Cunha e Silva
Filho
Nos anos de
1940 a 1960, sem querer
pretender imprimir rigores
cronológicos a datas, a crítica literária no
país alcançou uma fase
de apogeu, de alta na “Bolsa” das Letras. De apogeu e ao mesmo
tempo de turbulência, porquanto
naquele recorte de tempo travava-se uma luta incessante
de duas principais correntes críticas, uma
representando a estabilidade de
seu domínio de influência, outra que
pretendia desbancar a primeira. As duas,
respectivamente, eram o impressionismo e o new criticism. Aliás, observa Adélia Bezerra, que escreveu uma
arguta dissertação de mestrado orientada por Antonio Candido, A obra
crítica de Álvaro Lins e sua função histórica (MENESES BOLLE, Adélia. Bezerra
de. A obra crítica de Álvaro Lins e sua
função histórica. Petróplis,RJ.:
Vozes, 1979, p.47) que os
anos 40 do século passado foram pródigos
em polêmicas no país, afirmação confirmada por uma citação da ensaísta extraída da revista Careta (1944).
O desentendimento entre Álvaro
Lins (1912-1970) e Afrânio Coutinho (1911-2000) virou uma ‘briga
feia” como ouvi há pouco de um
famoso crítico brasileiro. Essa pendenga
em jornais cariocas sobre crítica literária fez história nos arraiais da vida cultural
brasileira. Polêmica feroz, implacável
nos ataques, sobretudo ou quase tudo
da parte de Coutinho que, me
parece, entrou na arena para tentar
desbancar o prestígio já consolidado do crítico
mais influente daquela
época, ou seja, na segunda fase do
Modernismo, levando-se em conta
aqui a divisão proposta
por Alceu Amoroso Lima ( 1893-1983), ou como era conhecido, Tristão de Athayde, quer dizer, a fase de nossa história literária que vai de 1930 a 1945.(apud
COUTINHO, Afrânio. Introdução à
literatura brasileira, 5 ed.. Rio de Janeiro:
Editora Distribuidora de Livros Escolares Ltda., 1968, p.277).
Conquanto a
polêmica tivesse como seu vetor
principal as diferenças de visões
e formas de fazer crítica dos
dois estudiosos, ela ainda
tinha precedentes ligados à
vida profissional e à
atividade intelectual de ambos, primeiro
um artigo de Lins, "Um segundo Afrânio: um 'exercício' literário acerca de Machado de Assis", de 1940, posteriormente publicado em livro (LINS, Álvaro. Os mortos de sobrecasaca (1940-1960). 1 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963, p.348-354), foi, em alguns aspectos, desfavorável à obra de
Coutinho, A filosofia de Machado de Assis (1940); segundo, o concurso
para o qual ambos se inscreveram, em 1951, a fim de disputar a cátedra de Literatura do tradicional Colégio
Pedro II, do Rio de Janeiro. Recordemos que não foi só Lins que censurou
o ensaio de Coutinho. Sérgio Buarque de
Holanda, no mesmo ano de 1940, também em artigo de 1940, de título “A filosofia
de Machado de Assis” estampado no Diário de
Notícias, depois publicado em livro (BUARQUE DE HOLANDA, Sérgio Cobra
de Vidro. São Paulo: Perspectiva/Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia
de São Pulo. s.d., p.53-58) ) fez sérias
restrições ao ensaio de Coutinho.
É bom
lembrar que Coutinho
foi quem mais atacou
seu oponente, Álvaro Lins, que o
respondia de forma menos dura
e, ao que me consta, sem citar o nome de Coutinho. Os artigos, depois, de parte a parte, foram
publicados em
livros. Já se falou
que Coutinho, desde 1943, vinha fazendo ataques ferinos ou achincalhantes contra o impressionismo e tendo por alvo
principal Lins. Os seus ataques
incluíam também as criticas que fazia ao uso do
rodapé de jornal no qual os
críticos da época escreviam. Coutinho
se opunha a essa forma de usar o jornal
para fazer crítica literária.
