Memórias: a máquina de escrever, fracassos e sucessos (1)
Para Daddy, Mr. Dudley, do City Bank
Cunha e Silva Filho
Desculpe-me, leitor, por um pouco de “Sessão Nostalgia”, expressão que, pensada em termos de cinema, um ilustre professor da UFRJ e hoje lecionando na UERJ, Helênio Fonseca de Oliveira, costumava usar toda vez que um assunto por acaso levasse a nossa conversa a um passado comum de estudantes do curso de letras da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil, hoje UFRJ.
Na realidade, nela ingressara três anos depois dele. No entanto, creio tê-lo conhecido nas idas à Biblioteca do curso de letras, localizada, naqueles meados da década de sessenta, num antigo e possante prédio do Tribunal Eleitoral, localizado na Av. Presidente Wilson, Centro. O prédio, não sei por quê, não me agradava. Tempos depois, esse prédio fora demolido e dera lugar ao espigão moderno e imponente, segundo me informaram, pertencente à Academia Brasileira de Letras. No espigão, cujo nome oficial é Palácio Austregésilo de Athayde, que é um edifício moderno e imponente, de 28 andares, a APL, também chamada Casa de Machado de Assis ou ainda de Petit Trianon brasileiro, mantém uns dois andares que completam a limitada e bela construção de arquitetura neoclássica imitada do Petit Trianon do Versailles, em Paris O prédio do Petit Trianon, que abrigara uma Exposição Francesa comemorativa do Centenário da Independência do Brasil, , fora doado, em 1923, pelo governo francês ao Brasil.
O velho e antipático prédio do Tribunal tinha duas entradas, uma no térreo, onde se abrigava, como disse, a Biblioteca da Faculdade e outra, no andar superior, com duas rampas de acesso, abrigava salas emprestadas pelo Tribunal, um auditório com uma espécie de grande estrado lembrando um palco. O conjunto de salas, mais a Biblioteca ( por sinal, durante algum tempo dela foi diretor o grande escritor Otto Maria Carpeaux), era chamado de Anexo do curso de letras da FNFi. Em outra oportunidade, ainda falarei da participação dos alunos nos encontros dessa Biblioteca. Assistíamos, pois, aulas no prédio da Faculdade Nacional de Filosofia na Av. Presidente Antonio Carlos, Centro, onde fica a Casa di Itália, e no Anexo. Ao que me parece, esse edifício da Embaixada era emprestado ou “alugado” pela Embaixada Italiana, quando esta fora transferida para Brasília. Atualmente, o mesmo prédio voltou ao dono, abrigando o Consulado Italiano.
O ponto central destas notas de memórias é relatar a minha malograda relação com a máquina de escrever, só melhorada, como se verá mais adiante, com um traquejo melhor da minha parte, e a minha procura de emprego a fim de me defender na luta pela sobrevivência. Essa relação entre mim e a máquina tem uma história mais remota.
Em 1964, recém-chegado ao Rio de Janeiro, me encontrava, lá pela metade daquele ano, internado no Hospital Pedro Ernesto, em Vila Isabel, na Av. 28 de Setembro, onde permaneci uns dois meses. Infelizmente, no organismo, trouxe do Piauí o necator americanus, que me deixou bem mal, acometido que fui de uma grave anemia. Fiquei todo inchado, na cara sobretudo, e sentia tonteiras, além da visível palidez, sintomas de desmaio. Minhas mãos estavam brancas, sem sangue. À vezes, mal podia ficar em pé.
Fui bem tratado no hospital, fizera amigos na minha enfermaria, assim como com o meu médico, as enfermeiras. O diretor da clínica de hematologia era o Dr. Hildebrando Monteiro Marinho, um médico conceituado. O médico que cuidou de mim era o Dr. Franco, ainda bem jovem, pessoa competente, amiga, simpática. Saí de lá curado.
