domingo, 7 de abril de 2019

SOBRE A OBRA DO CONTISTA MAGALHÃES DA COSTA: TEMÁTICA E LINGUAGEM




                                     CUNHA E SILVA FILHO

             Nem é preciso ir a fundo  na análise  de toda  a  obra  ficcional no gênero conto de  Magalhães da Costa (1937-2012)  para emitir  um  juízo critico muito favorável a ele não só no quadro da literatura  produzida no Piauí mas também  no nível  de sua  narrativa considerada  nacionalmente.  O autor escreveu, pelo menos, cinco livros no gênero  que   criteriosamente  elegeu como  o  seu  principal projeto literário, dado que também exerceu a crítica literária   e escreveu  poesia.  
           Convém recordar aqui o período em que  escreveu para o excelente  Jornal  de Letras, nos bons tempos  da direção dos  irmãos Condé e, nessa seção,  fez brilhar   seu talento de comentarista e divulgador  de obras de autores piauienses. De resto,  essa seção  de que se ocupou se destinava a autores piauienses.  
          Magalhães da Costa – releva anotar - conquistou  prêmios literários   tanto no seu estado natal quanto em âmbito nacional. Teve três livros  lançados  por editoras  do Rio de Janeiro e com divulgação   nacional, Casos contados e outros contos (Rio de Janeiro,  Rio Fundo Editora,1996), com prefácio de Assis Brasil, Traquinagem (Imago, 1999), com  a primeira orelha escrita  por Altevir Alencar e a segunda, por Hardi Filho, apresentação  de Maria Figueiredo   dos Reis e  quarta capa de Assis Brasil e Crime & mistérios, de 1977, uma antologia  de ficção  policial, publicada no Rio de Janeiro.   
      A produção do  contista nascido em Piracuruca,   sua  cidade natal -   fonte inspiradora de suas inúmeras   histórias -,  vai     dos anos 1970,  data  de seu livro de estreia, Casos contados (1970) até 2002, quando escreveu  e publicou mais um  livro de contos,  de título Agrado. Todavia,  em 2012, saiu  de sua lavra uma obra  póstuma no mesmo gênero, Histórias com pé e cabeça. Entre essas  obras, saíram   antologias organizadas  por escritores do seu estado natal.  Para completar a menção de seus dados bibliográficos, seja mencionada mais um livro de contos:   Estação  das manobras (1985),  seu terceiro livro.
       Pode-se afirmar,  à  vol d’oiseau,  sem medo de errar,  que a ficção  de Magalhães da Costa, não tendo sido ainda,  a meu ver,   matéria de estudos  críticos de maior fôlego,   se inscreve   num   campo de investigação,  cujos  polos mais   relevantes  são a  potente   imaginação do autor   trabalhada, com mão de  virtuose e conhecedor  profundo    do gênero   short story, a partir do material   da realidade local   não só da cidade  de Piracuruca  como  também  de outros  espaços físicos variados atentamente  observados e  filtrados pelo  sua condição de   professor e magistrado  nas suas andanças  pelo interior piauiense:   a vida, os costumes,   os hábitos, as relações  sociais,  religiosas,  as relações do  trabalho  braçal, por vezes tensas, entre  “coronéis” e  agregados,  com as submissões  e adulações entre estes para com aqueles  e, no meio delas, as desconfianças entre patrões e empregados,  tão bem vistas   no conto  “O cortador de arame” (apud Novos contos piauienses. Teresina,  Fundação Cultural  do Piauí, 1984, com Apresentação de Jesualdo Cavalcanti Barros, p. 22- 27).
        Magalhães da Costa  pertence à linhagem de contistas brasileiros  que  optaram,  em primeiro plano,  pelo regionalismo renovado  de temas e linguagem,  a se ver pela espaço geográfico em que  escreveu  a sua obra  ficcional. Escreveu sobre o que  sabia a fundo da paisagem, do linguajar   e da realidade humana    vista,  em certo sentido,  num plano   universal,  pois suas histórias  falam  de  traição amorosa, ciúme doentio, paixões desenfreadas (contos “O bilhete,” “Enquanto viajava”); ambição e sentido trágico (conto “Cartomante”);  frustração   no relacionamento  conjugal (conto “Cantar de galo velho”)   maldade infantil (conto “Corte de palha”);  amizades e inimizades  passageiras, sentimento íntimo ferido, bullying na infância (conto “Briga de meninos”);  iniciação sexual (conto “Noitadas com negra Zu”; religiosidade (os contos “Catecismos,” “Terços” );   relações de trabalho na vida  rural, coronelismo. relacionamento  submisso  de agregado com  o patrão ( conto “O agrado” );  tipos populares com traços meio pícaros (contos “Casca grossa,”  “Conversa de pé de bodega”).
     Entretanto  um dado é inestimável entre outros da sua fatura literária: é a  linguagem  que, ao lado  do enredo, da trama,  aparece com maior visibilidade na  obra  deste contista. É por ela que  o ficcionista  se eleva  e se distingue, pois tem como  recurso estratégico   fundir  harmoniosamente  o enredo com  a técnica. Tudo  isso    elaborado com  a intimidade que tem  com  os efeitos  que  visam  atingir a sensibilidade  do leitor.
