Cunha e Silva Filho
Os textos que, com criteriosa seleção e pela experiência de leitor de literatura, ousei incluir no que chamei de “Fronteira entre o conto e a crônica”, ou seja, “A casa fechada” e “Obstáculo inesperado ou o desafio de uma escada”, poderiam situar-se na verdade nessa fronteira, posto que reconheça quão vago, fluido ou mesmo confluente possa ser o esforço do analista ou crítico empreendido numa classificação genológica precisa.
À primeira vista, há um traço comum a ambos: o suspense, particularidade mais da índole do conto propriamente dito, mas, .à proporção que se vai desenvolvendo o ato da leitura, o relato vai desatando um pouco a sua natureza híbrida, do prisma de classificação genológica, quer no tema, quer na composição do texto. Desta forma, ao longo da minha análise, ainda que aponte para uma ou outra classificação, advirto o leitor de que o mencionado hibridismo genológico nos dois textos permanecerá como um desafio classificatório.
Na crônica/conto “A casa fechada,” uma habitação é envolvida por um halo de mistério. O narrador, em primeira pessoa, assim como o possível leitor, partilham desse mistério, assim como, no discurso narrativo, os “moradores vizinhos.” O mistério seria saber quem é o estranho morador da casa, um ermitão sombrio e arredio a qualquer contato com a vizinhança.
Esse personagem é tão o sombrio quanto a casa solitária, cuja característica principal é permanecer “fechada.”Ninguém, na vizinhança, sabe quem seja, Ele continua no seu isolamento de todos, incomunicável. Só num momento do texto, fica o narrador sabendo que o ermitão sai da casa à noite quase invisível. Nele tudo é soturno, indefinível. Porém, o silencioso e soturno ermitão, uma vez sai de casa. Seus trajes, como a noite são escuros. Cobre-lhe a cabeça uma “aba” de boné. Rápido, vai até a um orelhão e faz algumas ligações. Sua fala é baixa a fim de não ser inteligível para ninguém. Depois, vai a uma mercearia que já estava fechando. De volta, leva “ pequena sacola de compras.”
No relato há espaço, tempo, personagens, contudo a ideia de uma intriga não existe especificamente como num conto clássico de um Guy de Maupassant (1850-1893) nem tampouco poderia vincular o relato às peculiaridades estruturais de um Tchekhov (1860-1904), um desconstrutor de enredos e de linearidade narrativa. Portanto, no caso do texto em estudo, e dadas às particularidades de sua estrutura narrativa, me inclino a figurá-lo como um relato próprio do domínio da subjetividade da crônica. Outra marca do texto que poderia reforçar essa dimensão lírica que podemos desentranhar da linguagem do texto na descrição da paisagem e de tudo aquilo que constitui a natureza física, a localização dos objetos, o fluir do tempo, das estações, numa dinamismo e síntese mais apropriados à natureza da crônica, i.e., a introjeção do reino da subjetividade a partir mesmo da natureza do narrador em primeira pessoa, sem a intenção deliberada de construir um mundo do possível, que é o da criação literária, da ficção.
É evidente que o sentido do texto é mais na direção de convocar o leitor a apreciar uma fatia da vida de um personagem excêntrico contada em linguagem fluente, criativa, consentânea com o requisito essencial a uma crônica, que é transformar relatos sobre observações da vida, dos homens e da natureza em peças literária que, pelo seu teor de linguagem, poderão permanecer na literatura.
A circunstância de o autor/cronista trazer para o interior do enunciado citações de dois autores da literatura universal, Charles Dickens (1812—1870) e Fernando Pessoa (1888-1935) não é aleatória. A subjetividade, a forma pessoal de olhar para a existência e suas múltiplas motivações imprimem ao texto traços que mais se amoldam ao que teoricamente entendo por crônica. Essa subjetividade não vislumbra intenções de criar mundos, de instaurar realidades imaginárias com autonomia e status de ficcionalidade, as quais, de certa forma, parecem concorrer, por assim dizer, com o mundo empírico ou o mundo das referencialidades. A essência da crônica tem pé mais fincado na realidade, o que não significa que pode ultrapassá-la ou superá-la, em algumas situações, com elementos hauridos na imaginação. Daí o seu alegado hibridismo de forma literária, daí sua indetermiinação classificatória.
Vejamos, agora, a segunda crônica/conto, “Obstáculo inesperado ou o desafio de uma escada.”Neste texto, existe um pormenor que logo salta à vista: o narrador utiliza um verbo na primeira pessoa do plural, a forma verbal “entramos” (primeira linha do texto). Ora, se aí se inscreve no plural pressupõe-se que ele se acompanha de mais alguém.. Até ao final do relato não há indicações de quem seja, ou quais são os outros possíveis personagens que, pela circunstância da história, deveriam ser a mulher e/ou filhos. O texto porém, silencia esta dimensão. Acredito que seria proposital por parte do autor/narrador cronista.
