CUNHA E SILVA FILHO
Nem é preciso ir a fundo na análise
de toda a obra
ficcional no gênero conto de Magalhães da Costa (1937-2012) para emitir
um juízo critico muito favorável
a ele não só no quadro da literatura
produzida no Piauí mas também no
nível de sua narrativa considerada nacionalmente. O autor escreveu, pelo menos, cinco livros no
gênero que criteriosamente elegeu como o seu
principal projeto literário, dado que também exerceu a crítica
literária e escreveu poesia.
Convém recordar aqui o período em
que escreveu para o excelente Jornal de Letras, nos bons tempos da direção dos irmãos Condé e, nessa seção, fez brilhar
seu talento de comentarista e divulgador de obras de autores piauienses. De resto, essa seção
de que se ocupou se destinava a autores piauienses.
Magalhães da Costa – releva anotar -
conquistou prêmios literários tanto no seu estado natal quanto em âmbito
nacional. Teve três livros lançados por editoras
do Rio de Janeiro e com divulgação
nacional, Casos contados e outros
contos (Rio de Janeiro, Rio Fundo
Editora,1996), com prefácio de Assis Brasil, Traquinagem (Imago, 1999), com
a primeira orelha escrita por
Altevir Alencar e a segunda, por Hardi Filho, apresentação de Maria Figueiredo dos Reis e quarta capa de Assis Brasil e Crime & mistérios, de 1977, uma
antologia de ficção policial, publicada no Rio de Janeiro.
A
produção do contista nascido em
Piracuruca, sua cidade natal - fonte inspiradora de suas inúmeras histórias -,
vai dos anos 1970, data de
seu livro de estreia, Casos contados
(1970) até 2002, quando escreveu e
publicou mais um livro de contos, de título Agrado.
Todavia, em 2012, saiu de sua lavra uma obra póstuma no mesmo gênero, Histórias com pé e cabeça. Entre essas obras, saíram
antologias organizadas por
escritores do seu estado natal. Para
completar a menção de seus dados bibliográficos, seja mencionada mais um livro
de contos: Estação das manobras (1985), seu terceiro livro.
Pode-se
afirmar, à vol d’oiseau, sem medo de errar, que a ficção
de Magalhães da Costa, não tendo sido ainda, a meu ver,
matéria de estudos críticos de
maior fôlego, se inscreve num
campo de investigação, cujos polos mais
relevantes são a potente imaginação do autor trabalhada, com mão de virtuose e conhecedor profundo
do gênero short story, a partir do material
da realidade local não só da
cidade de Piracuruca como
também de outros espaços físicos variados atentamente observados e
filtrados pelo sua condição
de professor e magistrado nas suas andanças pelo interior piauiense: a vida, os costumes, os hábitos, as relações sociais,
religiosas, as relações do trabalho
braçal, por vezes tensas, entre “coronéis”
e agregados, com as submissões e adulações entre estes para com aqueles e, no meio delas, as desconfianças entre
patrões e empregados, tão bem
vistas no conto “O cortador de arame” (apud Novos contos piauienses.
Teresina, Fundação Cultural do Piauí, 1984, com Apresentação de Jesualdo
Cavalcanti Barros, p. 22- 27).
Magalhães da Costa pertence à linhagem de contistas brasileiros que
optaram, em primeiro plano, pelo regionalismo renovado de temas e linguagem, a se ver pela espaço geográfico em que escreveu
a sua obra ficcional. Escreveu
sobre o que sabia a fundo da paisagem,
do linguajar e da realidade humana vista,
em certo sentido, num plano universal,
pois suas histórias falam de
traição amorosa, ciúme doentio, paixões desenfreadas (contos “O bilhete,”
“Enquanto viajava”); ambição e sentido trágico (conto “Cartomante”); frustração
no relacionamento conjugal (conto
“Cantar de galo velho”) maldade infantil
(conto “Corte de palha”); amizades e
inimizades passageiras, sentimento íntimo
ferido, bullying na infância (conto
“Briga de meninos”); iniciação sexual
(conto “Noitadas com negra Zu”; religiosidade (os contos “Catecismos,” “Terços”
); relações de trabalho na vida rural, coronelismo. relacionamento submisso
de agregado com o patrão ( conto
“O agrado” ); tipos populares com traços
meio pícaros (contos “Casca grossa,”
“Conversa de pé de bodega”).
Entretanto um dado é inestimável
entre outros da sua fatura literária: é a linguagem
que, ao lado do enredo, da trama, aparece com maior visibilidade na obra
deste contista. É por ela que o
ficcionista se eleva e se distingue, pois tem como recurso estratégico fundir
harmoniosamente o enredo com a técnica. Tudo isso
elaborado com a intimidade que
tem com
os efeitos que visam
atingir a sensibilidade do
leitor.