      Essa  modo de aliciar  o leitor, de prender-lhe a atenção e  de seduzi-lo a espontaneamente penetrar  no interior do universo ficcional   é típico dos ficcionistas  hábeis  e meticulosos  na urdidura  dos histórias, causos, tal como  ele próprio  ilustra com a estratégia de um  personagem em diálogo, por vezes silencioso, com um  interlocutor,   vai  conduzindo   o relato no qual o que é importante  é a segunda narrativa encaixada  à primeira  que logo cede vez  como se fora empregar a técnica da  mise en abîme, segundo se pode  verificar  no conto “Terços (op. cit. p.29-36),  da obra Traquinagem, onde humor,  divertimento  e  encanto  são vividos pelo menino Zezinho deslumbrado com   as histórias do  velho  Damião Olho de Pata Choca. Este, inicialmente, não  se dispunha  a atender aos rogos de Zezinho para que  contasse   muitas histórias. Acabou cedendo  logo que Zezinho lhe ofereceu,  falando-lhe ao pé do ouvido, “umas peles de fumo” ( idem, ibidem p.3).
         Vale  assinalar  na temática  da obra ficcional de Magalhães  da Costa  um traço  muito forte: o memorialismo que se reparte por boa parte de seus contos,  sobretudo em Traquinagem, no qual  a infância se apresenta como  um largo  espaço de afetividade  vivida  pelo  menino  Zé do Branco – uma de símbolo da dessa fase da existência humana com todas as suas surpresas,  mudanças de humor,   ludismo, folguedos, ingênua rebeldia  de alguns momentos,   e aprendizado que, em tempos futuros,  poderão ser quase apagados  da memória  dos adultos. Traquinagem, por exemplo,  seria também  a saga da infância dos  interior brasileiro, com  as suas variações  e suas   afinidade de estado para estado e de cidade para cidade.
       Dois aspectos estruturais de sua narrativa, no que tange ao tratamento  dispensado  à linguagem literária,  gostaria de mencionar nestes comentários :1) o traço  visceralmente  oral das suas narrativas, sobretudo aquelas  ambientadas  no meio   rural; 2) a arquitetura dos enredos como  forma  particular de sua  narrativa.
          O primeiro  está intimamente  conexionado ao discurso  de um  narrador  que se coloca  como  um personagem, seja em terceira ou  primeira pessoa,  fazendo parte  da história reportada. Ora,  esta estratégia o faz mergulhar  num discurso  estilizado  produzindo um impressão verossímil   do modo da fala dos personagens   segundo os seus  registros  do nível de escolaridade   ou de ausência dela. Portanto, não é meramente a cópia servil da imitação clássica, romântica  ou   realista  do discurso ficcional tradicional,  o qual bifurcava dois tipos de linguagem: a do narrador culto, do autor,  e a do discurso  dos personagens em cena, nos diálogos.  Este sensação puramente  estética  no uso a linguagem  literária  foi uma conquista admirável dos ficção contemporânea. Essa mesma estratégia foi  talentosamente  utilizada na ficção urbana de João Antônio, em Guimarães Rosa e em outros  autores  contemporâneos. 
          No segundo aspecto  depreende-se mais uma  forma diferente da tradição  literária:  é quando o  conto, do princípio ao desfecho se constrói    por diálogos. Disso tem-se  o exemplo do conto ”O cortador de arame” (op.cit.).  O dialogo serve igualmente como  traço  identificador  e recorrente do caráter  de oralidade dos contos.  Esta adequação  premeditada   com técnica  narrativa também vai  mostrar   um dado relevante da construção sintática   dos textos ficcionais do autor: a mudança da linguagem  segundo  o tipo do narrador e sua condição  cultural.
     Para quem não está acostumado a ler textos formulados  nestes termos  do contista  piauiense,  muitas  expressões  regionalistas, populares , bem com  léxicos   localizados produzem  por vezes ruídos  na dicção dos personagens,  tanto nos diálogos quanto  no enunciado.  O pitoresco  léxico regionalista  do discurso do narrador e dos personagens ou mesmo do narrador-personagem é opulentíssimo, em muitos  casos  nem  dicionarizado  ainda está.  E, assim, oferece um amplo espectro  a estudiosos  da linguagem. Veja-se o exemplo abaixo no conto ”O bilhete.” As expressões ou  vocábulos em itálico  ilustram bem a minha afirmação precedente:
 ...Ah, meu patrão, pra que falar nessas coisas! Pra que falar da minha, que era uma porqueirinha de nada.  Dizer que era chegadeira que só, e não temia homem não. Era que nem lagartixa pra gostar de moita. Pra quê ? Vancê não entende?
     O  que expusemos,  ao longo destas breves   considerações, se não consegue  propiciar uma mais  ampla visão  da importância do contista  Magalhães da Costa,  pelo menos  aponta linhas  de força  para pesquisas    que seguramente poderão  ser desenvolvidas e  aprofundadas por  outros  estudiosos  da ficção  brasileira. Os autores de ficção que estrearam   a partir dos anos 1970,  geração a  que pertence Magalhães  da Costa,  sem dúvida conquistaram avanços   com novas formas de linguagem, temas  e técnicas   no gênero da  também chamada  história curta, a qual   por isso mesmo   vem,  nas últimas décadas,   crescendo em importância e na preferência dos leitores de hoje.


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