Antes de me darem alta, num domingo, tinha lido no JB um anúncio precisando de pessoas que conhecessem inglês. O emprego era na Embaixada Americana. Pedi, então, autorização à coordenação da enfermaria pra sair. Vesti um terno e lá fui eu fazer o teste de conhecimento de língua inglesa. Consistia duma conversação de alguns minutos com o examinador e duma prova de datilografia. Me saí bem na primeira parte e me dei mal na datilografia.
Ora, mal catava milho e nem mesmo sabia usar papel carbono pra cópia de um texto. O examinador, pra me acalmar, me recomendou fazer um curso de datilografia. E só. Saí desapontado descendo o elevador com algumas jovens senhoras falando inglês melhor do que eu. Tão desapontado que me inscrevi, pouco tempo depois, num curso de datilografia na Praça Tiradentes. Era a Escola Edson, na qual fiquei por pouco tempo, já que não podia arcar com a mensalidade do curso. Não mais existe. Tudo muda, tudo passa e, muitas vezes, acaba. Dinâmica da vida. Sentido de finitude. Aviso aos mortais e advertência aos prepotentes que se pensam eternos, jovens e felizes para sempre ...
Recebi alta do hospital e fui à luta. Lá deixara amigos, o meu médico, um enfermeiro e também uma bela e bondosa enfermeira.
É bem verdade que, antes de cair doente, trabalhara fazendo correspondência oficial num Diretório Acadêmico de Engenharia da PUC-Rio no belo bairro da Gávea. Trabalhei coisa de três ou quatro anos. Era um bico que me ajudou financeiramente muito. Na verdade, lá cuidava mais era de fazer cartas pra deputados e senadores em Brasília e de outras coisas de escritório. Fora um bico arranjado pelo secretário particular (um maranhense inteligente, intelectualmente preparado, já falecido, se não me engano, se chamava Olavo) do deputado federal, M. Sousa Santos, que era também dono de um construtora junto com outros irmãos. A propósito, este foi quem, a pedido de meu pai, conseguira a internação minha no Hospital Pedro Ernesto. Entretanto, mas quem se encarregou mesmo de intermediar os preparativos pra minha internação.foi meu irmão Winston que, então, se encontrava no Rio. Me disse o mano Winston que tinha sido duro com o secretário do deputado Sousa Santos, instando que resolvesse logo o meu problema de internação, que o meu caso era grave e urgente. O secretário Olavo tinha seu escritório num dos andares altos do Edifício Central, na Avenida Rio Branco, coração do Centro do Rio de Janeiro.
O diretor do diretório do curso de engenharia chamava-se Arsênio de Sousa Santos, que, hoje, deve ser um engenheiro vitorioso. Era um rapaz muito exigente, muito sisudo. Pagava em dia o meu salário. Foi tão correto comigo que, quando não mais aguentava trabalhar em razão da anemia que me estava destruindo, mandara uma senhora ao hospital - bondosa criatura! - que trabalhava lá comigo, pagar-me uma indenização, que muito me ajudou ao sair do hospital. Deixei lá um grande amigo, um senhor negro, carioca, íntegro, bondoso, amigo, já idoso, que trabalhava na PUC também, se não me engano, na seção gráfica. Um dia, fiz um poema em homenagem à sua bela pessoa humana. Não me lembro mais do seu nome, porém sua lembrança guardei pra sempre. Tinha sido um pai pra mim, até me conseguia algum dinheiro quando estava apertado. Preocupou-se com a minha doença.
Dois anos depois de ter saído do hospital, conseguira trabalhar em dois bancos privados.
No City Bank, Foreign Exchange Department,onde precisei apenas de usar o inglês para a função de atender no balcão. Para essa função, não me pediram datilografia. Ainda bem. O teste foi apenas uma conversação com um dos officesr (eram assim chamados os funcionários de posição elevada) do banco que me fizera uma observação apenas com respeito ao meu inglês. Dizia que eu falava com sotaque, mas isso não ia interferi no meu desempenho. Inclusive, esse officer me perguntou se desejava seguir carreira bancária, pois poderia me mandar pros Estados Unidos, talvez, Nova Iorque na condição de trainee. Disse-lhe que não, pois estudava letras e queria ser professor.
