quarta-feira, 8 de junho de 2011

Filhos da mãe gentil: uma radiografia do Brasil*

Cunha e Silva Filho

Descontextualizado, com leve alteração sintática, dos belos e ao mesmo tempo super-ufanistas versos (na letra, em estribilho) do Hino Nacional Brasileiro, compostos por Joaquim Osório Duque Estrada (1870-1927) e música de Francisco Manuel da Silva (1795-1865), o título do romance Filhos da mãe gentil ( Litteris Editora, capa de Ivan Szule, 2011, 142 p.), de José Ribamar Garcia, ficcionista piauiense radicado no Rio de Janeiro, de imediato produz um marca de ambiguidade diante de dois modos de olhar o país: enxergá-lo como uma nação viável e promissora, ou simplesmente encará-lo como um pais conhecido pelos seus defeitos e mazelas crônicos - lugar ideal para oportunistas que colocam os seus interesses individualistas e seus objetivos atingidos, em geral, por meios escusos, sempre acima do bem-estar da sociedade brasileira.
Este é o nono livro no campo literário de um autor, também advogado, que vem construindo uma obra literária na qual os esforços do aperfeiçoar-se nos domínio da narrativa são bem visíveis de livro para livro, a maioria no gênero do conto, todos editados pela Litteris, sendo que três deles foram publicados, em primeira edição, por outras editoras. O autor publicou também um livro de ensaios, Crise da justiça e direito do trabalho – ensaios críticos ( LTR Editora, 2001).
Filhos da mãe gentil se inscreve entre aquelas narrativas que, ao final da sua leitura, nos deixam um sentimento de espanto e indignação em face de uma realidade que faz parte de nosso cotidiano e para a qual nos sentimos impotentes como brasileiros a dar-lhe resposta imediata. Isto é, o povo sabe que é assim e está assim e que pouco pode fazer contra ela dado que o caráter do povo é por demais conhecido como “ordeiro e pacífico,” “cordial” ou mesmo indiferente pelos demais compatrícios.
É nessa realidade humana, política, econômica e social que um personagem central como Ricardo Pimenteira se movimenta numa história contada a partir da realidade urbana, em décadas próximas de nós, que já vinha se transformando nesta violência galopante do frenético cenário carioca contemporâneo - realidade física que, neste romance de espaço, compreende as várias divisões de bairros, a Zona Sul, o Centro do Rio, o subúrbio carioca, a Zona Norte, sobretudo a Tijuca, o Méier, a Baixada Fluminense, a Zona Oeste (Realengo, Campo Grande) e vai além dos limites fluminenses, atingindo Vitória, no Espírito Santo, e seu interior.
Nesse deambular de espacialidade (atente-se o leitor para a grande quantidade de nomes de ruas e bairros cariocas e, em menor número, de cidades fluminenses ou fora do Rio de Janeiro que reforçam a dinâmica itinerante em que as ações do romance transcorrem, além de ambientes interiores) vai se configurando, diante dos olhos do leitor, o caráter escorregadio, manhoso e determinado de Ricardo Pimenteira à procura de, por meios espúrios, pelo crime e apoiado na impunidade brasileira, uma forma de, por contatos com um amigo dele conterrâneo, chegar até ao empresário de médio porte, Zeloni - dono de uma empresa distribuidora de produtos farmacêuticos, de nome ambíguo, Santa Engrácia Distribuidora.
Meio empresário e meio bandido, a fortuna de Zeloni fora conquistada graças aos golpes sujos de engendrar assaltos, as chamadas “operações especiais,” a caminhões transportadores de produtos daquela natureza. Para isso, usava gente de confiança como Ricardo Pimenteira e dois comparsas auxiliares, Paulão e Luisinho, que também serviam a Zeloni.
Este é um dos motivos principais da narrativa. Tudo o mais que compõe os ingredientes da história, com exceção de poucos personagens (Graciete, os parentes da namorada, a filha de Pimenteira, Ritinha, entre outros) não contaminados pelo lama do crime e do embuste a serviço do arrivismo capitalista sem escrúpulo de que Zeloni é um exemplo lapidar, se distribui em erotismo, lesbianismo, masoquismo, adultério, aborto, incipiente violência urbana trazida pelo trafico e exemplos do que há de mais deslavado da política brasileira, cujo símbolo maior se concentra na figura sinuosa do multimilionário senador, amigo de Zeloni.
De resto, ressalte-se que, na galeria de personagens do romance, se pode falar aqui de personagens-símbolos, funcionando metonimicamente como representações ficcionais dos variados segmentos da sociedade brasileira incluindo, é claro, instituições, a máquina do Estado, a burocracia, o judiciário, o eleitorado brasileiro, o sistema de saúde pública, o sistema de segurança, as entidades privadas. Retrato do Brasil, pois.
Ribamar Garcia, em obras anteriores, já mostrara, com menos intensidade, essa vertente de uma ficção de desnudamento crítico da realidade brasileira, seja no campo, seja na urbe, nos romances Em preto e branco, Entardecer; nos contos Cavaleiros da noite, Pra onde vão os ciganos?, Ao lado do velho monge; nas crônicas Imagens da Cidade Verde, sua obra de estreia (1981), Além das paredes, Ressonâncias.
