sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Saúde pública brasileira







                                         Cunha e Silva Filho


Existem dois tipos de serviços  de saúde no  país: a dos que podem  ter  planos de saúde privada e dos pobres, dos que não podem pagar  um  plano e, portanto,  têm, caso adoeçam,  o atendimento em geral  precário  do  serviço  público.
Há algumas décadas,  a saúde  pública  brasileira  tinha  alto  padrão de atendimento, com médicos  competentes  e de larga experiência, formados  por  universidades   estaduais e federais, com professores   bem-formados, com  ingresso através de  rigorosos exames  de vestibular aos cursos  médicos. Ainda não havia  a proliferação de faculdades de medicina  de baixo nível de formação, como em geral acontece com  grande parte de   faculdades de medicina  particulares  espelhadas  pelos grandes centros  urbanos
  Criei  meus filhos  sendo  tratados  por médicos do setor  público, o antigo INPS. Ainda nem se falava em planos  privados. Com o tempo,  o atendimento  da medicina  pública foi caindo de nível  até chegar  a esta  estagnação deplorável  em que se encontra  hoje,  com   hospitais  mal equipados,  mal administrados,  onde falta tudo, até  os bons médicos de outrora.
Para ser um bom   médico,  o candidato tem, primeiro, que ter vocação,  habilidade  para lidar cm   pessoas doentes,  estar bem  informado   do desenvolvimento da medicina  dos países adiantados,  ser estudioso  da bibliografia   atualizada  no campo da medicina, realizar  cursos   de aperfeiçoamento  na sua área,  frequentar congressos  nacionais  e internacionais e ter  um espírito  devotado  à nobre profissão  de médico, de médico que  nem de longe  possa ser   imbuído do sentido  de lucro, de mercantilismo  ao lidar  com a sua  profissão.
Pessoalmente,  já conheci  bons médicos,  pacientes, cuidadosos,  empáticos que na verdade se interessam  pelos pacientes e desejam  curá-los, que é o objetivo  mais caro ao  médico, sem o qual  ele não estará eticamente  cumprindo à risca o juramento de Hipócrates (460-370 a. C.), o pai da Medicina.
Se alguém pretende  cursar medicina para fazer  da profissão  somente  riqueza não se  tornará  nunca um médico à altura do juramento que faz no ato de cerimônia de formatura.A vaidade, a presunção, a falta de afabilidade junto aos pacientes jamais levarão  ao aperfeiçoamento   do médico. Além disso, deve ter   profunda conduta ética,  rigor  em dar o diagnóstico, responsabilidade,  integridade e comprometimento com  a vida  dos que estão  aos seus cuidados. 
O país precisa com urgência, - atenção ministério da Educação! - de repensar  a formação  dos médicos  brasileiros,  só permitindo o ingresso aos cursos  de medicina  àqueles  que estão  intelectualmente  preparados em  todos os aspectos que envolvem a sua formação  científica,  exigindo  a obrigatoriedade de  cada acadêmico  passar pela   residência médica nos melhores   hospitais e  institutos  de medicina, além  de um  criterioso  exame de provas  orais e prática  junto ao CRM.  Não pode haver  leniência  com  uma profissão  que  lida com a vida humana.
Ontem, leitor,  uma criança de quatro anos  faleceu em São Paulo. Ela estava com apendicite já em ponto de ser operada, o que lhe foi  negado por  culpa da negligência e irresponsabilidade médica, que não lhe deu  diagnóstico  correto, numa   peregrinação  em quatro  hospitais. Em cada um,  a criança  não  conseguiu  fazer  exames  adequados  para  conclusão  do que sofria. Eis aí mais um  caso flagrante do descaso  de médicos  e de gerenciamento  hospitalar  provocando  óbito  desnecessário, numa ação  criminosa  contra os direitos  de uma criança que não são  respeitados no país.
Configura o incidente um crime  contra  um inocente por parte  de profissionais  e, por extensão,  das autoridades  responsáveis  pela saúde  pública  brasileira. A amargurada   confissão  do pai de Anderson,  este é o nome  da criança, é das mais pungentes que ouvi nos últimos  anos. Chorando,  o jovem  pai de Anderson, compartilhando  sua  dor imensa com a jovem  mãe da criança, é o retrato  de um  protesto   justo  por uma situação  de impunidade e de solidão  vivenciadas  pelo casal. O choro  e as palavras  de indignação  contra   o abandono  a que foi relegada a criança  nos recintos dos hospitais sem que em nenhum deles  fosse dado  o diagnóstico   correto para o mal-estar  do pequeno Anderson,  é mais um lastimável  número de uma elevada e sempre crescente  estatística  de  mortes de crianças e adultos por falta de  atendimento  na rede pública  do país.

