quinta-feira, 1 de agosto de 2019

TRADUÇÃO DE UM POEMA DE ALFRED DE MUSSET ( 1810-1857)





           O POETA*

No tempo de estudante
Em nossa solitária sala,
À noite,  acordado, ficava.
Diante da  mesa,  sentar-se  veio
Uma pobre criança  vestida de preto
Que  lembrava ser meu irmão.

Belo e triste o seu olhar,
Pelo castiçal banhado e,
No meu livro aberto, veio ler.
Inclinou a fronte sobre a mão
E ali ficou até o amanhecer.
Pensativo  qual um doce  sorriso .
Quanto  anelava   ter  meus quinze anos!
Com passos lentos caminhando 
Num bosque debaixo  de uma urze,
Ao pé de uma árvore,  sentar-se veio
Um jovem vestido de preto
Que lembrava ser meu irmão.

Indaguei-lhe sobre o meu caminho;
Numa das mãos um alaúde segurava,
Na outra um ramalhete de rosa.
Saudou-me como um amigo
E, dando meia volta,
Apontou-me  com o dedo a colina.

Na fase em que cremos no amor
Um dia, sozinho, no quarto me  encontrava
Minha primeira   tristeza debulhando. 
Ao canto da minha  lareira, sentar-se veio
Um estranho vestido de preto
Que lembrava  ser meu irmão.

Parecia    melancólico e inquieto.
Com uma das mãos  o céu mostrou,
E com a outra um gláudio segurava.
A minha dor parecia partilhar 
Porém, exalando um suspiro, 
Evanesceu qual  num sonho.

Na fase em que somos libertinos,
A fim de,  num festim,  brindar
Uma taça uma vez  levantei.
Diante de mim,   sentar-se veio
Um convidado vestido de preto
Que parecia ser  meu irmão.

Sob o casaco sacudia
Um fato vermelho esfarrapado
E sobre a cabeça uma  murta seca.
Seu braço magro procurou  o meu
E a minha taça, ao tocar a dele,
Na minha frágil mão se estilhaçou.

Um ano após, à noite,
Ao pé do leito, no qual  meu pai
 Exalara o último suspiro, me achou ajoelhado.
Veio  ter à cabeceira do leito
Um órfão vestido de preto
Que parecia ser meu irmão.

Os olhos debulhados em lágrimas
Iguais aos anjos dos sofredores
De espinhos coroado se achava
Na terra estendido, seu alaúde,
Da cor de sangue sua púrpura
E, no peito,  o  seu  gláudio.

Lembro-me muito bem
Que sempre o reconhecia
É uma estranha visão.
Quer seja, todavia, anjo ou demônio,
Por toda parte vi essa sombra amiga.
Durante todos os meus anos.

Mais tarde, cansado já  de padecer,
Para renascer ou  morrer,
Decidi-me  por me exilar da França.
Cansado estava de caminhar,
Quis partir e procurar
Da esperança os vestígios.

Em Pisa,  ao sopé dos Apeninos,
Em Colônia, diante do Reno,
Em Nice, na vertente dos vales,
Em Florença, aos fundos dos palácios,
Em Brigues,  com os velhos  chalés,
No seio dos Alpes desolados.

Em Gênova, debaixo dos limoeiros,
Em Vervey, sob as verdes  macieiras,
Em Havre,  diante do Atlântico,
Em Veneza,  no pavoroso Lido,
No qual vem morrer o pálido Adriático
Sobre a erva  dum túmulo.

Por toda parte,  sob estes vastos céus
Meu coração e meus amigos  deixei
Sangrando como uma eterna chaga.
Por toda parte onde o coxo Enfado
Com ele  a minha fadiga  arrastando
E  me levando até a uma grade .

Por toda parte, sempre a  mesma 
Sede de um mundo desconhecido
De meus sonhos segui a sombra
Por toda parte em que, sem ter vivido,
Revi o que havia  visto,
A humana face e suas mentiras.

Por toda parte, na qual, pelos caminhos,
Nas minhas    mãos  pus a minha fronte
E qual uma mulher solucei 
Por toda parte,  em que,  como um carneiro
Que, na moita  deixa a sua lã,
Senti minha alma desnudar-se.

Por toda parte onde  quis dormir
Por toda parte, onde quis morrer,
Por toda parte onde toquei a terra,
Pelo  meu caminho sentar-se veio
Um infeliz  vestido de preto
Que parecia ser meu  irmão.

Quem,  então, és tu, tu que nesta vida,
No meio do caminho,  sempre encontro?
Em tua melancolia, não posso  crer
Que seja um mau Destino.
Paciência suficiente revela teu  doce sorriso.
 Em tuas lágrimas   muita piedade há.
Vendo-te,  a Providência  amo.
Do  meu sofrimento  é irmã  a tua própria dor.
Com a Amizade se assemelha. 

