Ao ler Pedra Negra de Halan Silva,[1] a segunda incursão que ele faz no gênero romance, tendo, em 2011, estreado com a obra Cambacica, publicada pela mesma editora, e que, infelizmente ainda não li, me surpreendi com a rapidez com que as peripécias da fabulação deste segundo romance imprimiram à minha leitura. Tal rapidez tem muito a ver, suponho, com a arquitetura da obra que lhe deu o autor, ficção elaborada sem os habituais capítulos numerados ou com outros recursos paratextuais.
Narrativa curta, meio novela, meio romance, sem, contudo, cair numa estrutura de contos reunidos sobre o mesmo tema como se fossem uma novela ou romance. Em Pedra Negra há inegavelmente mais elementos para classificá-la como novela. O que importa, afinal, é que é uma obra de ficção.
Quando falo em rapidez do tempo de leitura, subentendo não só a ideia de extensão das partes ou capítulos, mas também o próprio evolver da diegese e sua maneira aliciante de narrar, impulsionando o leitor à curiosidade de continuar o processo de leitura. Isso já é uma qualidade para qualquer autor. É claro que no dinamismo provavelmente está embutida uma estratégia intencional do narrador/autor, que buscou selecionar – e toda ficção pressupõe seleção de temas ou eventos, de formas, de visões e de ideologia -, sua história num espaço gráfico nítido, preciso, no qual enunciado e enunciação seguem o mesmo espírito do contar menos para implicitamente contar mais. Por isso, a chamo de ficção do menos.[2]
Não sei que instrumentos ou técnicas narrativas foram empregadas pelo autor, que também é ensaísta e pesquisador, no primeiro romance.Sou informado, pela segunda orelha de Pedra Negra, que o Halan Silva, na vida literária, estreou como poeta, com o livro 16 poemas.[3] Desconheço também , se o autor trilhou os mesmos caminhos e os mesmos recursos ficcionais em Cambacica, o que seguramente me daria algum aporte para tirar ilações acerca de seus processos e modos de narrar comparando-os com os utilizados em Pedra Negra. Só o confronto me permitiria falar de progresso ou retrocesso.
Contudo, pela leitura de Pedra Negra posso adiantar algumas particularidades favoráveis ao escritor: o domínio pleno do ofício de conduzir uma narrativa, especialmente a sua maneira de equacionar história, temas e linguagem literária, além de dominar bem o uso complexo no domínio da narratividade, que é o tempo. A categoria do tempo neste romance tem o sopro de modernidade, da ousadia. Posto que utilize um narrador na terceira pessoa, narrador onisciente, a manipulação do tempo é habilmente trabalhada por prolepses seguidas de analepses i.e., o incípit é o explicit [4] que se completam e se fundem no último capítulo. As ações da história são, pois, regidas pelo tempo retroativamente.
Daí que o primeiro capítulo relata o acontecimento da morte, sepultamento e velório do Major, um dos principais personagens do romance, e ao mesmo tempo põe em cena seu protagonista central, o padre Hermínio, a quem coube celebrar a missa de corpo presente do major num velório bizarro e carnavalizado, pois o morto se exibia nu no féretro.Tal tipo de cenário se parece com alguma coisa do humor e do espírito carnavalizado de passagens da obra de Jorge Amado (1912-2001).
Padre Hemínio é um sacerdote em luta íntima contra a sua ausência de vocação para o celibato e é um homem sem as mínimas condições de crença e fé nos valores da Igreja Católica. Ou seja, a força-motriz da obra reside neste comportamento do padre atingindo os alicerces daquela instituição: a não obediência aos votos de castidade e, no caso dele, o desregramento sexual profanando os recintos sagrados do cristianismo, como o coro da paróquia, uma capelinha de um cemitério, a sacristia.O seu alvo, a Mocinha, vítima da lascívia do padre que tudo fez para que ela abortasse o fruto do pecado.
Padre Hermínio, àquela altura, dos acontecimentos, ou seja, após o sepultamento do Major, já estava dando adeus à vida religiosa, por não ter-se conduzido como um sacerdote digno. Sobre ele recaía o peso de ter engravidado uma jovem e ultrajado os recintos da igreja. Só um gesto corajoso e determinado teve para com a comunidade: confessara publicamente o seu crime nefando se considerado pelas circunstâncias e lugar em que ocorreu e pela sua condição de religioso que perdera a fé e todos os valores prezados pela Igreja católica.