Enquanto  os pensamentos  atuais do governo federal, à frente a Presidente Dilma Rousseff, se voltam prioritariamente para os gastos   astronômicos  com  Copa Mundial, com as  Olimpíadas,  com  viagens  a países  a preço de ouro, com  hospedagens nos melhores  hotéis do mundo e com  outras nababescas  despesas com alimentação  em  luxuosos   restaurantes para atender  regiamente  a enorme comitiva  presidencial,  a população  modesta do país  morre à míngua  por falta  de bons médicos,  de bons hospitais e de respeito pelo  brasileiro. Não há como  fugir ao truísmo: -Este não é um país sério.     

domingo, 26 de janeiro de 2014

O assassínio de um professor de inglês




                                       
                                                          Cunha  e Silva Filho


                 Não anotei  o nome dele. Sei que tinha  45 anos, um jovem ainda na flor da mocidade  produtiva, morto a tiros  por uma bandido  “cruel.” Estou  usando uma palavra de um delegado  onde  o fato  deplorável  foi registrado. Este marginal, com antecedentes criminais, ou seja,  era um delinquente, um  menor há um ano.
Segundo  declarações do delegado,  este energúmeno, que  tem atitudes  frias e uma  fisionomia  na qual  os  olhos indicam  o que lhe ia  no íntimo de sua alma perdida, aproveitou-se do fato  surpresa e tirou a vida  de quem   estava  no exercício de sua  profissão,  certamente  um professor  eu complementava  seu salário  com aulas  particulares, pois era isso mesmo que  o  mestre de inglês ia  fazer.
Estacionou numa das ruas de São Paulo e,  quando se  preparava  para   deixar seu carro  perto  da casa onde  daria uma aula,   de repente  vê na sua  frente  um espírito das trevas mefistofélicas que lhe exige  o carro e talvez  alguma coisa mais. O professor,  tendo  saído do carro,  num  átimo  de reação  mecânica,    não  se intimidou  e entrou  em luta corporal com  o meliante, predador  noturno  da vida  paulistana,  mais uma dessas  feras  (des)umanas espalhadas atualmente  pelas  ruas  da  trepidante  e sempre  perigosa   capital   paulista, a maior  cidade  da América  Latina.
 Lutou  por pouco  tempo com  o facínora que, talvez mais  habilidoso  e sendo mais  novo,  levou a melhor,  acertando, creio que à queima-roupa,  o peito e outras duas   regiões do corpo  do  jovem  professor. Foram, se não me  engano,  cinco tiros. Morte  imediata. 
Uma vida  encurtada  pela  impunidade  brasileira, pelo  código  penal superado,  pelas brechas    imorais de  nossa  legislação,  pela  desídia  de  nossa estrutura  jurídica de todas  os níveis da Federação e pela ausência  de medidas  governamentais  decisivas  a favor de mudanças    concretas   e duradouras. São   
Paulo agoniza não só nas  águas tempestuosas das inundações anuais e  mortais, atingindo, sem piedade,  sobretudo  as camadas  desfavorecidas da população,    mas também  no crime  impune  e  contínuo.
São Paulo, por suas qualidades,  que são  muitas,   e por seus defeitos  que  igualmente são inúmeros,  abriga   cotidianamente  todo  tipo de crimes e selvagerias  praticadas contra  seus  habitantes que,  além disso,  ainda têm  que enfrentar  uma  vida  árdua nos transportes  precários.
 Com demagógicas promessas de seus  governos  estadual e municipal de melhorarem    a qualidade   da educação pública sempre adiada, com    seus hospitais  sem condições de atender  à demanda gigantesca   de  milhões  de seus habitantes, com seus   moradores  pobres  sem  teto  ou  vivendo   em  favelas  da periferia, fruto dos  desníveis   sociais,  São Paulo  atingiu  seus limites  de resistência e, assim , clama  por mudanças  inadiáveis sob pena  de  ter que  enfrentar  a indignação   da sociedade.
São Paulo  e seus  quatrocentos e sessenta anos  de fundação em  25  de janeiro de 1554, tendo à frente a colaboração decisiva de dois eminentes  padres jesuítas, Nóbrega e Anchieta, o  Apóstolo  do Brasil. A São Paulo de hoje, ameaçadora  e a do passado, dos primeiros anos  do século anterior.  Triste   contraste!  Esta  última, mais  cordial,  mais  acolhedora,  praticamente  em seu  estado  puro de  província com  problemas, sim,  mas  de  diferente magnitude  e, sobretudo, sem  as agruras   causadas  pela   super-densidade  populacional sem freios, sem  o trânsito   caótico, os  seus ciclópicos engarrafamentos,  os grandes males  sociais que  deslustram  as suas origens histórico-religiosa-culturais, o seu   progresso mais  ordenado, a potência de sua  indústria e comércio, sua vida  universitária, seus centros de estudos, seus museus, enfim,   a sua condição de carro-chefe da economia  brasileira.
             Todo esse imbróglio de   condições  positivas e negativas  perdeu seu controle original,  sua  estrutura   de  grande urbe,  mas  bem  administrada, com   políticos mais   conscientes  de suas funções  públicas  e não  frutos  dos conchavos, compadrios na seleção dos candidatos aos  governos  estadual e municipal  e  truques baixos da  política nacional.
          Além disso,   todos  esses  erros imperdoáveis  das instituições  públicas são  causas  que propiciaram  a invasão do crime galopante, de  marginalidade    certa de que  não será  punida, seja  por  ser composta de menores  meliantes, seja  por  ser  formada  de adultos    irrecuperáveis,  portadores de cérebros  degenerados que não  podem   estar  em  convívio com  a  sociedade.
      São   autores  de  crimes  hediondos,  abomináveis,  de  extrema crueldade  e  frieza de sentimentos. São  do tipo   que  acabou  com a vida  do jovem  professor de inglês,  deixando  uma  viúva  para sempre psicologicamente  destroçada a cuidar  de um bebezinho e de um  filho  pequeno. Mais um número na estatística  da cidade do crime e da  ausência  de punição  de uma espécie que recomendaria sem restrições: a  prisão  perpétua. 


sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Mais uma vez a Síria







                            Cunha e Silva Filho


                Apesar de que Bashar al-Assad,  ter sofrido  tantos  reveses dos  revoltosos,  o tirano  ainda  assim  quer se manter  no  poder. Esse comportamento  é bem  típico   dos  governantes autoritários. O que mais  anseiam  é eternizar-se no poder,  a qualquer  custo,  ainda que   este  signifique o repúdio de parte  considerável da  população  síria.
                    O que  impressiona  aos  observadores atento  pelo mundo  afora  é que  Assad conte a seu favor  com  os seus  seguidores e entre estes  há no  Brasil  pessoas  que  o  têm até na conta  de herói da Pátria -  essa  pátria   ensanguentada  com mais de  cem mil mortes  provocados   pelo conflito que parece  não ter fim.
                 O Secretário  de Estado de   Barack Obama,  John  Kerry, que me parece ter   bom  tino   diplomático, uma figura  física   que me lembra  os homens  públicos    do tempo do grande  Lincoln,  ofereceu  uma  proposta  que,  a meu  ver,  acena para  uma passo  firme  a ser dado  contra o ditador e seus crimes nefandos  contra a humanidade: um  governo  de transição  deixando  Assad fora de qualquer  pretensão  de  nele  tomar   parte. Essa proposta   sinaliza  uma posição do governo  norte-americano  segundo a qual  não há mais  possibilidade  de   o ditador  permanecer  no governo  sírio.
     O que a diplomacia  da ONU  poderia  fazer  se esgotou  em  termos  de negociações   que   resultaram  em magros  benefícios para o sofrido e  massacrado  povo sírio, hoje   com um contingente de sua  população vivendo  as agonias  de exilados  em  países  que felizmente   lhes abriram  as  portas  da liberdade.
  A cidadania  síria  foi  destroçada,  cidades importantes, a própria capital,  tornaram-se  em parte ruínas, cidades-fantasma  com seu povo  sepultado  pela  infâmia  desse mal  que  se alastra  pelo  mundo em forma  de conflitos  armados,  corrupção de governantes, fome,   pobreza e calamidade  nas suas economias. O cenário desses quase  catorze anos do século  21  e, agora agravado  com   as atrocidades cometidas  pelo  governo da  Ucrânia,  com visíveis  possibilidades  de um “banho de sangue” ente  concidadão,  está longe     da paz que tanto  almejamos  para  a comunidade   internacional.
 O que sempre  me  deixou  intrigado  nos desacertos   de governos   autoritários  e  sanguinolentos  como  é  o exemplo  mais lancinante da Síria é  o fato de que cidadãos da mesma  ou  de nacionalidades  diversas  pátria  não tenham  discernimento,  racionalidade   de distinguirem  a barbárie  da civilização. Me recordo de algumas  palavras de um jornalista  brasileiro  correspondente no  exterior: à altura  do progresso do  nosso  século  não se pode  entender  como   os  povos   ainda  teimam  em  optar  pelo lado  da beligerância  quando   toda a  História da Humanidade   tem dado  lições  insofismáveis dos horrores  causados  pelas  duas  guerras mundiais e  suas consequências deletérias  que deixaram   enormes cicatrizes  no corpo e na alma   de tanta gente.

