domingo, 5 de janeiro de 2014

A moça do livro



                                 Cunha e Silva Filho


                 Estava numa das muitas  filiais de uma  grande  farmácia na Praça  Saens Peña, na Tijuca, velho e  super-povoado   bairro da Zona  Norte do Rio de Janeiro.  Era domingo  de sol a  pino. O relógio digital da  praça registrava  38 graus. Calor  infernal. Até parecia que  andava  pela Av.  Frei Serafim, em Teresina  em pleno  meio-dia de verão brabo.
Dentro da farmácia,  com ar-condicionado, aquele  calor  insuportável. Desde criança,  quando  com mamãe ia ao Mercado  Velho, na Teresina da  primeira metade dos anos cinquenta do século  passado,  me  queixava do “calor  danado.”           
“Que caiô  danado”!  -  repetia quase  virando  um  estribilho  pra mamãe que nem  estava  ali  para  o meu  desabafo  de  criança irritante. O verão  carioca  semelha, na temperatura, ao calor  infernal  de Teresina. Só de uma  coisa  gosto  do calor: ele me permite  tomar  um  banho  de chuveiro demorado, gostoso,   refrescante, animador e sem ter que ligar  a água  quente.
Enquanto  Elza e Alexandre  compravam  remédios enfrentando  duas filas,  uma para  ser atendido e outra  para  aguardar a chamada  da vez  no caixa, eu  olhava  tudo  ao meu  redor,  pessoas,  as prateleiras  de remédios  bem arrumados, As  molduras  das fotografias em tamanho médio  perspectivando instantâneos de  diversas  décadas  do  século  passado  mostrando  como  era a  Praça  Saens Peña. E como  era diferente em tudo: nos prédios, hoje  desaparecidos,  no coreto  que lá havia em  décadas passadas, nas linhas de trilhos de bonde que  cortavam  ruas  tão   tijucanas  como  a Conde de Bonfim,   a Barão  de Mesquita,  a Avenida  Maracanã, os prédios  onde  se localizavam  cinemas,  os bondes cheios de gente  de  roupas    de  épocas   atrás,  algumas sentadas,  outras,  em pé  nos estribos   dos bondes,  uma  multidão de  anônimos hoje talvez   “dormindo  profundamente”  como  no  belo  poema   de Manuel Bandeira(1886-1968). 
Com um olhar apurado,  procurava  divisar  alguma  pessoa  em particular,  a fim de poder  tirar alguma   impressão  do  olhar  dele ou dela. Nas ruas  daqueles   tempos  passados,  viam-se  outras  pessoas  como se delas quisesse eu  também extrair  alguma  informação  do que  pensavam  no momento  em que foram   fotografadas  sem serem  notadas,    anônimos seres  que  jamais  conhecemos  de quem   nunca saberemos   o que foram, o que fizeram,  como  viveram aquelas épocas, o que fizeram  de bom  ou errado,  o que pensavam  da vida e do  futuro. Jamais saberemos.
 Entretanto,  sinto  uma grande e misteriosa  atração  por  esses anônimos de  anos  passados: 1910, 1915, 1927 (Papai,  neste ano ainda  estava no Rio de Janeiro),   1950, 1970. Casas,   contornos das ruas,  formas  de vida,  sociabilidades   diversas, modas,    estilos   de vida, estilos diferentes   de música,  de  dança,  de  teatros,  de filmes. Tudo  passou, ou  melhor,  quase tudo  passou,  pois ainda  alguns traços  de  alguma coisa do passado   teimam em  sobreviver  no  presente.
Inopinadamente,  meu pensamento  suspendeu-se e comecei a   olhar para uma moça  pequena,  clarinha,  de  cabelos  em estilo   dos anos  30 daquelas atrizes    do cinema americano ( ao mesmo tempo, em imagens sobrepostas, aquela moça    me lembrava alguma coisa, não exatamente   pelo corte de cabelo,   das   atrizes  da era  do cinema  mudo,  dos primeiros   filmes de Chaplin, 1889-1977),  por sua vez, copiado  pelas  brasileiras  da mesma  época. É só olharmos   para nossas  avós, claro, da minha  geração   pelo menos.
Aquela  moça  mignon,  parecida  com uma francesinha   da “Geração  Perdida,” ali  entrava  na farmácia. Mas, entrava  com um arzinho  desconfiado,  alheado de tudo e de todos. O mais  curioso  que nela   observei  foi que andava com os olhos grudados num  livro  pequeno  e aberto pela metade.  Caminhava,   com passo  leves,   e não deixava  de ler  parágrafos   do livro.  Acredito que  era um   romance,  ou  um livro de contos. Pela disposição que  mal   avistei das páginas abertas,   não era  poesia  não, nem tampouco  poesia  concreta,. Era um livro que  segurava com   muita atenção  e com muito   cuidado.
Seu vestido era fino, bem discreto, multicolorido e lhe caía bem  no corpinho  frágil. Ao  reparar no seus  olhos,   vi que não era tão  novinha e tinha  olhos cansados   e   meio arregalados, o que  lhe tirava um  pouco de sua   meiguice geral. O diabo era que ela não dava  bola pra ninguém, mesmo  quando  eu  tentei fixar meus  olhos   nos seus. Ela fingiu que não me viu, ou talvez  não me  viu  mesmo. Não obstante, continuei  seguindo-lhe os passos e ela  prosseguia  lendo o livro  e  andando por boa  parte da farmácia, que,  por sinal,  é ampla  e elegante. Passou  pela  filha  de compra,  pela de pagamento, mas sempre lendo o  livro  absorta,  alheia a  tudo. Parecia aquelas  menininhas   vidradas   nos   livros de  Harry Porter que não  o largam  enquanto  não terminam de ler  a última  página.  

Tendo   pago  a conta com  cartão, tendo  digitado a senha,  ainda  pude  ver que sua atenção maior era  o livro e não os números  do cartão  que  digitou  mecanicamente.  A moça do livro,  então, encaminhou-se – lendo avidamente, sofregamente,  o livro até  sair  da farmácia  e  perder-se na multidão.

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