Paralelo a este tema de ordem religiosa, a narrativa põe em foco a questão do coronelismo, com toda a sequela que o acompanha: modos de vida sem contestação, obediência cega aos patrões fazendeiros, tragédias com culpados não identificados, enfim, o império do que já se denominou mandonismo.
Essa dimensão social e hierarquizada, quer no campo, quer na cidade do interior, Campo Maior para ser mais claro, é uma das linha de força da fabulação e mantém pontos comuns com outros romances brasileiros, especialmente com a ficção dos anos 30. As relações de poder se mantêm verticalmente como rochas indestrutíveis. Relações do tipo mercantilista, nas quais os sentimentos se mostram geralmente destituídos de emoção, dos grandes casos de amor entre protagonistas, o que nos faz recordar traços gerais do São Bernardo (1934) de Graciliano Ramos (1892-1953).
Logo no início do texto de Halan Silva, o narrador alude a encontros de senhores influentes do lugar na Zona Planetária,[5] zona de prostituição local. Nestes encontros, muitas vezes os interlocutores descambavam para discutir ou resolver questões de negócios envolvendo o mundo da produção da carnaúba e até de inovações de ordem tecnológica a serem realizadas para a melhoria da cidade.
A visão que se tem tanto do Major quanto do coronel Clemente, para ficarmos em dois exemplos, na maior parte tange aos meios de produção, venda, compra, andamento do engenho, enfim, a produção principal, a carnaúba. Essas referências situam o romance na sua dimensão impessoal, objetiva, num ambiente em que o homem é visto pelo peso do que possui e pela influência política local de que desfruta. A questão moral, os valores éticos se subordinam aos agentes propulsores da dinâmica do capital, assemelhando-se um tanto ao conceito de reificação ou coisificação utilizado por Luís Costa Lima[6] num antigo estudo primacial do romance São Bernardo.
Daí se compreende que em Pedra Negra o amor, a amizade sofrem um processo de transformação em que no casamento, ou mesmo amancebamento, o amor se apoia mais nos interesses, quer como forma de ganho financeiro ou troca de mercadoria, nos chamados casamentos sem amor, casamento por conveniência, quer porque a mulher se torna um objeto meramente sexual.
Daí também que grande parte dos homens casados por vezes têm sua “rapariga” muitas vezes mantida sob a vigilância cerrada dos senhores de engenho, como no exemplo de Jerusa, a preferida e protegida pelo Major. O amor romântico, ou platônico, ali estão ausentes. No entanto, sobram os instintos, o sexo comprado, o domínio da luxúria, da falência do credo religioso (caso do padre Hermínio). Enfim, sobram os frutos da produção carnaubeira, dos engenhos, dos vaqueiros. Não há, pois, no romance lances de alta emoção, seja sentimental, seja amorosa, seja de uma ação ou atitude altruística. Estamos em pleno imaginário das frustrações implícitas ou explícitas (caso também do padre Hermínio), do vazio do prisma humano. Narrativa algo seca, mesmo nas descrições da paisagem física.
O primeiro capítulo e o último se completam, repito, como fecho da narrativa. A cena toda gira em torno das consequências dos pecados do padre Hermínio. Este era um ser a quem a cidade havia condenado, seria um desterrado daquele meio acanhado e mecânico. Sua partida é o seu próprio “enterro” para a comunidade de fiéis. Até os sinos para ele anunciavam-lhe a “morte” em vida. Estava determinado a sair dali. Autojulgado e julgado pela comunidade após suas declarações sacrílegas, padre Hemínio arrancara do seu espírito a liturgia católica. Suas invectivas contra o comportamento ético do Major , seu costume de andar nu em casa, e possivelmente por ser maçom (p.12,), verberando-lhe a vida dissoluta, o apoio dado à Zona Planetária, não passavam de verbosidade oca de um religioso hipócrita e carreirista. Lembram-se de que, ao saber da gravidez de Mocinha, e no caso de ela vir a público, veio-lhe ao espírito logo a ideia de que suas possibilidade de alcançar a mitra estavam perdidas?