            Os grandes  feitos  dos  homens de bem,  dos  artistas, dos cientistas,  dos  pensadores, dos filósofos, dos sociólogos, dos antropólogos, dos políticos, economistas ,  dos escritores, dos poetas, dos compositores musicais,  dos  dramaturgos,  enfim,  de pessoas  que lutam  pela  paz através de seus  vários meios  e possibilidades não podem. ser  deixados  no  esquecimento. Se os governos  autoritários, prepotentes não  repetissem  os mesmos atos   de  covardia  e de  desamor  ao  próximo em tantas gerações  do Passado,  o mundo   teria sido  outro. A única via   que nos  leva  à paz  e à dignidade  pública , em qualquer  parte  do  Planeta  Terra, chama-se  respeito ao ser humano e, para isso,   é dever  de todos  exercer com convicção  uma postura  ética  aprendida sobretudo  com  a Educação e o conhecimento humano  em todas as áreas   de desenvolvimento..

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Tradução do poema "I Died for Beauty", de Emily Dickinson (1830-1886)






I Died for Beauty


I died for beauty –but was scarce
Adjusted  in the Tomb
Whe One who died for Truth, was lain
In an adjoining Room –

He   questioned softly “Why I failed”?
“For  Beauty”, I I replied-
“And I -  for  Truth-  Themselves are One-
We  brethren, are”, He said-

And so, as Kinsmen, met a Night-
We talked between the Rooms-
Until the Moss had reached our  lips-
And covered up- our names-


Por amor à Beleza  Morri

Por amor à Beleza morri- porém mal
Ao Túmulo  me adaptei
Alguém  que  pela Verdade morreu.
Num Quarto ao lado jazia-.

Com suave voz  indagou-me“ Por que fracassei”?
“Por amor à Beleza”, retruquei-
“E eu- pela   Verdade- As duas uma  unidade  são-
Disse ele-  Irmãos somos”

E assim, enquanto  Parentes,  nos defrontamos  com  a Noite-
Entre dois   Quartos  conversando-
Até que nosso lábios  o Musgo alcançaram-
E- nossos  nomes sepultaram