Esquecia,
porém, Coutinho que ele mesmo se utilizava do rodapé na sua
conhecida coluna “Correntes
cruzadas”, editada no Suplemento Literário do Diário de Notícias por largo tempo.Ademais, o que mais atraiu a opinião dos leitores interessados em literatura era que Coutinho, além de doutrinador da nova crítica sobre a qual, mais adiante
comento, escrevia artigos
detratando as mazelas da vida literária no país, cheia de mediocridades e de capadócios
despreparados e formadora de igrejinhas,
grupelhos, compadrios,
lideranças inatingíveis, mandonismo
literário, favores políticos e influências num espaço
em que mais tinha valor a vida literária do que as obras publicadas. Para ele o ambiente
literário da época mantinha-se numa deplorável inércia
de autêntica e atuante
dinâmica de vida literária.
Esse quadro
negativo e anacrônico de fazer literatura, segundo Coutinho, tinha que ser passado a limpo por interesses
sérios de atualizar
os hábitos ultrapassados da crítica e dos estudos literários feitos em geral de
“achismos”(termo frequentemente empregado por Coutinho) em análises e julgamentos
da produção brasileira, duma crítica
sem sistematização nem padrões
técnicos e fundamentação objetiva
de preparo para a vida literária e para o ensino e didática de Literatura no país. Coutinho fez-se portador dessa mudança que ele deveria empreender a ferro e fogo. Por volta dos anos
1950, e mesmo antes, já contava com
novos críticos usando instrumentais semelhantes aos de dele a fim de
derrubar as lideranças. já estabelecidas no comando da atividade
crítica brasileira.
Fausto Cunha (1923-2004), Darcy Damasceno (1922-1988), de Afonso Félix
de Sousa (1925-2002) que, ainda bem jovens, escreviam, já sob novas óticas de métodos analíticos do fenômeno literário. Isso na
revista Ensaio, como outros companheiros de Fausto Cunha já se mostravam, anos antes, através da Revista Branca. opositores da liderança e sentido de
perpetuidade da judicatura
crítica de Álvaro Lins (CUNHA,
Fausto. A luta literária. Rio de Janeiro: Editora Lidador,
1964).
Ocorre, contudo,
que Lins, pelo elevado nível da obra legada por ele
era um crítico de esmerada formação
cultural que desenvolvia um crítica independente,
original nos moldes dos
críticos franceses, “... pelo
gosto da análise psicológica e
moral," como lembrou
Alfredo
Bosi ( Bosi, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 38 . ed.,. São Paulo: Cultrix. 2001, p. 492).
Desde os tempos de província, em Recife (nascera em Caruaru, Pernambuco), onde se formara em
direito, já tinha ganhado fama
de intelectual precoce
interessado na crítica,
no magistério e no jornalismo
político. Tanto que no Rio de Janeiro logo galgou
lugar de relevo na imprensa, tornando-se redator-chefe do Correio da Manhã durante bom tempo,
dividindo-se entre o jornalismo político
e a crítica literária onde fez sucesso
nacional.Chegou a ser Embaixador
em Portugal no governo de Juscelino
Kubitscheck e lecionou Estudos
Brasileiros.na Universidade de Lisboa.
Naqueles
tempos idos, para simplificar, dois nomes
estavam em evidência.Álvaro Lins , com o seu
impressionismo e Afrânio
Coutinho com a sua nova crítica. Coutinho nascido em Salvador, Bahia,
formara-se em medicina, mas logo dela
desistira e foi dar aula em
escolas da capital e escrever em jornais
sobre assuntos vários, sobretudo literatura. Foi para os Estados Unidos onde, na Universidade de Colúmbia, em Nova Iorque, passou cinco anos estudando literatura, principalmente nos campos da crítica e história literária. Em outras universidades americanas frequentara também cursos de sua especialidade. Fez ainda naquela universidade cursos de filosofia tendo sido aluno de Jacques Maritain (1882-1973).
Ao voltar para o Brasil, procurou logo
pôr em prática a sua
formação e saber no domínio
da crítica, quando iniciou seu
projeto de lançar as
primeiras sementes de renovação
do ensino e estudos de
Literatura no país através de doutrinação teórica e da divulgação pela
imprensa do Rio de Janeiro, onde passa a
morar, do new criticism
anglo-americano, ou melhor, da “nova
crítica”, e aqui coloco a expressão em
português para ser coerente com a
visão de Afrânio Coutinho, que preferia
essa denominação, porque ela não era
a única corrente crítica de renovação
de métodos e abordagens do
fenômeno literário, mas era uma dentro outros
“movimentos teóricos” (expressão de Jonathan Culler) que estavam surgindo no Ocidente, como a nouvelle critique francesa, a estilística espanhola,o formalismo
russo ou eslavo, a fenomenologia,
a Escola de Zurich, para não citar outros
que surgiram posteriormente.
