quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Entre o "diário perdido" e a recuperação pela memória






                  Cunha e Silva Filho



              As memórias  são construídas entre o perdido  e relembrado. Ao escrever suas memórias o autor muitas vezes lamenta consigo mesmo porque não havia feito a cronologia dos principais lances de sua  própria  história. Ah, se tivesse  escrito  aqueles lances que tanta significação  teriam no futuro! As memórias, assim, perdem momentos iluminados do ser diante da passagem da vida.  Incidentes que não deveriam ser  apagados mas escritos na velha forma de diários, de um  diário  que  anotasse, ao longo da vida, nomes, paisagens, diálogos, pensamentos, confissões,  divagações sobre as artes, o ser humano, a  existência, aqueles  bons ou maus instantes do pretérito.
            Só na ficção poder-se-ia recapturar todo esse novelo de fatos através da manipulação livre dos recursos narrativos, das anacronias ou  meramente  pela cronologia  tradicional.  As memórias sobrevivem de perdas e de esquecimentos voluntários ou  inconscientes.
            Aquele encontro com a primeira namorada,  com um grande amigo,  com um professor  que nos encantou,  com  as inúmeras conversas com nossos pais. Quantas coisas  perdidas para sempre  que não podem mais  ser socorridas  pela  capacidade  limitada da retentiva! Que  pena! Perderam-se,  desta forma,  talvez os melhores pedaços  de nossas vidas na infância,  na adolescência,  na vida adulta. O que ficou  foi a súmula incompleta de retalhos do passado. Por essa razão, as memórias são apenas  uma parte que nos vem à tona de forma  involuntária ou  porque forçamos a barra  para que  fatos acontecidos,  diálogos, incidentes e acidentes possam vir  ao presente.
       As memórias não são  apenas  relatos  lembrados, mas  reconstruções  do passado  pela linguagem que,  muitas vezes,  as ficcionaliza a fim  de  preencher os gaps, as ausências,  as impossibilidades  amnésicas.
      A essas impossibilidades  de recuperação do  tempo perdido chamaria de "diário  perdido". Todo ser humano  tem em  potencial  esse "diário  perdido". Seria possível escrever-se  um  tipo de  cronologia  dessa natureza? Creio que não. Mesmo porque quando somos tão  crianças  ainda não estamos   preparados  para botar no papel o que nos aconteceu  há cinquenta anos, por exemplo.  Mas, quanto lamentamos  a perda  do tempo  que vivemos, sobretudo os melhores  dias  de nossas   vidas: a infância e a adolescência. Contudo,  é claro que  esse "diário perdido" levaria o narrador quase a uma reprodução  mais abrangente dos fatos  passados. Já imaginaram um romance  que pudesse  ter acesso a esse  "diário perdido"?
       O mesmo se dá com  as fotos  que não tiraram de nós quando pequeninos. Eu mesmo nunca saberei  como  foi a minha  fisionomia  de bebê, com três anos,  com  sete anos, em foto em    que aparecesse  os meus pais  junto de mim . Hoje em dia,  que profusão de fotos possuem  os novos  pais com a facilidade  permitida  pelos celulares,  pela   internet. As crianças de hoje  não terão, na sua maioria,  esse problema  de  lamentar  as imagens perdidas, nunca  gravadas pelas  câmeras dos celulares,  tabletes etc. 
      Vivemos a época mais intensa das imagens  de nossos corpos, de paisagens, de  eventos, de closes  e  ainda mais  de  filmagens  de tudo e de todos.   Tudo se grava,  tudo  se fotografa. É o reinado do vídeo. Além de o vídeo   nos mostrar a imagem,  ainda  nos permite ouvir a  voz de todos que nele   aparecem.
   Ora, todas essas novidades virtuais serão úteis aos memorialistas do futuro,  que lidarão com  novos  instrumentos  de recuperação  de  fatos de sua  história pessoal ou coletiva.  Quem sabe, as memórias do futuro serão apenas em parte  faladas,  em  parte  vistas.
      Mas, o que me traz a este artigo são as memórias à moda antiga, aquelas cultivadas por escritores, me limitando apenas aos nossos, Joaquim Nabuco,  Humberto de Campos, Gilberto Amado,  Graciliano Ramos,  Álvaro Moreira, Érico Veríssimo.
      No Piauí, já contamos com um bom número de livros de memórias ou que se assemelham a estas, ou mesmo  se  incluiriam em memórias ficcionais. Já formaria  assim um corpus de matéria memorialística para pesquisadores. Quem se aventura?
      Só para citar os autores que me chegaram ao conhecimento: Eleazar Moura (Amarante antigo – alguns homens e fatos; Nasi Castro (Amarante – um pouco da  história e da vida da cidade, Amarante – folclore e memória; Cunha e Silva (Copa e cozinha);Homero Castelo Branco (Ecos de Amarante); Celso  Barros Coelho (Tempo de memória, Política - tempo e memória); Olemar de Souza Castro (Minhas duas pátrias, Sob o sol  poente); Assis  Fortes (Memórias de mim, histórias dos outros); Francisco Miguel de Moura (O menino quase perdido); William  Palha  Dias (Memorial de um  obstinado); José Ribamar  Garcia (E depois, o trem); Jesualdo  Cavalcanti Barros (Tempo de contar); Elmar Carvalho (Confissões de um juiz);Geraldo Almeida Borges (Província submersa – crônicas Teresinenses (século XX).
     Na impossibilidade deste tão ansiado "diário perdido",  os autores, todavia,   não abdicam  de seu direito de recordar o que de outra forma seria para sempre  sepultado como matéria  rememorativa, perdendo-se com isso  grandes relatos   de escritores  e  de sua época. Sem obras dessa natureza, empobreceria também, no seu  conjunto, a história literária  brasileira.
     
    



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