                                                                       (Trad. de Cunha e Silva Filho




domingo, 5 de janeiro de 2014

A moça do livro



                                 Cunha e Silva Filho


                 Estava numa das muitas  filiais de uma  grande  farmácia na Praça  Saens Peña, na Tijuca, velho e  super-povoado   bairro da Zona  Norte do Rio de Janeiro.  Era domingo  de sol a  pino. O relógio digital da  praça registrava  38 graus. Calor  infernal. Até parecia que  andava  pela Av.  Frei Serafim, em Teresina  em pleno  meio-dia de verão brabo.
Dentro da farmácia,  com ar-condicionado, aquele  calor  insuportável. Desde criança,  quando  com mamãe ia ao Mercado  Velho, na Teresina da  primeira metade dos anos cinquenta do século  passado,  me  queixava do “calor  danado.”           
“Que caiô  danado”!  -  repetia quase  virando  um  estribilho  pra mamãe que nem  estava  ali  para  o meu  desabafo  de  criança irritante. O verão  carioca  semelha, na temperatura, ao calor  infernal  de Teresina. Só de uma  coisa  gosto  do calor: ele me permite  tomar  um  banho  de chuveiro demorado, gostoso,   refrescante, animador e sem ter que ligar  a água  quente.
Enquanto  Elza e Alexandre  compravam  remédios enfrentando  duas filas,  uma para  ser atendido e outra  para  aguardar a chamada  da vez  no caixa, eu  olhava  tudo  ao meu  redor,  pessoas,  as prateleiras  de remédios  bem arrumados, As  molduras  das fotografias em tamanho médio  perspectivando instantâneos de  diversas  décadas  do  século  passado  mostrando  como  era a  Praça  Saens Peña. E como  era diferente em tudo: nos prédios, hoje  desaparecidos,  no coreto  que lá havia em  décadas passadas, nas linhas de trilhos de bonde que  cortavam  ruas  tão   tijucanas  como  a Conde de Bonfim,   a Barão  de Mesquita,  a Avenida  Maracanã, os prédios  onde  se localizavam  cinemas,  os bondes cheios de gente  de  roupas    de  épocas   atrás,  algumas sentadas,  outras,  em pé  nos estribos   dos bondes,  uma  multidão de  anônimos hoje talvez   “dormindo  profundamente”  como  no  belo  poema   de Manuel Bandeira(1886-1968). 
Com um olhar apurado,  procurava  divisar  alguma  pessoa  em particular,  a fim de poder  tirar alguma   impressão  do  olhar  dele ou dela. Nas ruas  daqueles   tempos  passados,  viam-se  outras  pessoas  como se delas quisesse eu  também extrair  alguma  informação  do que  pensavam  no momento  em que foram   fotografadas  sem serem  notadas,    anônimos seres  que  jamais  conhecemos  de quem   nunca saberemos   o que foram, o que fizeram,  como  viveram aquelas épocas, o que fizeram  de bom  ou errado,  o que pensavam  da vida e do  futuro. Jamais saberemos.
 Entretanto,  sinto  uma grande e misteriosa  atração  por  esses anônimos de  anos  passados: 1910, 1915, 1927 (Papai,  neste ano ainda  estava no Rio de Janeiro),   1950, 1970. Casas,   contornos das ruas,  formas  de vida,  sociabilidades   diversas, modas,    estilos   de vida, estilos diferentes   de música,  de  dança,  de  teatros,  de filmes. Tudo  passou, ou  melhor,  quase tudo  passou,  pois ainda  alguns traços  de  alguma coisa do passado   teimam em  sobreviver  no  presente.
Inopinadamente,  meu pensamento  suspendeu-se e comecei a   olhar para uma moça  pequena,  clarinha,  de  cabelos  em estilo   dos anos  30 daquelas atrizes    do cinema americano ( ao mesmo tempo, em imagens sobrepostas, aquela moça    me lembrava alguma coisa, não exatamente   pelo corte de cabelo,   das   atrizes  da era  do cinema  mudo,  dos primeiros   filmes de Chaplin, 1889-1977),  por sua vez, copiado  pelas  brasileiras  da mesma  época. É só olharmos   para nossas  avós, claro, da minha  geração   pelo menos.
Aquela  moça  mignon,  parecida  com uma francesinha   da “Geração  Perdida,” ali  entrava  na farmácia. Mas, entrava  com um arzinho  desconfiado,  alheado de tudo e de todos. O mais  curioso  que nela   observei  foi que andava com os olhos grudados num  livro  pequeno  e aberto pela metade.  Caminhava,   com passo  leves,   e não deixava  de ler  parágrafos   do livro.  Acredito que  era um   romance,  ou  um livro de contos. Pela disposição que  mal   avistei das páginas abertas,   não era  poesia  não, nem tampouco  poesia  concreta,. Era um livro que  segurava com   muita atenção  e com muito   cuidado.
Seu vestido era fino, bem discreto, multicolorido e lhe caía bem  no corpinho  frágil. Ao  reparar no seus  olhos,   vi que não era tão  novinha e tinha  olhos cansados   e   meio arregalados, o que  lhe tirava um  pouco de sua   meiguice geral. O diabo era que ela não dava  bola pra ninguém, mesmo  quando  eu  tentei fixar meus  olhos   nos seus. Ela fingiu que não me viu, ou talvez  não me  viu  mesmo. Não obstante, continuei  seguindo-lhe os passos e ela  prosseguia  lendo o livro  e  andando por boa  parte da farmácia, que,  por sinal,  é ampla  e elegante. Passou  pela  filha  de compra,  pela de pagamento, mas sempre lendo o  livro  absorta,  alheia a  tudo. Parecia aquelas  menininhas   vidradas   nos   livros de  Harry Porter que não  o largam  enquanto  não terminam de ler  a última  página.  

Tendo   pago  a conta com  cartão, tendo  digitado a senha,  ainda  pude  ver que sua atenção maior era  o livro e não os números  do cartão  que  digitou  mecanicamente.  A moça do livro,  então, encaminhou-se – lendo avidamente, sofregamente,  o livro até  sair  da farmácia  e  perder-se na multidão.