O que Coutinho
sublinhava era o fato de que
a nova crítica fazia parte de
um vasto
movimento teórico universal que ia surgindo, segundo frisei atrás, com
novos métodos de abordagens do fenômeno literário e artístico, com fundamentação
em estudos literários de feição científica, objetiva, dando ênfase
maior aos elementos intrínsecos
da obra em si, centralizando sua atenção na linguagem literária considerada na sua autonomia, aportando variados modos
de se analisar, interpretar e julgar obras literárias, deixando para trás o componente da subjetividade, das impressões e do
bom ou mau gosto do
impressionismo.
.Deixava de lado aquilo
que dois autores franceses
identificavam em síntese conclusiva
sobre o impressionismo na crítica: “O impressionismo possui o grande mérito de conservar na crítica um charme, um prazer, os quais os ‘críticos
sérios’ não mais logram transmitir-nos.
Além do quê, todavia, segundo vimos, a sua posição
é insustentável e dela amiúde
somos, aos poucos ou de vez, impelidos a nos afastar, não raro nos
passa uma visão rápida e
superficial das obras. Um estudo paciente, atento, enfim, erudito, não parece, por conseguinte, tão inútil quanto dele se diz.”( CARLONI, J.C. FILLOUX,
Jean-C. La critique littéraire Jean-C.
6ème édtion, 1969, p.64. Paris:
Presses Universitaires de France – Que sais-je?).
Lins, por sua
vez, se manteve no magistério e nos
jornal escrevendo artigos e
publicando livros.Crítico rigoroso, polígrafo notável, com estofo de
pensador, seus julgamentos não tinham compromisso com as amizades pessoais, mas
com a obra literária, com o valor
de um escritor. Era difícil, ao criticar uma obra, não lhe apontar as
qualidades e os defeitos, não para destruir
gratuitamente um autor, mas
para fazer-lhe sugestões
ou mostrar formas de um escritor melhorar
a sua forma de elaboração ficcional, ou, quando não houvesse
jeito, não estimular a obra de alguém que não demonstrasse talento para
produzir literatura. Isso o fazia
fosse um livro de ficção, de poesia,
de teatro, de história, de filosofia, não importasse o gênero.
Grande parte dos escritores de maior
grandeza passaram por seu julgamento nos
anos áureos de militância deste “Imperador
da Crítica”: Graciliano Ramos, Guimarães
Rosa, Clarice Lispector, só para nomear
uns poucos de tantos outros talentos criadores.
Valorizando na obra tanto
a personalidade literária do
autor quanto a qualidade da linguagem literária, sobretudo o componente do estilo, da imaginação
e da estrutura de composição, da unidade estética em que o artefato literário
se torna uma forma
coerente quanto à correspondência e adequação a determinado
gênero a que se propôs o autor, Lins
não dispensa outros elementos de estruturação da obra, dando especial realce
ao sentimento de vida e
verossimilhança gerada pelos meios
e técnicas criativos que se transformam numa
realidade humana possível com
personagens, enredo, ações,
espaço e tempo prenhes de vida própria
na sua autenticidade e na sua condição de seres que pensam, agem, choram e vivem a humana condição no universo
ficcional, nas imagens e metáforas
de um poema ou na dinâmica viva
das cenas da dramaturgia de
vidas criadas pelo imaginário do artista.
E tal
procedimento na militância
critica e nos livros vale também e em
alto nível de conhecimento de literatura
universal , alicerçado em bibliografia
atualizada. Sua competência
crítica e teórica cresceram , reconhecia os novos marcos de abordagens
críticas que vinham surgindo nos
grandes centros do Ocidente. Seus
últimos ensaios testemunham e confirmam
que o seu impressionismo
humanístico não se mede por meros
rótulos, muitos deles injustos e
parciais . Antigos adversários lhe
reconhecem, anos depois, o talento
e a capacidade, além do valor de sua
obra grande para o tempo que
viveu, que não foi muito.
