e perspectivas formando um painel no qual
o autor fala de escritores,
pessoas comuns, servidores da justiça,
condição humana, injustiças,
prepotência, vícios humanos, erros
da administração pública, erros da justiça, em que nada lhe escapa ao olhar
de espectador atento às misérias humanas.
Outros temas lhe são caros nas relembranças, a sua
participação de atleta, de
goleiro, a sua permanência no Recife a fim de realizar um curso de monitor postal.
Não lhe falta fortaleza moral para
reportar-se ao câncer de que foi vitima, da luta para a sua recuperação e cura, de uma
recaída, formando estes relatos um ponto algo trágico de sua caminhada
existencial, felizmente
tendo superado tudo
com uma vida renovada e pronta a
seguir sua travessia agora mais
empenhada no universo
em que talvez mais se sente
bem e recompensado, que é o de
produzir literatura.
Prende-me a atenção, de forma especial, por seu sentido de humanidade, de afeto, e de saudade, a
terceira parte das memórias, denominada “Memórias afetivas.” Neste
capítulo o poeta Elmar despe-se
de qualquer formalismo de
linguagem e adentra o mundo
dos sentimentos, contudo, sem pieguismo.
Discorre
sobre a perda da mãe, da família, da morte precoce e trágica de sua irmã
Josélia, de seu amigo
inesquecível, Zé Henrique, de seus
antepassados, da grandeza
moral de seu pai, Miguel Arcângelo,
felizmente ainda lhe dando o prazer de seu convívio, da perda inconsolável de
sua irmãzinha Josélia, falecida, aos quinze anos, em acidente
de carro, de seus amigos, de seus irmãos e irmãs e last but no least, das mortes de duas cachorrinhas de estimação, exemplos edificantes da capacidade
de animais serem tão humanos, tão mais do que alguns humanos, Belinha e Anita, em textos
de beleza pungente,
em cujo tempo de leitura não
contive as lágrimas.
Elmar Carvalho pertence à estirpe de
escritores que não deixam escapar a conveniência de entender
a “alma” dos bichos, como o
fazia tão bem outro
retratista de animais, o escritor Guimarães Rosa (1908-1967), com a sua modelar estória de profunda
humanidade, “O burrinho pedrês,” um
conto de Sagarana (1946). Assim
como podíamos citar outros
escritores que deram estatura de
humanidade a animais e bichos, como Graciliano Ramos(1892-1953), com a sua
cadela Baleia, de Vidas secas (1938) e o ficcionista piauiense, Rivanildo Feitosa, em clave cômico-erótica com a personagem-protagonista, uma cadela vira-lata, de nome Sabiá, do romance Reflexões de uma cadela vira-lata (2011)
A
derradeira parte das Memórias de um juiz
se destina ao que chama de “Memória fotográfica.” O bom é que a para cada foto o autor
preparou pequenos textos informativos alusivos às fotos, num total de 29, representativas de momentos marcantes de sua vida pessoal, familiar e
profissional. Finalmente, ao livro acrescenta uma quinta parte,
formada de depoimentos sobre o
autor de figuras da vida cultural piauiense. As duas últimas páginas contêm uma “síntese biográfica do autor".