No City Bank, que ficava então na Avenida Rio Branco, num belo prédio que até hoje lá está, tive o meu primeiro emprego com carteira assinada. Me assinaram a carteira na função de escriturário principiante.Eu ainda era soletiero.
Em outro banco particular, o Banco de Intercâmbio Nacional, trabalhei também na Seção de Câmbio. Fiz apenas dois testes, uma carta pedindo emprego e um questionários sobre cultura geral. Também isso é explicável. O emprego foi arranjado por um piauiense, amigo de minha mulher. Devo a ele essa gentileza e gesto de solidariedade. Esse piauiense era, na época, gerente-geral do Banco do Brasil. O nome dele: Moacyr Freyre. Foi uma pessoa generosa, que muito me ajudou e à minha mulher quando, solteira, veio pro Rio fazer um curso. Toda a família dele me tratou bem e, no meu começo de vida de casado ( época em que entrei pro Banco do Intercâmbio) me apoiou e à minha mulher. Não me lembro se fiz teste de datilografia. O banco hoje está extinto. Era de porte pequeno. Nele prestei serviços como escriturário, mas, na verdade, me usaram mais pra fazer correspondência em inglês e responder às cartas do exterior. Foi aí que notei o quanto os italianos bancários da época redigiam mal em língua inglesa. Vez por outra, me mandaram verter pro inglês cartas da diretoria do banco.
A princípio, até um gerente falara que meu inglês não era assim tão bom, o que me deixou chateado com a injustiça. O nosso amor-próprio não aceita ser subestimado. Quanto mais fundo se tem a convicção de que se está sendo injustiçado, aí é que auto-estima mais sofre.O fato é que, naquela época, eu não dominava o vocabulário técnico do comércio e bancário. Mas, fui me assenhoreando de temas e do vocabulário dessa área. Aquele período, no segundo banco, me meu mais cancha na datilografia. Estava melhor e mais rápido, não obstante nunca ter conseguido ser um excelente datilógrafo. Talvez isso explique por que nunca serei um bom usuário do teclado do computador.
Certa vez, assumira uma das gerências daquele banco um cearense gordo e baixote já de idade e metido a saber inglês que, vendo um fecho de uma carta minha em inglês, me chamou a atenção, dizendo que estava errado um emprego de uma certa expressão.
No momento em que estava com ele falando sobre esse problema linguístico, sem se anunciar, entrou na sala ( provavelmente era pessoa importante do ramo de negócios e familiar ao banco) da gerência um senhor meio idoso, baixo, mas bem forte ainda, de olhos vivos que, me vendo explicar ao cearense a expressão que eu havia utilizado, segundos depois, meteu-se na conversa e afirmou categoricamente que eu estava certo e a expressão, além de correta e genuína pro contexto, era muito elegante numa carta. Parte da expressão era: “...whenever an opportunity presents itself...”
O cearense teve que engolir em seco. Conversando, depois, com aquele senhor muito seguro de si, me dissera ele que era grego e era exportador, e conhecia muito inglês. Me elogiou até o conhecimento de inglês e me entregou um cartão que, depois, reconheci tratar-se de uma agência internacional de emprego. Nunca mais vi aquele grego que tanto me impressionara com a sua segurança a e sua simpatia.Quanto ao gerente cearense, deixei pro esquecimento.
Depois deter tido as duas experiências de banco fui dar aulas em colégios e curso particulares. Foi quando melhorei um pouco as finanças, não tanto. .Contudo, dava pro mínimo.