Os tempos passam,
a polêmica continua até pelo menos a década de 60. Tem
simpatizantes dos
dois lados. Lins, sempre atento
ao desenvolvimentos dos estudos
literários, publica seus
últimos estudos com
forte sinais de que se
modernizou. Seu pensamento crítico é de largo
espectro e dele faz uma das vozes críticas
mais importantes surgidas no pais. Antonio Candido, com muita
exatidão, o define como o mais “puro “ dos críticos brasileiros.
Descontada a
fase polêmica de Afrânio Coutinho, e isso é
oportunamente lembrado por Eduardo Portella (Dimensões I. 3 ed. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro/MEC,p.
32-33 ), Coutinho passou
à fase das realizações, do amadurecimento que os anos
favorecem, vê concretizado tudo que
há tempos perseguia com sofreguidão,
com determinação. Sobretudo no meio acadêmico a sua
doutrinação se tornou realidade. Sua pregação por
uma mentalidade atualizada nos
estudos literários do pais,
no ensino superior de Letras bem
com no ensino médio, mostrava seus bons resultados. O meio acadêmico lhe deve
isso.
Os
estudos de Letras se puseram em
sintonia com o que lá fora, nos grandes
centros, se tem feito para aperfeiçoar o nível
dos estudantes e a qualidade de nossos
cursos de Letras, com a implantação da pós-graduação, nos níveis de
atualização e especialização lato
sensu e de progressivos e mais complexos níveis de pesquisa stricto
sensu de produção acadêmica, o
mestrado, o doutorado,
o pós-doutorado. No Rio de Janeiro, tudo isso tem o dedo de Coutinho que ingressou na Universidade do Brasil, primeiro como professor
interino e, depois, como
professor catedrático por
concurso, de literatura brasileira
do curso de Letras daquela universidade, sucedendo ao
grande crítico Tristão de Athayde, que se aposentara.
Faz um ano um jovem
ensaísta, Miguel Conde, que escreve periodicamente para o
Prosa & Verso, do jornal O Globo,
retomou em artigo de título “O dever de agredir”(20/10/2012) bastante
lúcido a questão da polêmica entre Lins e Coutinho mas tocou em alguns
pontos de ordem opinativa de leitor ao afirmar que não
lhe parece serem
mais motivadores os textos
de Lins e muito menos os de Coutinho, ainda que tenha equacionado
sua discussão sobre o tema da
polêmica de forma equilibrada,
isto é, sob perspectivas de leitor
da atualidade. Entretanto, não
vejo como matéria
de importância secundária a
releitura tanto de Lins quanto de
Coutinho, sobretudo se tenho em vista
uma pesquisa de revisão e resgate
das obras dos dois críticos e ainda mais quando tenho por objetivo
uma visada daquilo de bom ou
ótimo ou mesmo de ruim na produção legada por ambos.
Ao contrário,
ao pesquisador da história
literária discutir o nível dos vários aspectos
dos atores que, ao longo dos tempos
formaram o corpus da história da crítica literária brasileira é oportuno, notadamente com o
distanciamento que temos dos anos
40, 50 e 60, e é o que venho fazendo em pesquisa no momento.
Desta reavaliação
poderemos verificar até que ponto dois críticos
tão diferentes e com poucas semelhanças
de vida intelectual, não obstante ambos dando provas de reais interesses de aperfeiçoamento de formação cultural, nos instigam a releituras que, pelo menos para quem escreve
este artigo, ainda têm muito a
dizer e a ensinar. Não, talvez, a quem
se prende ao canto de sereia da aventura
intelectual do primado do
presente, que julgo ser um
dos exageros da gerações mais novas.Lembro, por sinal, neste fecho de artigo, as palavras do velho crítico
expressionista Tristão de Athayde de;
“Tudo é novo debaixo do sol, ao contrário do que considerava o pessimismo do velho Salomão, exceto a escala intrínseca dos
valores.” LIMA, Alceu Amoroso. Quadro
sintético da literatura brasileira. 3 ed revista e ampliada, Rio de Janeiro: Edições de Ouro, p.152).