Cunha e Silva Filho
Na sala de aula a minha atenção se dirigia a todas. Nunca imaginara que, entre elas, havia uma que me observava há algum tempo naquela final de semestre. Um dia, ao final de uma aula, ela me entregou um papel, pequeno papel dobrado com cuidado e com um ar de segredo. O que seria?, me perguntei surpreso. Quando a turma toda saiu do recinto da sala, não contive a curiosidade e, tirando do bolso do jaleco aquele papel dobrado, li a mensagem que me parecia sigilosa: “ “Professor, eu te amo!” Uma alegria imensa se apoderou de mim e ao mesmo tempo logo associei o conteúdo da mensagem à figura mignon, adolescente de um rostinho moreno e olhos negros, negros “como o negrume do mar”, como diz Castro Alves em um poema belíssimo e cheio de sensualidade romântica.
Em casa, mal pude conter a vontade de reler o papelzinho perfumado com aquelas palavras doces e meio ingênuas. Meu espírito se elevou às alturas da felicidade de saber-me amado. Mas, aquele sentimento manifestado pela jovem amorosa martelava na minha cabeça À noite, fui preparar minhas aulas para a manhã seguinte, porém o pensamento não me saía da cabeça. Parecia que ouvia a voz da adolescente me dizendo que, em casa, fosse ler o que havia no papel dobrado. No seu semblante tenro, doce, belo e nos seus movimentos rápidos e principalmente no seu olhar profundo havia sinceridade de gestos e de palavras.
Na mesma semana, voltando às aulas e entrando na sala em que ela estudava, me deparei com a sua presença. Notei que estava com a cabeça abaixada, talvez escrevendo alguma coisa num caderno. Os cabelos longos e sedosos estavam jogados para a frente quase a cobrir-lhe a face. Sabia que eu já havia entrado na sala. Dei a minha aula. No final, obedecendo ao toque da campainha, e após preencher no diário o conteúdo desenvolvido, me levantei e me despedi da turma com um ciao. Saí e ganhei o longo corredor. De repente, ouvi alguém me chamar em voz baixa. “Você leu?” “Sim, li.”“O que achou?” “Achei lindo e sincero.” “Porque não conversamos em outro lugar? A gente pode marcar um encontro . Que tal no centro da cidade,no Passeio Público..." "Boa ideia!"
No dia do encontro marcado, conversamos muito sobre as nossas vidas. Ela estava bela naquela blusa azulada, com um decote mostrando um pouco no desenho moreno meio fundo onde se aninhavam pequenos seios esculpidos pela natureza. Usava calças jeans e uma sandália preta de saltinho discreto. À luz do sol, que reverberava nos jardins do Passeio, sua tez ainda estava mais bela , sem manchas, cheia do viço da juventude em flor. As sobrancelhas escuras e bem delineadas, grossas mas discretamente cuidadas em salão de beleza, compunham aquele rosto meio comprido que lembrava personagens saídos de um romance sertanejo alecarino.
No meio da conversa, em clima de emoção e alegria, ela retirou de uma pequena bolsa um estojinho minúsculo. Era um presente que me oferecia pelo nosso encontro. Uma pulseira de fantasia no meio da qual havia uma frase que só ficava inteligível quanto a girássemos puxando as duas correntes. Era, então, que aparecia a mensagem: “Eu te amo”. Não resisti em dar-lhe um beijo na testa e, em seguida, por instinto, dois lábios sedentos se misturavam no prazer do sentimento amoroso.
Várias outra vezes, nos encontramos sempre com maior intensidade de sentimento e com promessas de futuro.
Um dia, ela me falou que iria passar alguns dias no interior com seus pais. Não gostei da ideia, pois iria ficar sem vê-la . Outro dia, me falara que já tinha gostado de um jovem, mas que haviam desfeito o namoro. Esses fatos me deixaram um tanto preocupado com a continuidade de nossos encontros e de nossas promessas.
Vitória era o seu nome. Seu pai tinha sido boxeador na juventude, contudo, depois, entrara para a Marinha. Sua mãe não era verdadeira, era apenas sua madrasta. Sua mãe biológica havia morrido bem cedo, aos vinte e dois anos, em consequência de um parto.Desse parto Vitória foi a sobrevivente.
Na escola, tudo continuava como sempre. A rotina das minhas aulas. A troca de olhares furtivos entre mim e ela. Era uma aluna regular, mas responsável, séria e educada.
Uma vez, ela e eu fomos a uma casa de uma amiga dela, que também estudava na mesma turma. A amiga morava num apartamento modesto, contudo bem cuidado.Via-se que a família de Júlia, a amiga, era íntima de Vitória. Naquele dia, quando as duas, um pouco afastadas de mim, estavam conversando, ou melhor, confidenciando entre si, ouvi de Julia: “Eu sou muito mais pelo Emílio, que é meu nome, e não por aquele ex teu, o Ricardo Pita. Não ouvi o que Vitória havia respondido para a amiga. Entretanto, pairou uma dúvida cá no meu interior: “Será que ela ainda tem algum elo afetivo com esse tal Ricardo? "Até hoje, passados tantos anos, não tenho a resposta para aquela indagação.
O fato é que, depois de uma período de férias escolares, voltando às aulas, Vitória ainda por coincidência era minha aluna. No período de férias, nos despedimos um tanto frouxamente. Ela iria passar todo o período no interior do Rio e eu jamais recebi alguma notícia dela. Concluí que estava encerrado o namoro. Aquele arroubo todo passara como fogo de palha. Naquela volta às aulas, depois de uma aula que dei para a turma dela, tendo já saído da sala, no corredor, ela veio até a mim um tanto ressabiada, sem jeito, sem entusiasmo e me perguntou se ainda podíamos continuar. “Continuar ”, dissera-lhe eu, não, não quero mais”. Três meses depois, fui demitido da escola. Algum tempo depois, saindo de um ônibus, vi que estava sentada do lado da janela. Olhei pra ela e ela, por sua vez, olhou pra mim indiferente como a Sofia de Machado de Assis. Desci com o coração sangrando.Hoje, deve ter seus cinquenta anos ou quase. Penso agora, naquela palavras do narrador de Quincas Borba, do derradeiro capítulo, o CCI, do romance (...) “O Cruzeiro, que a linda Sofia não quis fitar, como lhe pedia Rubião, está assaz alto para não discernir os risos e as lágrimas dos homens.”
Algum tempo depois, ainda a vira numa feira do subúrbio da Leopoldina. Estava acompanhada de uma moço.Desta vez, julgo que não me vira. Eu estava acompanhado de um amigo que me convidara a ir à feira, situada não muito distante de onde eu morava.
Nunca mais a vi nem mesmo sei se está viva ou que fez da vida. São águas passadas que, embora passadas, de vez em quando invadem nossos corações num misto de saudade, tristeza, desilusão e dúvida, associado, contudo, naquele breve tempo de amor fulminante, a uma canção antiga de uma compositora cega que, por algum tempo, teve alguma repercussão.
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