Uma outra vez, procurando um ganha-pão complementar li um anúncio de escritório procurando tradutores.. Que ousadia a minha ser tradutor àquela época! Os jovens são impulsivos, destemidos, pensam que sabem tudo, ou talvez suas ações sejam resultantes de ingenuidade, falta de senso dos limites e desconhecimento da própria capacidade de se julgar intelectualmente. Mas, vale a experiência, ainda que malograda.
Cheguei ao escritório. Ficava na Rua Graça Aranha, Centro. O responsável pelo teste me abriu um romance em inglês, o famoso Robinson Crusoe, de Daniel Defoe. Me pediu que traduzisse alguns parágrafos . Em seguida, me conduziu a uma escrivaninha na qual me aguardava ansiosa aquele velho e conhecido “inimigo”: a maquina de escrever, uma Remington meio velha. O examinador me deixou sozinho. Procurei me concentrar e comecei a bater algumas frases, talvez uma página apenas. Tinha certa dificuldade de organizar bem o enunciado traduzido. Passaram-se uns quinze minutos ou mais um pouco talvez. O examinador regressou. . Olhou o que eu traduzira sem fazer comentário algum. Contudo, foi sincero: “Você bate mal à máquina. Neste ritmo lento não dá pra fazer tradução. Veja se melhora a datilografia e apareça depois.
Para concluir essas notas rememorativas, que, antecipo, não seguem uma cronologia rigorosa, ainda tentei, tempos depois, conseguir um trabalho de correspondente comercial. Sempre achei que, um dia, encontraria o anúncio da minha vida, um “abre-te, Sésamo”, que viria solucionar todos os meus problemas pecuniários e me deixaria plenamente contente e realizado. Talvez, isso nunca tenha realmente acontecido e ainda esteja à procura do “anuncio “ ideal.
A função seria redigir cartas em inglês, ou traduzi-las. A essa altura, já estava um pouco melhor em datilografia. Não sei se era porque havia comprado uma Olivetti portátil e, com o breve manual sem mestre incluído na compra, Em casa, praticava, à minha maneira, mesmo olhando sempre o teclado, as lições do manual. Acredito que esse treinamento me auxiliou bastante. Aproveitava pra bater na máquina tudo de que precisava pras minhas aulas e até artigos de jornal que, de vez em quando, enviava pra Teresina.
No dia do teste, , me encaminhara pra uma ampla sala com várias divisões à semelhança de biombos, formando salinhas, onde trabalhavam funcionários de setores administrativos e possivelmente da diretoria ou da gerência. Não sei.
Me lembro de que um funcionário me conduziu até uma dessas salinhas onde um moço com aparência estrangeira me testaria conhecimento de língua inglesa. Era um moço de uns trinta e tantos anos, de olhar simpático, educado, mas de poucas palavras. Assim se dirigiu a mim em inglês: “Please, open this book anywhere, and read at least one or two pages aloud”. Abri uma página e a li toda. “That’s enough”, acrescentou ele secamente. Pude verificar que ele ficou me ouvindo atentamente. Em seguida, me fez fazer um ditado de dois parágrafos, valendo isso seguramente como exame escrito e compreensão oral. Final mente, me levou a uma ampla sala onde vários correspondentes estão trabalhando Só se escutava o ruído orquestral das máquinas. Fiz uma ligeiro teste de datilografia, que seria uma cópia de um texto em inglês para avaliação de rapidez e eficiência na máquina. Neste passei.
Daí a uns quinze minutos, o funcionário que me havia levado a ele, voltou. O moço que me testou simplesmente disse ao funcionário: “O rapaz lê, entende, fala e traduz”. Fiquei contentíssimo.
Aconteceu, todavia, que, desta vez, a minha “inimiga não me ia reprovar. O que me reprovou foi o horário incompatível com a minha frequência no curso de letras, do qual não abriria mão mesmo arrostando privações e sacrifícios. Eu teria que trabalhar full time naquela firma. Tive que desistir
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