Um Prefácio não pode ser apenas
elogios a um autor, mas adiantar algumas
observações de natureza crítica que
a obra lida possa suscitar numa primeira
leitura, quer dizer, trazer à baila aquilo que o livro
lançado possa oferecer de novo no
tocante a livros anteriores do autor. Só
os livros de estreia podem ser
lidos com uma boa dose de indulgência a fim de que o
julgamento não seja apenas negativo, pois quem prefacia, antes de tudo, merece
tratar um autor novo com alguma
boa vontade, mesmo porque o autor, ao
escolher alguém que lhe faça um prefácio, já por si só espera uma boa acolhida à obra. De qualquer
forma, o gesto de entregar a uma
pessoa a incumbência de um prefácio é um maneira de reconhecer o valor de quem vai escrevê-lo. Seria uma espécie de homenagem
ao autor do prefácio.
Sendo assim,
cumpre a quem escreve esse tipo
de paratexto salientar o que esteticamente seja válido
na obra e o que poderia ser
sugerido ao autor a fim de que ele venha
a melhorar no gênero ou gêneros em que exerça a atividade criadora. No caso em exame, um livro de poesia.
Carlos Gramoza está distante de sua estreia
no domínio poético há três décadas. Seu livro de estreia, Tempos perplexos, é de 1983, com
Prefácio de José Virgílio Madeira Martins Queiroz. Esse longo período de vida não foi, no entanto,
acompanhado de uma boa quantidade de obras escritas. Ao contrário, a obra ora lançada,
Ressacas, vem a ser a terceira em sua
trajetória de poeta.
Circunstâncias várias são, por vezes,
impeditivas a que um autor
produza mais. Não vem ao caso discutir as razões dessa questão que
mais está associada à vida do autor e à vida
literária. Não importa. O que permanece na história literária é uma obra
editada, não a obra completa, uma vez que o conceito de obra completa é por demais vago e fugidio. Quero
significar que o mínimo pode equivaler
ao máximo e, em se tratando de valorização
estética, número de livros nada tem a ver com
bom ou ótimo nível literário.
O fato
é que devo assinalar um ponto
pacífico na questão axiológica de um poeta como o Gramoza,
ou seja, não há dúvida quanto ao reconhecimento de seu
talento poético, posto que identifique na leitura de seu segundo livro, Passos oblíquos (1994), bem
como no terceiro, Ressacas, já
mencionado, objeto deste Prefácio, algumas deficiências de ordem gramatical e
bem assim de erros de grafias não bem
revisados pelo editor. Isso não é
bom para uma obra nem para o autor. A
habilidade criativa de Gramoza é bem superior ao seu estrito
domínio de certos aspectos
da disciplina gramatical, porquanto nele a potência do verso está acima
do fato meramente gramatical. Com
um pouco de esforço, essas deficiências podem ser sanadas.
À época da publicação de Passos oblíquos, em novembro de 1994,
com Prefácio de Clóvis Moura e Introdução de M. Paulo Nunes, não tinha eu conhecimento da existência desse poeta de Amarante. Só
naquele ano vim a saber. O autor me
havia remetido um exemplar autografado
desse segundo livro. O livro de estreia, Tempos
perplexos, já citado, somente vim a ler há pouco menos de um mês num
exemplar que o autor me remeteu, também gentilmente autografado com a data do mês corrente. A publicação, em edição simples e desataviada,
ficou a cargo da Universidade Federal do
Piauí – PREX - Coordenação de Assuntos
Culturais. O livro não menciona o número de páginas, frente e
verso, que o constitui. Resolvi
contá-las. Soma 28 páginas de frente,
ficando, porém, em branco a numeração
das páginas do verso, num total de 28
poemas.