Releva assinalar quanto ao uso do tempo neste romance o fato de que o desenrolar das ações e dos acontecimentos quebra a sua linearidade e a narrativa, em toda a sua extensão, se forma de relatos que se comportam num vaivém bem articulado com a totalidade das partes ou capítulos. Este expediente narrativo tem uma vantagem: cada relato, cada personagem vai se compondo psicologicamente no decorrer das páginas seguintes. A descrição física dos personagens principais, casos de padre Hermínio, Major, coronel Clemente, Mocinha, entre outros, é praticamente nula, o que faria com que os designássemos como tipos.
Os aspectos atinentes a descrições de paisagem são comedidos. Entretanto, contrastivamente, o romance é riquíssimo em citações de topônimos, nomes próprios personativos, termos da vegetação rural, i.e., seu o espaço geográfico específico é a citada cidade de piauiense de Campo Maior.
O tempo da narração[7] no romance data aproximadamente dos anos de 1920 à primeira metade dos anos de 1940. O romance, aqui e ali, sinaliza para índices indicativos do tempo da história, o que lhe daria leves traços de roman à clef. Além disso, o romance inclui, dentro da narrativa principal, um encaixe, quando faz o resumo do relato da conhecida Batalha do Jenipapo que lhe toma quase sete páginas. Da mesma maneira, não deixam, contudo, de funcionar aqueles índices temporais como pano de fundo para contextualizar historicamente o espaço e tempo romanescos, tais como as referências à Quinta Coluna (Coluna Prestes), a figuras reais da história política brasileira, inclusive piauienses, a nomes de partidos políticos vigorantes em determinado período do largo espaço de tempo mencionado.
Não sei se tal inserção de natureza histórica seria essencial à parte ficcional da história, ao não ser que se tome esse encaixe como parte de um veio da narrativa contemporânea que atribui grande importância ao tópico do memorialismo. E, de alguma maneira, pode-se aventar aqui a circunstância de que este romance opera a dimensão histórica sem ser um romance histórico no sentido moderno com que se caracteriza esa modalidade de narrativa. O que me cabe assinalar é o fato de que, nesta obra,, a parte de maior relevância estética é a ficcional. A digressão é secundária.
Pedra Negra, conforme as circunstâncias espaçais forjadas pela narrativa, prioriza certos ambientes que se tornaram populares em Campo Maior – espaço , segundo já referi, da zona dos prostíbulos que, na história, está associado à vida do Major, já que ele não somente apoiou financeiramente a “reconstrução” das casas do entorno, como também sugeriu como deveria ser a fachada dos “casebres” dos lupanares da Rua Santo Antônio, os quais para ele teriam que ter inscritos “do lado esquerdo” da rua “o nome dos planetas” (p.21) e do lado direito, “o nome das “virtudes,”num contraste verdadeiramente humorístico. Essa ação do personagem custou-lhe a inimizade do padre Hermínio nas suas homilias e ofensas, no fundo sob o manto da fantasia” e do farisaísmo.
No tocante à composição dos personagens, o narrador economiza muito na real caracterização física e mesmo psicológica conforme já acentuei anteriormente. Curioso é notar que alguns personagens que partilham do enredo são apenas indicados por um nome só ou pela sua condição de status sócial: Major, Jerusa, Mocinha, padre Hermínio, coronel Clementino, vaqueiro, Mira etc. Não há aquela preocupação de nomeá-las pelo sobrenome. Não haveria nisso alguma influência do ficcionista Graciliano Ramos, com o exemplo de Vidas secas (1938)?
No terceiro capítulo (p.25-28) não entendi a referência à velha alcoviteira que, no discurso narrativo, caiu em estado deplorável, a ponto de se agarrar ao excesso etílicos. Por que aqui o narrador, primeiro, não a nomeou como Joró para em seguida identificar quem ela era? Por excesso de economia da narrativa, é bem provável que o narrador tenha cometido alguma confusão quando da entrada em cena de um personagem. Ou então poderia ser por motivos de tomdas de cenas, de cortes espácio-temporais influenciado pela linguagem cinematográfica ou de telenovelas?