O narrador é alguém que está entrando numa “pequena cidade” de nome Planalto. Era tarde da noite e fazia frio intenso. O narrador tinha reserva num hotel, mas não havia indicação de endereço para localizá-lo. A cidade era completo silêncio e escuridão. Como encontrar o hotel? Recorreu à ideia de um hospital. Neste tudo estava fechado. Voltou ao carro e percebeu uma mulher com uma criança. Indagou-lhe sobre o local do hotel e ela lhe respondeu que distava “uns três quarteirões” e ficava em cima de um posto”. Lá chegou, mas o encontrou na escuridão. Numa casa ao lado, havia um casal que o observava. Disseram, da janela, como o viajante chegaria ao hotel: passar por um posto e dobrar à direita.Iria encontra uma “portinha estreita com campainha. Seria a entrada do hotel.
Lá chegou. Mas, como encontrar a campainha se tudo estava breu? Voltou ao carro e focou os faróis com intensidade. Conseguiu assim ver a campainha. Tocou-a duas vezes e de uma janela surgiu uma “cabeça desgrenhada” de um homem O viajante gritou-lhe que tinha reserva para aquela noite. O viajante percebeu movimentos lá no alto da janela e o homem lhe dissera onde estacionar o carro e como poderia subir até ao quarto do hotel por uma escada.O viajante retirou as malas e toa a bagagem que trazia. Mas, onde estava a escada que não se via? Com esforço a viu. Era um escada espiralada, estreita e escura, difícil de subir com as malas. Como fazer senão subir? A única solução era primeiro escalar os degraus colocando a mala “três degraus acima” e, em seguida, subir, já que, por ser estreita, não seria possível subir junto com a mala. Teve que fazer esta aventura três vezes até levar tudo para o quarto. Finalmente, se em contra no quarto livre da friagem da cidade .
No dia seguinte, teve que descer a escada de costas, ou “de ré”, como diz o narrador, invertendo, assim, as ações de subida, a fim de não danificar a bagagem. Esfalfado, “suado” e aborrecido, volta no carro com destino a outras plagas.
O texto valoriza o dinamismo das ações dos personagens.No entanto, ficam no ar algumas perguntas do ponto de vista de sua estrutura narrativa. Quem é o personagem que acompanha o narrador-viajante? O que este fizera no hotel entre a noite de entrada no quarto e a manhã seguinte? Por que tudo no texto tem uma atmosfera abafada, pesada, misteriosa até? Esses vazios, a meu ver, são estrategicamente provocadas pelo autor. Não há respostas categóricas para eles. Caberia ao leitor deslindá-las, ele que, em termos atuais, se vem tornando cada vez mais um elo colaborador na recepção do texto literário.
Por algumas características, o texto pode se inserir tanto na classificação da crônica, como no conto. Sendo uma forma “híbrida” segundo ensina Massaud Moisés ( Dicionário de termos literários. 6 ed. São Paulo: Cultrix, p. 131-133, 1992), o texto em questão seria uma crônica se o consideramos como uma narrativa subjetiva, pessoal, valendo-se da “recriação da realidade,” que é a passagem do dado empírico para o do imaginário, conforme antes ressaltei.
Por outro lado, pela secura e objetividade de cunho realista,, pelos elementos constituintes da narrativa – tempo e espaço delimitados, personagem explícitos e personagens implícitos ou fortuitos, por contar um fato ocorrido e seus percalços, por seus vazios relativos a dados sobre personagens, o texto poderia da mesma forma ser rotulado de conto, não de um conto clássico, linear, explícito, fácil de ser reproduzido (R.REIS, Luzia de Maria. O que é conto. 3 ed. São Paulo: Editora Brasiliense, Coleção Primeiros Passos, 135), mas de um conto com foros de modernidade, inclusive pela utilização de uma enunciação de natureza metaficcional, segundo já salientei neste estudo.
Deste modo, por sua indeterminação genológica, argumento que bem poderia se estender a alguns textos que classifiquei como contos, de vez que entre os dois gêneros existe confluência e não divisão matematicamente compartimentada. Por outro lado, este sempre foi o objetivo principal de uma abordagem ensaística que, como se sabe, tem sempre um caráter aproximativo, um a tentativa, entre outras, de lidar com o fenômeno literário, sem pretensões de todo conclusivas. Longe disso.
Certa vez, o crítico Antonio Candido, discutindo alguns conceitos da teoria literária, a propósito de uma autor brasileiro, declarou serem alguns elementos da narrativa meras terminologias, muitas vezes menos relevantes do que a real grandeza da criação literária, ficcional, que é muita mais ampla no seu alcance.
O ensaio, em geral, nunca almejou ser uma experiência de tese meramente científica ou estatística. O ensaio e a arte literária não podem perder um componente intrínseco: a sua dimensão estética, seus valores expressivos, semânticos, de construção de linguagem, de composição, de técnicas e estratégias conscientes de sua aplicação e de seus efeitos sobre o leitor, enfim, de sua retórica ficcional.
O volume de contos sob o título O campo no coração não somente em seus pontos altos como nas suas realizações menos ambiciosas, são, a meu ver, e pelo que este estudo suscitou, a resposta do autor a todas as exigências que a Arte lhe faz e lhe cobra em forma de criação literária. Tanto para os textos identificados como contos quanto para os que Machado de Assis conceituou como “a arte do útil e do fútil.” Enéas Athanázio preferiu servir-se, na crônica, da opção pelo “útil.” E não perdeu por isso.
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