Entretanto, não resta dúvida de
que da obra de estreia até Ressacas, houve avanço considerável tanto na técnica de compor
os poemas quanto em certas
constantes de seu lirismo, as quais se aprofundaram, o que é um bom sinal a um poeta
visceralmente sensível ao sentimento humano e ao sentimento da natureza, tanto quanto a uma atenção
vigilante com problemas sociais,
étnicos, políticos a desafiarem um
mundo movimentado pela alta tecnologia.
Continuo apostando na sua
capacidade de fazer boa poesia em diferentes frentes temáticas: lirismo,
autobiografia, natureza, problemas sociais e artesanato poético,
no sentido de criar metáforas
poderosas que dão aos seus poemas um
sensação de grito contra tudo
aquilo que machuca a dignidade
do ser humano. Todos esses traços
temáticos e expressivos de sua semântica
poética lhe conferem um lugar de realce
entre os poetas de sua geração que
ainda acreditam no papel da poesia e sua função social como instrumento de consciência desalienante dos povos.
Na sua obra de estreia, me chamaram a atenção, pela maior qualidade
composicional, entre outros, os
poemas “Lunar,” “Deslumbrado,”
“Pesadelo,” “O pneu,” “Domingo à
noite,” “A palavra” e “Vazio.” Gramoza,
na condição de estreante tem altos e
baixos, algumas hesitações de
elaboração de poemas, de pontuação que
podem ser sanadas em outras edições. No que tange ao fazer poético, ele se
distingue pela inquietação, por um certo
pessimismo e pela marca muito pessoal, muito autobiográfica, enrustida no sujeito lírico. Esse meuismo, se assim
posso definir, não contribui, se exagerado, para atingir um melhor patamar valorativo de seu estro.
A hipertrofia da subjetividade lírica não ajuda nenhum bom
poeta que pratique o verso em moldes
modernos, i.e., desde o surgimento das vanguardas europeias e a sua
assimilação na poesia brasileira, seja oriundo da ruptura do verso tradicional
- rimado e metrificado -, do Modernismo
de 22, seja a partir das gerações e
movimentos poéticos inovadores
do Concretismo de 1956 e de outros
movimentos de transformação da poesia brasileira contemporânea.
No entanto, em
Gramoza podemos identificar nele
processos discursivos e expressivos, aliás já mencionados em parte atrás, e que, agora, reforçamos, os quais foram se aperfeiçoando desde o livro de sua estreia: a ) a habilidade de descrição da natureza; b) o forte sentimento de um lirismo à flor da pele; c) a temática
social de viés esquerdista que vai até a uma obsessão por certas figuras mundiais emblemáticas como as de Fidel Castro, Che Guevara, a crítica
contundente ao capitalismo, o grito indignado contra a política econômica
norte-americana ante as nações subdesenvolvida (poema “Cloaca,” p.53); d) a voz da poesia impotente diante dos problemas sociais e das
subjetividades e a
incompletude das ações e
objetivos na vida de um indivíduo, o
vazio de tudo (Poema “Inconclusa Canção,” p.52); e ) uma
cadência rítmica que faz com que a linha do verso seja interrompida, à
semelhança de um enjambement, e
conclua o sentido do verso no verso seguinte:
Elas são as duas pescadoras
Mais velhas das
margens do Parnaíba. (Poema “Elas” Tempos perplexos)
É bem evidente, a começar do livro Passos oblíquos, a constatação dessa
acúmulo de versos entrecortados formando, no espaço da página, uma espécie de enfileiramento de versos em estrofes heterométricas, pequenas, médias e grandes, que se vai
agrupando até constituir o todo do
poema.
Essa estratégia grafemática,
que se vai radicalizar em
movimentos poéticos posteriores à poesia
concretista (Neoconcretismo, Práxis,
Vereda, PTYX, Poema-Processo)
caracterizada pelo anti-discursivismo, à
frente, o uso até exagerado da
desarticulação ou atomização dos vocábulos, ocorre igualmente em outros
poetas a partir da influência –
convém reiterar - das vanguardas
europeias. Na verdade, essa novidade verbi-voco-visual remonta até a
tempos bem remotos da Antiguidade grega e latina. No entanto, Gramoza faz uso -
diga-se assim -, mais
comedido dessas hiperrupturas em face do verso tradicional, antes joga mais com o espaço da página em branco e com a heterodoxia das
estrofes semanticamente encadeadas.
