Cunha e Silva Filho
Conforme havia prometido ao leitor, vou-lhe apresentar um pequeno texto autobiográfico do Pe. Júlio Albino Ferreira. Digo autobiográfico porque foi o próprio autor que, em nota de pé de página do anteriormente referido livro An English method [1], nos informa sobre a autoria do texto. Segue a minha tradução da narrativa do padre português sob o título “Crossing the Channel”:
Atravessando o Canal
Era uma e meia do dia 24 de março de 1916 quando parti de Folkstone para Dieppe a bordo do “Sussex.”O mar mostrava-se mais calmo do que nunca.
A bordo havia cerca de trezentas almas de diferentes países, América, Itália, Espanha, França, Brasil e Portugal. A uma distância de aproximadamente duas milhas de Folkstone, avistamos o que restou de um navio flutuando na água. Um marujo, ao ser indagado sobre o acidente, informou que um submarino alemão havia sido levado a pique dois navios naquela mesma manhã, mas tranquilizou os viajantes afirmando que não havia perigo algum, porquanto o submarino tinha prosseguido em direção ao Ocidente.
Todos a bordo acreditaram no marujo. Penso que, dez minutos depois, haviam esquecido o perigo de serem naufragados. O “Sussex” continuou firme no seu curso em direção ao Leste e ninguém avistava nem barcos nem navios subindo ou descendo.
Às duas e meia desci para almoçar. Na sala de refeitório todos falavam de negócios ou de coisas insignificantes. Contudo, ninguém dizia mais nada sobre os naufrágios daquela manhã.
Assim que concluí minha refeição, subi ao convés. Deixei o refeitório às três horas e, atravessando o setor de bagagens, passei pelo corredor que dá para as escadas. Em seguida, pude ver que a bordo havia escritores, artistas, sacerdotes, pastores, irmãs de caridade, capitalistas, comerciantes, trabalhadores e crianças.
Quando subia para o convés, ouvi um barulho assustador, algo parecido com o ribombar de um trovão, e o navio sacudiu com tal violência que julguei tivesse batido contra uma rocha ou havia sido arremessado contra um banco de areia.
Ouviu-se este grito horrível saído da boca de duzentos corações: - Naufrágio! Naufrágio!Todos estamos perdidos! Deus, tende misericórdia de nós! O “Sussex” fora atingido por um torpedo!
Em segundos, alcancei o convés. Procurei por uma bote salva-vidas, porém somente três haviam sido baixados. Só sobrara um e, ainda assim, já estava tão lotado de gente que não me atrevi a entrar nele.
Mas... onde estava o resgate que não vinha? Decidi pular para dentro daquele bote. Enquanto me segurava à amurada, alguém, subindo nos meus ombros, saltou primeiro.
Entretanto, seja porque as cordas estavam inadequadas, seja porque a carga era muito pesada, uma das cordas rompeu-se e todos caíram no mar.
Vi uma mãe agarrada ao filhinho, um senhor abraçado à sua esposa, duas moças segurando-se a uma tábua... e, olhando para longe, vi cerca de quarenta almas lutando, lutando, agonizadas.
Cinco minutos depois, havia apenas quatro homens flutuando.Eles se agarraram à verga do mastro grande da proa, a qual agora nos amparava.
Era a primeira vez na minha vida que senti, diante de mim, a presença da morte. Não havia mais esperança e me preparei para morrer. Ergui a Deus meus pensamentos e comecei a rezar. Todos ao meu redor me acompanharam nas orações.
Ignorava se aquela gente acreditava ou não em Deus. Contudo, o que podia constatar foi que naquele momento a bordo havia livres pesadores. Todos rezavam! Mais ou menos às 5 horas, vimos à distância um navio a vela singrando em nossa direção. E de todos os corações a bordo irrompeu este clamor: “Esperança! Esperança! Deus, tende piedade de nós!”
Durante 20 minutos fixamos os olhos naquele inesperado mas bem-vindo navio. No entanto... o navio mudou o curso e desapareceu! Novamente se dissiparam as esperanças!
A noite desceu sobre nós com sua escuridão entristecedora e, para aumentar a nossa agonia, o mar começava a agitar-se. Nenhum sinal luminoso vinha da praia... Tampouco algum sinal de outro navio! Novamente, me preparei para a morte.
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O relógio dava sete... oito ... nove horas. Nenhum sinal de luz se vislumbrava à distância. Quando já eram dez horas, vimos, muito longe, um navio. Era o “Marie-Thérèse” vindo nos salvar.
[1] ALBINO FERREIRA, Pe. Júlio. An English method. 14th edition. Oporto: Portugal, 1939, p. 370-373).
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