Dono de um estilo fluente, onde a linguagem literária, sem assumir níveis mais complexos ou ousados de experimentalismos narrativos, como fazem certos autores contemporâneos, mas também sem cair no vezo de um Neorrealismo ou Neo-naturalismo superados, Ribamar Garcia sabe como trabalhar a arquitetura de sua história. Não se furta a técnicas bem conduzidas de cortes narrativos, estilo indireto livre, de flashback ou de prolepses. A trama bem urdida, bem como todos os elementos que sustentam a diegese - personagens, espaço, tempo, ambientes, perspectiva do narrador onisciente e por vezes irônico -, vão naturalmente produzir na obra um desejado senso de equilíbrio e de verossimilhança.
Sua linguagem, sendo, como disse atrás, fluente, se caracteriza pela sobriedade do uso de algumas comparações que admiravelmente se encaixam no contexto da narrativa: “Mulata, de gestos grotescos e inchada que nem um sapo-cururu”” (p. 22); “Ou começar e não terminar, que nem mosquito” (p.27); “Baixinha, magra, e feia que nem a peste suína”(p.112).
Nestes poucos exemplos de comparação, recorde-se a similitude do autor com algumas comparações de natureza zoomórfica do contista João Antônio ( 1937-1996). Aliás, em Ribamar Garcia há muitos indícios de escritores, como Lima Barreto (1881-1922 ), na crítica social, visão suburbana carioca, João Antônio, também na denúncia de nossas mazelas e numa espécie de aspereza por parte do narrador ou personagens, assim como se podia ainda citar Ernest Hemingway (1898- 1961) por certos traços másculos, cortantes, diretos, na narrativa, fora os diálogos vivos e largamente empregados pelo escritor norte-americano. Posso afirmar isto porque tenho familiaridade com a ficção ribamargarciana.
Outra particularidade observada com mais vigor na sua ficção e no que já produziu até agora, diz respeito ao elemento cômico inserido na narração, feito com exemplar maestria e convencimento, como é exemplo a situação hilariante vivida por um personagem secundário da trama, uma figura caricatural, carnavalizada, a do major maragato que assumiu na empresa de Zeloni a chefia do setor de transporte.
Além deste recurso narrativo, há no romance passagens em que se pode depreender outro recurso na economia da obra: a polifonia de vozes (já utilizadas na narrativa machadiana, em Quincas Borba (1892), por exemplo) evidentes, sem dúvida, naquelas falas de personagens que nem mesmo são definidos pelo nome de batismo. São vozes de funcionários da empresa de Zeloni que fazem comentários soltos visando a alguma vantagem ou por mera maledicência – situações essas comuns em empresas onde bajulação se alia à incompetência e a traições de toda a sorte.
Durão com os subalternos, exigente, no entanto, no convívio com a mulher, virava um marido submisso, tímido, “marido mandado”, pronto a aguentar dela as arruaças e impropérios, seja diante de quem quer que estivesse presente. O major mandão, ante os frequentes escândalos armados pela mulher, uma baixinha folgada e perdulária, se borrava de medo, lembrando, mutatis mutandi, aquele famoso personagem do conto “Joãozinho da Babilônia” da obra Leão-de-chácara (1975) de João Antônio, o velho balofo, inclusive político, Batistão Pamplona, que forma um triângulo amoroso com o malandro Joãozinho da Babilônia e a mulata Guiomar.
Outras passagens jocosas são recorrentes no romance, como aquela de um motorista português cujo caminhão foi também assaltado por Pimenteira e seus comparsas a serviço do Zeloni, cena que constitui na narrativa, além do elemento cômico, um traço escatológico igualmente presente na história, embora sem a intensidade de alguns textos de Rubem Fonseca.
Narrativa metonímica, segundo já ressaltei, Filhos da mãe gentil figura um microcosmo do país e de suas degradações morais e sociais, econômicas e políticas, em todas as instâncias do poder e das nossas instituições públicas e privadas.
Pelo cuidado de elaboração desta nova obra de Ribamar Garcia, pela ampliação de sua visão crítica patenteada na narrativa de Filhos da mãe gentil, pela brevidade da trama em termos de páginas, traço que, no meu entender, se deve ao traquejo maior do ficcionista com o gênero conto, o escritor sai mais fortalecido, mais amadurecido com esta obra no que tange às suas possibilidades de ficcionista.
Na trama do romance, as mazelas sinalizam para continuísmos, os crimes se apagam, os acertos abomináveis do poder cuidam de driblar os seus próprios abusos. Os atos de corrupção se transformam em viagens maravilhosas no exterior com dinheiro da nação. Tudo se compra com o dinheiro. O silêncio é a palavra final e a impunidade é o seu maior triunfo (ou trunfo) conforme, perto do clímax do romance, expressou o narrador através de um tom de mordacidade mas coerente com os fatos: “E tudo se concretizou como dito e previsto – de acordo com os cânones do código dos homens honrados – filhos da mãe gentil”(p.125).
Pimenteira, o protagonista, finalmente, realiza seu sonho longamente acalentado - a compra da sua pousada no Espírito Santo. Deixa para trás um espólio de vilanias e ao mesmo tempo, embora contraditoriamente, de ações até generosas. Leva consigo, no entanto, sua admiração pelo Visconde de Mauá, seus livros e sobretudo sua impunidade, que é uma das pragas sociais mais devastadoras da realidade nacional e é motivo nuclear desta narrativa mais recente de Ribamar Garcia.

* O romance Filhos da mãe gentil será lançado brevemente.

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