terça-feira, 29 de outubro de 2013

A crítica literária: um polêmica entre dois críticos



                                                                                 Cunha e Silva Filho



                    Nos anos de  1940  a 1960, sem  querer  pretender  imprimir rigores cronológicos a datas, a crítica literária no  país  alcançou  uma fase  de apogeu, de alta na “Bolsa” das Letras. De apogeu  e ao mesmo  tempo  de turbulência,  porquanto  naquele  recorte de tempo  travava-se uma luta  incessante  de duas  principais correntes  críticas, uma  representando  a estabilidade de seu domínio de influência, outra  que pretendia desbancar a primeira. As duas,  respectivamente, eram o impressionismo    e  o new criticism. Aliás,  observa Adélia Bezerra, que escreveu uma arguta dissertação de mestrado orientada por Antonio Candido, A obra crítica de Álvaro Lins e sua função  histórica (MENESES BOLLE, Adélia. Bezerra de. A obra crítica de Álvaro Lins e sua função histórica. Petróplis,RJ.: Vozes, 1979, p.47)    que  os anos  40 do século passado  foram  pródigos em  polêmicas no país, afirmação  confirmada por uma citação  da ensaísta extraída da revista Careta (1944).
                O   desentendimento  entre Álvaro  Lins (1912-1970) e Afrânio Coutinho (1911-2000) virou  uma ‘briga  feia” como ouvi há pouco   de um famoso  crítico brasileiro. Essa   pendenga em jornais cariocas sobre crítica literária fez história nos arraiais da vida cultural brasileira. Polêmica  feroz,  implacável  nos ataques, sobretudo ou quase tudo  da parte  de Coutinho que, me parece,  entrou na arena para   tentar  desbancar  o prestígio  já consolidado  do crítico  mais  influente  daquela  época,  ou seja,  na segunda fase  do  Modernismo, levando-se  em conta aqui   a divisão  proposta  por  Alceu Amoroso Lima ( 1893-1983), ou como era conhecido, Tristão de Athayde,  quer dizer,  a fase de nossa  história literária  que vai de 1930 a 1945.(apud  COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura  brasileira, 5 ed.. Rio de Janeiro:  Editora Distribuidora de Livros Escolares Ltda., 1968, p.277).
Conquanto a polêmica  tivesse  como seu vetor  principal  as diferenças  de visões  e formas de fazer crítica dos  dois  estudiosos,   ela ainda  tinha  precedentes ligados à vida  profissional  e  à atividade  intelectual de ambos,  primeiro  um artigo de Lins,  "Um segundo Afrânio: um 'exercício'  literário acerca de Machado de Assis",  de 1940, posteriormente  publicado em livro  (LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca (1940-1960). 1 ed. Rio de Janeiro:  Civilização Brasileira, 1963, p.348-354),  foi, em alguns aspectos, desfavorável à obra de Coutinho, A filosofia de Machado de Assis (1940); segundo,  o concurso  para o qual ambos se inscreveram, em 1951,  a fim de disputar a cátedra  de Literatura do   tradicional  Colégio  Pedro II, do Rio de Janeiro. Recordemos que não foi só Lins que censurou o  ensaio de Coutinho. Sérgio Buarque de Holanda, no mesmo ano de 1940, também em artigo de 1940, de título “A filosofia de Machado de Assis” estampado no Diário de Notícias, depois publicado em livro (BUARQUE DE HOLANDA,  Sérgio Cobra de Vidro. São Paulo: Perspectiva/Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia de São Pulo. s.d., p.53-58) ) fez sérias  restrições ao ensaio de  Coutinho.
É bom lembrar  que  Coutinho  foi quem  mais  atacou   seu  oponente, Álvaro Lins,   que o  respondia  de forma      menos dura  e, ao que me consta,  sem  citar o nome de Coutinho. Os artigos, depois,  de parte a parte,  foram  publicados em livros.   Já se falou que  Coutinho,  desde 1943, vinha  fazendo ataques ferinos  ou achincalhantes   contra o impressionismo e tendo  por alvo  principal  Lins. Os seus ataques incluíam  também  as criticas que fazia ao uso  do  rodapé de jornal  no qual os críticos da época   escreviam. Coutinho se opunha a essa forma de usar o jornal  para fazer crítica literária.
