Il faut travailler beacoup pour être simples. (Baudelaire)
Cunha e Silva Filho
Ontem estive na casa de praia de um amigo especial na qual passei dois dias e meio. Teriam sido três dias se não houvesse as horas de viagem de carro de ida e volta. Mas, isso pouca monta se pensar no quanto pesa ao equilíbrio emocional e intelectual de uma criatura, de quando em quando, afastar-se da azáfama cidade e penetrar gostosamente na quietude de uma confortável casa de praia.
A cidade tem características dionisíacas, ao passo que o interior me soa algo apolíneo. Este tem a simetria da uniformidade e da monotonia necessária do dia-a-dia sem as tensões e os solavancos urbanos. Aquela possui as irregularidades, a descontinuidade, a fragmentação do indivíduo, as agressões no corpo e no espírito de cada habitante deste ‘mundo maluco.’ A cidade é a incerteza, o sonho, o feérico, os excessos, os delírios e os imprevistos a toda hora. O interior, não. Todo ele é quase passado entre o gorjeio dos pássaros no amanhecer e a calma e paz do cair do dia.
Já vê o leitor que um completa o outro como duas formas opostas, porém, no fundo, conciliadoras. Por isso, agora entendo por que Cesário Verde (1855-1886), o grande bardo luso, tantas lições tirou dos primeiros sinais da vida moderna após a experiência vivida no interior.
Se a cidade, como é vista no poema de Cesário Verde - uma obra-prima! - , que é “Sentimento de um Ocidental,” ali se presta a uma descrição caleidoscópica e veraz do seu espaço exterior e interior, parecendo flagrar com uma câmera, em ritmo lento, uma variedade humana e social de uma urbe europeia, Lisboa, no interior descobre outros ângulos de entendimento da condição social dos seus habitantes, em especial da realidade do trabalho e das implicações deste que tanto acresceram à visão ideológica do poeta.
Na realidade, a cidade pode explica o interior e vice-versa. Por conseguinte, durante a minha curta visita à casa do meu amigo, algumas peculiaridades se confirmaram no que tange à escolha que uma pessoa possa fazer: viver no interior ou na grande urbe, ou então, viver parte nesta e parte no interior. No meu caso, optaria certamente pela segunda alternativa caso tivesse condição de fazê-lo.
Para quem ainda não se dispôs a fazer escolhas, o melhor mesmo seria fazer algumas observações extraídas da recente experiência, ainda que pequena.
Quando a gente se desloca para o interior, nada me parece mais saudável e encantador do que ser bem tratado pelo amigo-anfitrião que se desdobra para nos deixar à vontade num clima semelhante ao que teríamos se estivéssemos em casa. “Aqui você pode escolher, quer ficar neste quarto ou naquele? É com você. Olhe, quando estiver com fome, é só me falar, pois a empregada já está preparando o almoço.” “Obrigado, obrigado”, lhe respondo com alegria e naturalidade. Não se preocupe tanto.”
Hora de almoçar. A mesa posta. A comida quentinha, logo desperta o apetite que aumenta sempre que o tempo está mais frio.Depois do almoço, vou para um espaço aos fundos da casa principal, onde há uma mesa enorme, cadeiras, um banco de madeira comprido e, mais adiante, junto à parede, uma churrasqueira. Contudo, o bom mesmo é a conversa que se abre entre os dois amigos. Conversa salpicada de afirmações brincalhonas e cheias de bom humor e picardia.
Nesse momento, percebo o quanto não sabia do amigo, agora em hora descontraída, sem os atropelos de um encontro na grande cidade ou no escritório onde naturalmente alguns limites se impõem. Ali no regaço de uma bela e aconchegante casa de praia, com todos os confortos, tudo me convida à informalidade, até na linguagem que se torna solta, meio confessional e nem mesmo dispensa um palavrão como sinal de liberdade comunicativa. Sem os interditos dos encontros meio formais ou mesmo formais, observo que os corações se abrem entre anfitrião e amigo. Essas horas de conversas podem se prolongar e, sem que se perceba, já são duas, três horas trocando experiências vividas. Quando demos fé, já é tempo do jantar e, depois, mais longas horas de papo se arrastando pela madrugada do dia seguinte.
No entanto, a bem da verdade o que mais valeu foram as histórias do anfitrião relatando humoristicamente fatos de sua vida e da vida alheia, contados com um jeito que só os escritores sabem contar: gesticulando, dramatizando, mimetizando, levando-me ora a reflexões sérias, ora às gargalhadas de encher os olhos de lágrimas, pois lembro ao leitor que as lágrimas também vêm das situações hilariantes, diante dos relatos grotescos e em geral da tragicomédia humana envolvendo todas as nuances, todos os tons e entretons nascidos do riso, da mofa, do absurdo e do burlesco do que os homens dizem, vivem e fazem. Relatos rabelaisianos, carnavalizados. Posso adiantar que os quase mencionados três dias se passaram, sobretudo à noite, nessa troca amigável e descontraída regada a risos e lágrimas provocados pela verve do meu anfitrião.
O passeio se completou com uma boa e revigorante caminhada, pela manhã, com meu amigo para me mostrar uma lagoa paradisíaca e com nossas conversas, agora em outro diapasão, em que refletíamos sobre assuntos que iam da fé religiosa à crença ou não na existência divina. Conversa respeitosa, sem preconceitos e reconhecendo mesmo os valores de quem se reveste de fé, seja representante da Igreja, seja um devoto cristão. Conversa que igualmente ia de fatos triviais à literatura, à economia, à política, nacional ou mundial. Conversa, finalmente, pontuada de indignação quando o assunto dissesse respeito a erros e abusos do Estado brasileiro e de suas instituições.
À noite, do dia anterior ao regresso para o Rio, meu amigo me levou pra ver como estava a decadência de um bairro, outrora nobre e cheio de gente que ali ia passar dias de alegrias e divertimentos noturnos, com a presença de gente de todas as idades, de mulheres bonitas enfeitando e dando colorido em bares, boates, restaurantes e sorveterias. Agora, só sinais de decadência de uma burguesia que perdera com os desastrados planos econômicos impostos à sociedade brasileira. Por outro lado, permaneceram alguns costumes só vistos ainda no interior, como o de ser cumprimentado por estranhos, os habitantes daquele local: “Bom dia, boa tarde, boa noite.” “Aqui é assim mesmo, as pessoas educadas, novas ou idosas, nos cumprimentam ao passarem por nós. Que diferença do Rio de Janeiro ou das cidades mais populosas! Se agíssemos assim nas grandes cidades, em que a urbanidade (sem querer fazer trocadilho ou ironia ) raramente se faz presente na sociabilidade entre os homens, até pensariam que fôssemos loucos.
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