Ora, o poeta Gramoza, que já
está hoje na casa dos sessenta
anos, deve ter acompanhado
todas essas transformações operadas na poesia brasileira, de vez que, ao publicar seu primeiro livro nos anos 1980, ele já se insere visual e
expressivamente na modernidade
poética.
No que toca aos temas de sua poesia nele persistem alguns leitmotive basilares de sua produção: a
paisagem da cidade natal, Amarante, sua
natureza, seus ventos, suas árvores, seus rios, a recorrência
de versos alusivos ao rio Parnaíba,
o principal da cidade e do Estado do Piauí, o casario, enfim, seus pontos naturais mais conhecidos, sobretudo a principal rua de Amarante, chamada Avenida Amaral.
Um dado curioso do verso de Gramoza: não consegui vinculá-lo a nenhuma
influência de poetas piauienses, nem
mesmos do seu poeta maior, o Da Costa e
Silva (1885-1950). No livro de estreia,
somente uma vez me deparei com dois sintagmas que nos trazem,
intertextualizadas, na linha de um verso gramoziano, partes justapostas de versos do poeta de Sangue (1908): “... aos ósculos das águas,” do sol de estio (poema
“Deslumbrado”) sintagma extraído do
poema “Amarante”, do livro Zodíaco (
1917)e ”...de um sol de estio,” sintagma retirado do soneto “Saudade,” da obra Sangue.
No livro Ressaca Gramoza progride como poeta, aprofunda mais temas de sua preferência. Não diria
que os 57 desse poemas sejam todos
ótimos ou bons. Ele tem subidas e caídas,
mas as subidas é que o
mantêm na condição de poeta que pode ser lido e
estimado pelo leitor de poesia ou pela
crítica.
O poeta vai do lirismo dolorido à indignação
social, do sentimento do amor indefinido
à natureza de mãos dadas com a
subjetividade, do telurismo ao urbano, do
sentimento da natureza em fusão com a visão autobiográfica. Como bom poeta, entre outras preocupações, uma se deve assinalar: a de um lírico que se volta, de quando em vez,
para o próprio ato de criação literária, o qual, de resto, é um interesse constante de alguns grandes poetas de todos os tempos.
Essa reflexão metapoética lhe permite
sondar os seus próprios recursos
na construção dos poemas. Testar o canal do discurso lírico. Na poesia gramoziana tudo se mistura e tudo, a meu ver, converge
a uma postura poética muito
colada ao sinestésico, aos ritmos diversos, ao gozo
das palavras e, portanto, da
linguagem, da sua sintaxe poética que
parecem desaguar em cascatas em
direção ao mar profundo.
Daí que alguns poemas suscitam em nós, leitores ou críticos, ou
ambos, a vontade de afirmar ”Belíssimo poema. E assim eu fiz,
anotando à margem da cópia de seu Ressacas,
as seguintes conclusões numa segunda
leitura do livro: Muito bom ( poema “Evocação a Zumbi” (p. 43); “Atalhos” (p. 42); “Ressacas” (que dá título ao livro (p. 63-64).
Dou
aqui por encerrado este Prefácio e com a certeza de que li um livro de um
poeta de verdade na exploração, com criatividade, de temas
eleitos e com estilo literário inconfundível além de enorme carga de sensibilidade para dar e
vender.
Rio de Janeiro, 27 de junho de 2018.
Cunha e Silva Filho
(Pós-Doutor em Literatura Comparada pela UFRJ. Membro efetivo da
Academia Brasileira de Filologia.
NOTA: Livro inédito a ser editado possivelmente este ano.
NOTA: Livro inédito a ser editado possivelmente este ano.
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