Essa modo de aliciar o leitor, de prender-lhe a atenção e de seduzi-lo a espontaneamente penetrar no interior do universo ficcional é típico dos ficcionistas hábeis
e meticulosos na urdidura dos histórias, causos, tal como ele
próprio ilustra com a estratégia de
um personagem em diálogo, por vezes
silencioso, com um interlocutor, vai
conduzindo o relato no qual o
que é importante é a segunda narrativa
encaixada à primeira que logo cede vez como se fora empregar a técnica da mise en abîme, segundo se pode verificar no conto “Terços (op. cit. p.29-36), da obra Traquinagem,
onde humor, divertimento e encanto
são vividos pelo menino Zezinho
deslumbrado com as histórias do velho
Damião Olho de Pata Choca. Este, inicialmente, não se dispunha
a atender aos rogos de Zezinho para que
contasse muitas histórias.
Acabou cedendo logo que Zezinho lhe ofereceu, falando-lhe ao pé do ouvido, “umas peles de
fumo” ( idem, ibidem p.3).
Vale
assinalar na temática da obra ficcional de Magalhães da Costa
um traço muito forte: o
memorialismo que se reparte por boa parte de seus contos, sobretudo em Traquinagem, no qual a
infância se apresenta como um largo espaço de afetividade vivida
pelo menino Zé do Branco – uma de símbolo da dessa fase
da existência humana com todas as suas surpresas, mudanças de humor, ludismo, folguedos, ingênua rebeldia de alguns momentos, e aprendizado que, em tempos futuros, poderão ser quase apagados da memória
dos adultos. Traquinagem, por
exemplo, seria também a saga da infância dos interior brasileiro, com as suas variações e suas
afinidade de estado para estado e de cidade para cidade.
Dois aspectos estruturais de sua
narrativa, no que tange ao tratamento
dispensado à linguagem literária, gostaria
de mencionar nestes comentários :1) o
traço visceralmente oral
das suas narrativas, sobretudo aquelas
ambientadas no meio rural; 2) a arquitetura dos enredos como forma
particular de sua narrativa.
O primeiro está intimamente conexionado ao discurso de um
narrador que se coloca como
um personagem, seja em terceira ou
primeira pessoa, fazendo parte da história reportada. Ora, esta estratégia o faz mergulhar num discurso
estilizado produzindo um
impressão verossímil do modo da fala
dos personagens segundo os seus registros
do nível de escolaridade ou de
ausência dela. Portanto, não é meramente a cópia servil da imitação clássica,
romântica ou realista
do discurso ficcional tradicional, o qual bifurcava dois tipos de linguagem: a do
narrador culto, do autor, e a do
discurso dos personagens em cena, nos
diálogos. Este sensação puramente estética no uso a linguagem literária foi uma conquista admirável dos ficção
contemporânea. Essa mesma estratégia foi
talentosamente utilizada na
ficção urbana de João Antônio, em Guimarães Rosa e em outros autores
contemporâneos.
No segundo aspecto depreende-se mais uma forma diferente da tradição literária:
é quando o conto, do princípio ao
desfecho se constrói só por diálogos. Disso tem-se o exemplo do conto ”O cortador de arame” (op.cit.).
O dialogo serve igualmente como traço
identificador e recorrente do
caráter de oralidade dos contos. Esta
adequação premeditada com técnica
narrativa também vai mostrar um dado relevante da construção
sintática dos textos ficcionais do
autor: a mudança da linguagem segundo o tipo do narrador e sua condição cultural.
Para quem não está acostumado a ler textos
formulados nestes termos do contista
piauiense, muitas expressões
regionalistas, populares , bem com
léxicos localizados
produzem por vezes ruídos na dicção dos personagens, tanto nos diálogos quanto no enunciado. O pitoresco
léxico regionalista do discurso
do narrador e dos personagens ou mesmo do narrador-personagem é opulentíssimo, em
muitos casos nem
dicionarizado ainda está. E, assim, oferece um amplo espectro a estudiosos
da linguagem. Veja-se o exemplo abaixo no conto ”O bilhete.” As
expressões ou vocábulos em itálico ilustram bem a minha afirmação precedente:
...Ah, meu patrão, pra que falar nessas
coisas! Pra que falar da minha, que era uma porqueirinha
de nada. Dizer que era chegadeira que só, e não temia homem não.
Era que nem lagartixa pra gostar de
moita. Pra quê ? Vancê não entende?
O que expusemos, ao longo destas breves considerações, se não consegue propiciar uma mais ampla visão
da importância do contista
Magalhães da Costa, pelo
menos aponta linhas de força
para pesquisas que seguramente poderão ser desenvolvidas e aprofundadas por outros
estudiosos da ficção brasileira. Os autores de ficção que
estrearam a partir dos anos 1970, geração a
que pertence Magalhães da Costa, sem dúvida conquistaram avanços com novas formas de linguagem, temas e técnicas
no gênero da também chamada história
curta, a qual por isso mesmo vem,
nas últimas décadas, crescendo em
importância e na preferência dos leitores de hoje.
Nenhum comentário:
Postar um comentário