Cunha e Silva Filho
No bairro*, sempre que por ali passo, vejo a velha casa (aliás, antigo hábito meu, gosto de ver casas antigas, sua data de construção nas portadas e de associá-las à história de seus moradores e, por sua vez, à história da cidade), ou melhor, o velho sobrado fechado a cadeado. Olho para o seu frontispício e não encontro a data que marcou o término de sua edificação. Contudo, pelo seu aspecto exterior, pela cor encardida de suas paredes, pelo batente de seu pequeno pórtico, tudo respira o ar dos anos iniciais do século XX, cuja realidade não vivi, mas que me vem pelo que possa deduzir de fotos, de filmes e de livros de época.. Talvez date da primeira metade da década de dez, se tanto.
Sem ninguém que me possa atender pela entrada por aquele portão de ferro carcomido pela ferrugem, já sem cor, penso nos primeiros dias em que foi habitado. Sinto ímpeto de bater à porta, logo do lado direito interno do pórtico. Será que alguém me vai receber? Será que, ao me receber, serei um persona non grata que ali estivesse apenas para importunar os invisíveis moradores, ou ainda existe alguém que lá more e, com mais de cem anos, não pode caminhar e sair à rua? Talvez, quem sabe, seja um antigo comendador do Rio antigo, descendente de espanhois que desembarcaram no porto do Rio no final do século XIX? Nunca se sabe.
Toda vez que passo pelo decadente sobrado, me vem esta mesma ideia, esta mesma vontade de entrar lá e conversar com seus moradores, ou apenas com um único morador sobrevivente ao tempo. O aspecto fantasmagórico do prédio me assusta se por ele passo à noite. Paro um pouco à sua frente, procuro distinguir algum som, alguma voz, ou mesmo um grito ou som abafado, quem sabe, uma conversa com dois enamorados no aconchego da alcova, na intimidade de sua vida amorosa.
Já me disseram que lá viveu um casal Um belo e feliz casal. Ele, um capitão do Exército; ela, um professora formada no Instituto de Educação, da Mariz e Barros. Isso era nos anos 50 do século passado. O destino do casal não foi feliz: o capitão, ao passar um dia por uma rua do seu bairro, tarde da noite, a poucos metros de seu lar, fora surpreendido por um facínora que lhe apontou uma arma , um trinta e dois, e lhe pediu que entregasse tudo que tinha na carteira. O capitão, ainda moço e forte, se atracou com o ladrão e, na luta para desarmar este, a arma disparou na confusão e foi atingir em cheio o peito do militar. Morte instantânea. Desde a perda do marido querido, a professora começou a dar sinais de enlouquecimento. Não quis mais sair de casa, não recebia ninguém. Praticamente, se transformou numa alma penada que era ouvida soltando gritos desesperados clamando, desvairada, pelo nome do seu grande amor.
Outras estórias trágicas contam-se de moradores do sobrado em tempos diferentes. Cheguei, depois de investigações pessoais junto a vizinhos do sobrado e do bairro, que no sobrado não morou um único vivente que tivesse sido feliz. O prédio era a personificação da tragédia. Dizem que será demolido para, no seu lugar, construir-se uma prédio de dez andares.
Ontem mesmo passei pelo velho prédio. Era uma noite um tanto fria de julho. A rua em que está situada é longa, arborizada e meio escura. Como o prédio fica entre uma bela casa em estilo mais moderno e um prédio enorme de apartamentos, onde o primeiro andar é reservado a lojas de comércio, no momento em que passava, aquela casa bela estava com seu jardim iluminado, fazendo com que a luz forte se refletisse no sobrado e desse um aspecto soturno de prédio assombrado. Os raios de luz vindos da casa ainda concorriam para dar um fisionomia de paisagem brumosa que, por sua vez, me amedrontara. Ainda assim, parei um pouco diante do centenário prédio. Por um instante, tive a sensação auditiva de que ouvia gritos de alguém chamando por um nome: “Venha, querido Fábio, venha pra meus braços, A cama está quente e macia.. Fábio, Fábio, Fábio!” – os gritos aos poucos sumiam nos ares do tempo incerto.
Uma velha moradora, quase vizinha do sobrado, um dia, conversando comigo sobre o velho prédio abandonado, me dissera que o casal a que me refiro neste relato, respondia pelo nome de Fábio.
Até hoje, fico meio confuso para afirmar se tudo o que ouvi naquela noite nebulosa foi realmente verdade ou se não passara de um sonho meu, desses sonhos que qualquer ser humano pode ter e que tanto parecem ser reais. No meu caso particular, quase todos os sonhos que tenho, ainda que muito parecidos com a realidade, logo ao acordar na manhã seguinte, em geral se me apagam da memória, o que me deixa por vezes frustrado. Talvez, tudo mesmo não passe de influência de contos de assombração lidos ao longo da vida, seja em forma de livros do gênero de Poe, seja por influência de filmes a que costumava assistir, ou de estórias que ouvi na infância, adolescência e até na fase adulta.
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