Em linhas gerais, o arcabouço romanesco saiu-se bem, numa narrativa que, embora reduzida, mostra as virtudes de Halan Silva no seu trabalho de composição ficcional, notadamente se levamos em conta a sua destreza de usar de forma moderna e criativa recursos narrativos sem cair no anacronismo de repetidas obras publicadas pondo em foco o ambiente regional, mesmo de autores consagrados nacionalmente.
Pedra Negra não é obra de estreante inexperiente, mas um trabalho literário feito com conhecimento, pesquisa e recurso indispensáveis utilizados por escritores contemporâneos. Por esses e outros motivos, saímos de sua leitura com a convicção de que o autor congrega a capacidade de imaginação com a experiência de quem, pela linguagem despojada, clara, e domínio perfeito do vocabulário adequado à natureza da narrativa e também ajustado ao tempo da narração, soube com sucesso realizar uma ampla pesquisa das inúmeras referencialidades da época da história, assim como fazem no teatro, no cinema, na televisão os inúmeros profissionais que escolhem os cenários, a indumentária, o mobiliário, a paisagem, as modas, os objetos, os costumes, o folclore, os meios de transporte, enfim, todo um arsenal cultural sintonizado com o corpus da narrativa, em tudo obedecendo às exigências do tempo e do espaço ficcionais.
Ao recorrer a tudo isso, o ficcionista propicia ao leitor aquela visão possível de imprimir autenticidade e verossimilhança de representação dramática, de tom enunciativo, de passagens de humor negro, de cenas mágicas, de assombrações, de práticas incompatíveis com quem se entregou à vida religiosa, cujo pior exemplo é o padre Hermínio invocando a “cobra negra” a fim de colimar suas ações pecaminosas. Da mesma sorte, diria das situações de flagrantes humorismo em face de práticas sociais, de meios de vida e de diversidade de encontros e desencontros do homem na sociedade patriarcal e do homem venal diante de seus chagas morais.
Fé, credo, respeito aos dogmas católicos não tinha para padre Hermínio utilidade alguma. De resto, esta é uma linhagem da ficção cujo modelo de tema do mau uso do celibato vem a ser o romance O crime do padre Amaro (1875) de Eça de Queirós (1845-1900). Ao responder com esforço à ultima pergunta de frei Heliodoro, que consistia em saber se ele havia se arrependido de seus atos, se não ”temia os horrores do inferno,” (p. 100) padre Hermínio apenas deixou escapar esta frase, entre irônica e dolorosa, proclamada no latinório: “Infra equinoxiatem non peccatur”. Sim, não pecaria debaixo do Equador. Sabe-se que, no Equinócio, o ponto da órbita da Terra registra igual duração do dia e da noite.” [8] Se não havia igualdade entre os seres humanos ou os seres do mundo, e em muitos ângulos da vida, de que modo seria ele diferente dos outros? Só fora da linha do Equador essa possibilidade do pecado talvez pudesse ser diferente ou acenasse para um horizonte incerto.
NOTAS:
[1] SILVA, Halan. Pedra Negra. Teresina: Editora Nova Aliança, 2012.
[2] Ao dar este título ao meu estudo, me inspirei no título de um conhecido ensaio de Antônio Carlos Secchin, um estudo sobre a poesia de João Cabral de Melo Neto, A poesia do menos. São Paulo: Editora Duas Cidades, 1985.
[3] SILVA, Halan. 16 poemas. Teresina: Edições des Livres, 1995.
[4] Sobre estes conceitos, ver REIS, Carlos. O conhecimento da literatura. 2 ed. Coimbra: Almedina, 1999, principalmente p.205-212
[5] Convém relembrar que esta área de prostituição já inspirou um belo poema do escritor piauiense e natural de Campo Maior, Elmar Carvalho. O poema de título homônimo se encontra no livro desse poeta com o título Rosa dos Ventos gerais. 2 ed. Teresina: SEGRAJUS, 2002.,p. .163-172.
[6] COSTA LIMA, Luiz. A reificação de Paulo Honório. In: -- Por que literatura. Petrópolis: Vozes, 1969, p. 49-70.
[7] SCHÜLLER, Donaldo. Teoria do romance. São Paulo: Editora Ática, 1989, p. 58.
[8] HOLANDA FERREIRA, Aurélio Buarque de. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1976, p. 544.
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