Esquecia, porém,  Coutinho que ele mesmo  se utilizava do rodapé  na sua  conhecida  coluna “Correntes cruzadas”,  editada no Suplemento   Literário do Diário  de Notícias  por largo tempo.Ademais,  o que mais atraiu  a opinião dos leitores  interessados em literatura  era que Coutinho, além de doutrinador  da nova crítica sobre a qual, mais adiante comento, escrevia  artigos detratando  as mazelas  da vida literária no país,  cheia   de mediocridades e de  capadócios  despreparados  e formadora de  igrejinhas,  grupelhos, compadrios,  lideranças   inatingíveis, mandonismo literário,  favores  políticos e influências   num  espaço    em que mais tinha  valor a vida literária do que as obras  publicadas. Para ele o ambiente literário  da época  mantinha-se numa deplorável   inércia  de autêntica  e  atuante  dinâmica  de vida literária.
Esse quadro negativo e anacrônico de fazer  literatura,  segundo Coutinho,  tinha que ser passado a limpo por interesses sérios  de  atualizar  os hábitos  ultrapassados da crítica e  dos estudos literários feitos em geral de “achismos”(termo frequentemente  empregado  por Coutinho) em análises  e julgamentos  da produção brasileira, duma crítica   sem sistematização nem padrões   técnicos  e fundamentação   objetiva   de preparo  para a vida  literária e para o ensino  e didática  de Literatura no país. Coutinho  fez-se portador  dessa mudança   que ele deveria  empreender a ferro e fogo. Por volta dos anos 1950, e mesmo antes,  já contava com novos  críticos  usando instrumentais  semelhantes aos de dele   a fim de  derrubar  as lideranças. já  estabelecidas    no comando   da atividade  crítica  brasileira.
 Fausto Cunha (1923-2004),  Darcy Damasceno (1922-1988), de Afonso Félix de Sousa (1925-2002) que, ainda bem jovens,  escreviam, já sob novas óticas de métodos  analíticos do fenômeno literário. Isso na revista Ensaio, como outros  companheiros de Fausto Cunha  já se mostravam, anos antes,  através da Revista Branca. opositores  da liderança  e sentido de  perpetuidade da judicatura  crítica  de Álvaro Lins (CUNHA, Fausto.  A luta literária. Rio de Janeiro: Editora  Lidador,  1964). 
Ocorre,  contudo,  que  Lins, pelo  elevado nível da obra legada  por ele  era um crítico  de esmerada  formação  cultural  que  desenvolvia um crítica  independente,  original  nos moldes  dos  críticos  franceses, “... pelo gosto  da análise psicológica e moral," como  lembrou    Alfredo  Bosi ( Bosi,   Alfredo. História concisa da literatura brasileira.  38 . ed.,. São Paulo: Cultrix. 2001, p. 492).   
 Desde os tempos  de província, em  Recife (nascera  em Caruaru, Pernambuco), onde se formara em direito, já tinha  ganhado  fama  de  intelectual  precoce  interessado  na  crítica,   no magistério e no jornalismo  político. Tanto que no Rio de Janeiro logo  galgou  lugar  de relevo na imprensa,  tornando-se redator-chefe do Correio da Manhã durante bom tempo, dividindo-se entre o jornalismo  político e a crítica literária onde fez sucesso  nacional.Chegou a ser  Embaixador em Portugal no governo de Juscelino  Kubitscheck e lecionou Estudos  Brasileiros.na Universidade de Lisboa.
Naqueles tempos idos,  para simplificar, dois  nomes  estavam  em evidência.Álvaro Lins,  com o seu   impressionismo e  Afrânio Coutinho com a sua  nova crítica. Coutinho nascido em Salvador,  Bahia, formara-se em medicina, mas logo dela  desistira e foi dar   aula em escolas  da capital e escrever em jornais sobre  assuntos vários, sobretudo  literatura. Foi para os Estados Unidos  onde, na Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque,  passou cinco anos  estudando  literatura, principalmente nos campos da crítica e história literária. Em  outras  universidades americanas frequentara  também  cursos de sua especialidade. Fez ainda naquela  universidade cursos de  filosofia tendo sido aluno de Jacques Maritain (1882-1973).
                  Ao voltar para o  Brasil,  procurou logo   pôr em prática  a sua formação  e saber  no domínio  da crítica, quando  iniciou  seu  projeto de  lançar as primeiras   sementes   de renovação  do ensino e estudos   de Literatura no país  através de  doutrinação teórica e da divulgação pela imprensa do Rio de Janeiro, onde passa  a morar,  do new criticism anglo-americano, ou melhor, da  “nova crítica”, e aqui coloco  a expressão em português  para ser coerente  com  a visão de Afrânio Coutinho, que preferia  essa denominação, porque ela não era  a única corrente crítica de renovação  de métodos  e abordagens do fenômeno literário,   mas era uma dentro outros “movimentos  teóricos” (expressão de Jonathan Culler) que estavam  surgindo no Ocidente, como a  nouvelle critique francesa, a estilística espanhola,o  formalismo  russo ou eslavo, a  fenomenologia, a Escola de Zurich,  para não citar outros que surgiram posteriormente.
