Cunha e Silva Filho
O humorismo brasileiro é tão típico, tão particular que Chico Anysio, lamentavelmente falecido hoje à tarde, já madurão, tentou uma vez ir trabalhar na América, procurar abrir uma brecha ao humorismo em palcos ianques. Não dera certo.
Nunca dera certo nem daria por motivos vários e contrastantes: a barreira da língua, a formação de sua cultura artística tão impregnada de nordestinidade ainda que estivesse por tanto tempo fora do Ceará. Nordestino tão-só. Um norte-americano, afeito às tecnologias do humorismo adquirido nas suas sofisticadas escolas de teatro, de cinema, para expressar a realidade na prática os valores e as mazelas da terra do Tio Sam, jamais teria entendido o que visceralmente estava implantado na alma do humorista brasileliro. Chico Anysio, era todo ele voltado para fazer rir – isso sim - o brasileiro, o seu povo tão identificado com os seus personagens multifários, compostos de uma galeria de tipos quase todos enraizados em figuras populares: o fazendeiro bronco nordestino e loroteiro, o malandro carioca, o preto mandingueiro, o professor Raimundo – personagem que o tornou famosíssimo dada a alta audiência da série na TV Globo.
O seu humorismo, entretanto, vai bem mais fundo, porque sabe explorar o tipo representativo de um segmento social, em geral, de extração baixa ou média. Interessava ao humorista talentoso a captação do momento exato, do ponto perfeito na combinação do retrato moral do personagem com a situação vivida. Se nele podemos rastrear elementos da comédia que remontam a um, por exemplo, Martins Pena (1815-1848), nele também podemos divisar tomadas de humorismo mais bem sofisticadas do ponto de vista cênico-temático, como a figura daquela personagem cujo interlocutor exerce a função mais relevante do país. Era aí, neste diálogo de mão única que o fio contundente da denúncia social-política – veio amplo e material farto para a exploração do humorismo de natureza frequentemente paródica (lembram-se daquele personagem dele, imitando um conhecido cantor e compositor baiano?) em clave maior de sutileza crítica, reforçada admiravelmente por uma capacidade original do próprio uso da linguagem, em que a repetição de uma palavra, por via iterativa, se dava num crescendo até o ponto decrescente, cujo limite era o silêncio como metáfora dos absurdos do cotidiano da política nacional: “eu juro, juro, juro, juro...”
O humorismo anisiano se fez dessa fragmentação, desses pedaços do povo e do país, divertindo mas castigando como na comédia de Sêneca.
Não há bom humorista que passa incólume com os percalços e os desconcertos do seu país, com os seus costumes, suas misérias, suas enganações e sua hipocrisia. No humorismo bem estruturado e feito com criatividade, como era o dele, desvela-se com facilidade uma realidade que é nossa, um grito mesmo contra as situações aflitivas de um povo. Enquanto o riso rola, existe, nas camadas subtextuais, a revelação e síntese do comportamento de um povo, de tudo o que forma a sua célula moral, amoral ou imoral. O humorismo levado a sério não se contenta com a superficialidade da bufonaria, do clown, dos bobos da corte. Estes fazem o riso pelo riso, são inócuos, não desalienam.
O humorismo é a rebaixamento dos valores para o reino da carnavalização, usando esse termo no sentido bakhtiniano. Mostrar a deformidade, a feiúra, a idiotice dos seres, o absurdo humano, que constituem a vida em sociedade, é uma das funções dessa arte do riso e da alegria misturada a com o patético e tragicômico da condição humana, múltipla, variada, camaleônica.
Chico Anysio, nordestino vitorioso na grande cidade, foi desses artistas que encontraram seu próprio caminho, seu domínio de eleição para uma carreira que o tornou respeitado e admirado pelo brasileiro. Por isso, me indignava quando alguém dizia que o grande humorista já deveria pendurar as chuteiras. Qual nada! Todo seu esforço teve decerto um projeto de implantar uma escola de humorismo distante das improvisações e dos sucessos efêmeros e cmerciais. Não o seu sucesso, que teve uma linha ascendente de grandeza, de criações, sempre em direção ascendente nas suas virtualidades e nas suas realizações no palco ou na tela da tevê.
O programa “Chico City”, bem como outros de sua lavra, torna-se um exemplo obrigatório de quanto o humorista cearense-carioca fez em termos de criação de personagens, de situações cômicas, de uma grande construção de um universo do riso, da galhofa, da diversão, da denúncia, e de uma síntese de caracteres do Brasil brasileiro, sem a maquiagem e as muletas da indústria norte-americana. Sua obra de humorista ressuma brasilidade, nos seus defeitos e virtudes, nas suas imperfeições e na sua originalidade.
Além disso, ao humorista virtuose aliaram-se outras facetas artísticas, a de escritor, de pintor, do compositor musical, de roteirista, de ator dramático, faceta esta que, a meu ver, não o via com muito talento. Mas, ninguém é perfeito em tudo.
Com o desaparecimento do grande humorista brasileiro, o riso, a alegria, a gargalhada, o mundo criado por ele feito de arte e de inegável criatividade, se encolhe e silencia. Obrigado, Chico Anysio, pelos anos de alegria e de divertimento não isentos de ironias e de sutilezas proporcionados a todo o país. Dizem os ingleses e com razão que o melhor remédio é o riso.
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