Quem és tu,  então?  - Não és meu anjo bom,
Jamais vens me avisar   de alguma coisa.
Meus males vês ( é algo estranho!)
E sofrer não me ficas  vendo
Há vinte anos que surges na minha vida
E eu nem saberia como  te  invocar.
Quem, então,  és,  se é Deus que te me envia?
Sem da minha   alegria partilhar, para mim sorris.
Reclamas de mim  sem que  me venhas  consolar!

Essa noite  também te vi surgir.
Era uma noite  triste.
Batia, na minha janela, a asa dos ventos.
Solitário  estava sobre o meu  leito curvado.
Dali contemplava para um recanto querido
Ainda tépido  após um  beijo ardente.
Sonhava  qual uma mulher esquecida
Sentindo a vida  estraçalhada
Que lentamente se desmanchava.

Reunia  cartas da véspera
Cabelos, fragmentos d’amor.
Todo este  passado nos meus  ouvidos gritava
Do dia suas eternas sementes
Estas   relíquias sagradas contemplava,
Que me faziam  tremer  a mão:

Lágrimas do coração devoradas  pelo coração,
E que os olhos que as haviam derramado
Amanhã  não mais reconhecerão!

Juntei,   num pedaço de buril,
Estas ruínas dos  dias ditosos.
Dizia para mim que, na terra, o que dura
É uma mecha de cabelo.
Como um mergulhador em  mar profundo
Perdi-me com  tanto  esquecimento.
Para todos os lados,  o meu olhar para ali dirigi
E, longe dos olhos do mundo,  sozinho,  chorei.

Do círio negro fui  pôr o sinete,
Sobre este frágil e amado  tesouro
Fui entregá-lo e, não podendo  nele crer,
Chorando ainda  dele duvidei.
Ah, fraca, mulher,  orgulhosa,  insensata.
Apesar de ti,  dele não te  olvidarás.
Por que estas lágrimas,  esta garganta oprimida,
Estes soluços, se não amavas?

Sim, esmoreces, sofres, e choras.
Tua quimera, no entanto,  fica entre nós dois.
Pois bem! Adeus! Contarei as horas
Que de vós me separarão.
Parti,  parti e deste coração  glacial
Arrancai o orgulho satisfeito
O meu  ainda tenho  jovem e vivaz
E muitos males nele  encontrar poderão
No mal que me tenham  causado.

Parti,  parti! A Natureza imortal
Não vos quis tudo dar,
Ah, pobre criança que bela desejais ser
E perdoar  não  sabeis.
Quem vos perde não perde tudo
Lançai ao vento  nosso consumado amor -
Deus eterno! Tu que tanto amei,
Se partes,  por que me amas?

De repente,  porém, vi, na noite sombria,
Sem ruído,  brilhar uma forma,
 Sobre a minha cortina
Uma  sombra vi passar
 E no meu leito sentar-se  veio.
Quem és tu, pois,   tépida e pálida visão
Sombria   figura vestida  de preto ?
Que queres de mim,  triste pássaro passageiro?
É isso um sonho vão?  É a minha própria imagem?
Que, no meu espelho,  percebo?
Quem és  tu,  espectro da minha juventude,
Peregrino que nada deixou?
Dize-me por que sempre  contigo me  deparo?
Sentado a uma sombra  por onde já passei?
Quem és tu, então,  visitante solitário,
Assíduo  hóspede de minhas  dores?
Que tens feito, então,  para me seguires  na terra?
Quem és tu,  então, quem és tu,  meu irmão?
Que não assomas senão num dia de tristezas?


                A  VISÃO

_Amigo,   o nosso pai é  teu.
Nem o anjo  da guarda sou.
Nem dos homens o mau destino,
Aqueles a quem amo, nem sei
Nem sei para que lado seus passos vão.
Nesta pouca lama onde estamos.

Não sou nem  deus nem demônio,
E, quando me chamaste de irmão,
Tu, pelo meu nome,  me chamaste.
Aonde fores, contigo estarei,
Até o derradeiro dia de  tua vida.
Quando, sobre a tua pedra,  me sentarei,

Teu coração o céu me confiou.
Quando, na   aflição, encontrares, ,
Pelo caminho te seguirei.
Vem para mim sem inquietações.
A tua  mão, contudo,   tocar não posso.
Amigo, a Solidão sou eu.
                                         (Trad. de Cunha e Silva Filho)
*NOTA:
         O poema  “Le poète”  constitui um dos quatro  poemas sob o título Nuits. Desta vez, por ora,   não lhes apresento  a  tradução na forma bilíngue, consoante tenho feito  há tempos,  por se tratar de um  texto mais longo. A seguir, segue a fonte da qual extraí  o mencionado  poema:
LEBAILLY, Nathalie & GAMARD, Matthieu. Présentation, notes, questions e aprèstexte établis. Nouvelles à chute.  Classiques & Contemporains.  Magnard. www.classiquesetcontemporain.com






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