                  O que Coutinho  sublinhava  era o  fato de que  a nova crítica  fazia parte de um  vasto  movimento  teórico  universal que ia surgindo, segundo   frisei atrás,   com  novos  métodos  de abordagens do fenômeno  literário e artístico, com  fundamentação  em  estudos  literários de feição científica,  objetiva, dando  ênfase  maior aos elementos  intrínsecos da obra  em si,  centralizando sua atenção na linguagem  literária considerada na sua autonomia,  aportando variados  modos  de se  analisar,  interpretar e julgar  obras literárias, deixando para trás  o componente da subjetividade,   das impressões   e  do bom  ou mau gosto  do  impressionismo.
                .Deixava de lado  aquilo   que  dois autores  franceses   identificavam em síntese conclusiva  sobre  o impressionismo  na crítica: “O impressionismo possui  o grande mérito  de conservar na crítica  um charme, um prazer, os quais os  ‘críticos  sérios’ não mais logram   transmitir-nos. Além do quê,  todavia,  segundo vimos,  a sua  posição  é insustentável e dela   amiúde  somos,  aos poucos ou  de vez, impelidos a nos   afastar, não raro  nos  passa uma visão  rápida e superficial  das obras. Um estudo  paciente, atento, enfim,  erudito, não parece, por conseguinte,  tão inútil quanto  dele se diz.”( CARLONI, J.C. FILLOUX, Jean-C.  La critique littéraire Jean-C.  6ème édtion, 1969, p.64.  Paris: Presses  Universitaires de France – Que sais-je?).
Lins, por sua vez,  se manteve no magistério e nos jornal escrevendo  artigos e publicando  livros.Crítico  rigoroso, polígrafo notável, com  estofo de  pensador,  seus julgamentos   não tinham compromisso  com as amizades  pessoais, mas  com  a obra literária, com  o valor  de um escritor. Era difícil, ao criticar uma obra, não lhe apontar as qualidades e  os defeitos, não para  destruir  gratuitamente  um autor,  mas  para  fazer-lhe  sugestões  ou mostrar  formas  de um escritor  melhorar  a sua forma   de elaboração  ficcional, ou, quando não houvesse jeito,  não estimular  a obra de alguém  que não demonstrasse  talento para  produzir  literatura. Isso o fazia fosse um livro  de ficção,  de poesia,  de teatro, de história, de filosofia, não importasse o gênero.
 Grande parte dos escritores de maior grandeza  passaram por seu julgamento nos anos áureos de militância  deste “Imperador da Crítica”: Graciliano Ramos,  Guimarães Rosa,  Clarice Lispector, só para nomear uns poucos  de tantos outros  talentos criadores.
 Valorizando na obra  tanto  a personalidade  literária do autor quanto  a qualidade  da linguagem literária, sobretudo  o componente do estilo,   da imaginação e  da estrutura   de composição, da  unidade estética em que o artefato   literário   se torna   uma  forma  coerente  quanto  à correspondência  e adequação  a  determinado  gênero   a que se propôs o  autor, Lins  não dispensa  outros elementos   de estruturação  da obra, dando especial   realce  ao sentimento   de  vida  e verossimilhança  gerada  pelos meios  e técnicas  criativos  que se transformam   numa realidade  humana  possível com  personagens,   enredo, ações, espaço e tempo prenhes de vida  própria na sua autenticidade  e na sua  condição de seres  que pensam, agem,  choram e vivem a humana condição no  universo  ficcional, nas imagens e metáforas  de um poema ou  na dinâmica  viva  das cenas da dramaturgia  de vidas  criadas  pelo imaginário  do artista.
 E tal  procedimento  na militância critica e nos livros  vale também e em alto nível  de conhecimento  de literatura  universal , alicerçado  em  bibliografia  atualizada. Sua competência  crítica  e teórica  cresceram , reconhecia os novos marcos  de abordagens  críticas que vinham surgindo  nos grandes centros   do Ocidente. Seus últimos ensaios   testemunham  e confirmam  que o seu impressionismo  humanístico  não se mede por  meros  rótulos, muitos  deles injustos e parciais . Antigos  adversários lhe reconhecem,  anos depois,   o talento  e  a capacidade, além do valor  de sua  obra  grande para o tempo  que  viveu, que não foi muito. 
Os tempos  passam,  a polêmica continua até pelo menos a década de 60. Tem   simpatizantes  dos  dois lados. Lins, sempre  atento ao desenvolvimentos  dos estudos literários,   publica  seus  últimos  estudos   com  forte sinais de que  se modernizou. Seu pensamento crítico   é de  largo  espectro e dele faz uma das  vozes  críticas mais   importantes  surgidas no pais. Antonio Candido, com muita exatidão, o define como o mais “puro “ dos críticos  brasileiros.  
Descontada a fase  polêmica  de Afrânio Coutinho, e isso  é  oportunamente  lembrado  por Eduardo Portella (Dimensões I. 3 ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro/MEC,p. 32-33 ), Coutinho  passou   à fase das realizações,  do amadurecimento  que os anos  favorecem, vê  concretizado   tudo que  há tempos   perseguia com  sofreguidão,  com determinação. Sobretudo no meio acadêmico   a sua  doutrinação    se tornou   realidade. Sua pregação  por  uma mentalidade  atualizada nos estudos  literários  do pais,  no ensino superior  de Letras bem com no ensino médio,   mostrava seus  bons resultados. O meio acadêmico lhe deve isso.
Os estudos  de Letras se puseram em sintonia  com o que lá fora, nos grandes centros,  se tem feito para aperfeiçoar  o nível  dos estudantes e a qualidade de nossos  cursos de Letras, com a implantação da pós-graduação, nos níveis de atualização e  especialização   lato sensu e de  progressivos e  mais complexos   níveis de pesquisa  stricto sensu de produção acadêmica,  o mestrado,  o  doutorado,  o  pós-doutorado. No Rio de Janeiro,  tudo isso tem o dedo de Coutinho que ingressou  na Universidade do Brasil, primeiro como  professor  interino e, depois, como  professor catedrático  por concurso, de  literatura brasileira do  curso de  Letras daquela universidade, sucedendo ao grande  crítico  Tristão de Athayde, que se aposentara.
Faz um ano um  jovem ensaísta, Miguel Conde, que escreve periodicamente  para o  Prosa & Verso, do jornal O Globo,  retomou  em artigo de título  “O dever de agredir”(20/10/2012) bastante lúcido a questão da polêmica entre Lins e Coutinho mas tocou em alguns pontos  de ordem opinativa  de leitor ao afirmar  que não  lhe parece    serem  mais  motivadores   os textos  de Lins  e muito menos os  de Coutinho, ainda que  tenha  equacionado sua  discussão sobre o tema da polêmica   de forma  equilibrada,  isto é,     sob perspectivas  de leitor  da atualidade. Entretanto,   não vejo  como   matéria  de importância secundária   a releitura  tanto de Lins quanto de Coutinho,  sobretudo se tenho  em vista  uma pesquisa de  revisão e  resgate  das obras dos  dois críticos  e ainda mais quando tenho  por objetivo  uma visada daquilo de bom  ou ótimo ou mesmo  de ruim  na produção legada por  ambos.
 Ao contrário,  ao pesquisador  da história literária  discutir o nível dos vários aspectos dos atores que, ao longo  dos tempos formaram o corpus  da  história da crítica literária brasileira  é oportuno,  notadamente  com  o distanciamento  que temos  dos anos  40, 50 e  60,  e é  o  que venho fazendo em  pesquisa no momento.
Desta reavaliação poderemos   verificar até que ponto  dois críticos  tão diferentes e com  poucas  semelhanças   de vida  intelectual,  não obstante ambos  dando provas  de reais  interesses  de  aperfeiçoamento de formação cultural, nos  instigam a releituras que, pelo menos  para quem escreve  este artigo, ainda têm muito a  dizer e a ensinar. Não,  talvez,  a  quem  se  prende  ao canto de sereia   da aventura  intelectual do primado   do presente,  que julgo ser   um dos  exageros  da gerações  mais novas.Lembro,  por sinal, neste fecho  de artigo, as palavras do velho  crítico  expressionista  Tristão de Athayde de; “Tudo é novo debaixo do sol, ao contrário do que considerava o pessimismo do velho  Salomão, exceto a escala intrínseca dos valores.” LIMA, Alceu Amoroso. Quadro sintético da literatura brasileira. 3 ed revista e ampliada,  Rio de Janeiro: Edições de Ouro, p.152).


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