domingo, 29 de janeiro de 2012

Governos improvisados: o caso de desabamentos no Rio de Janeiro

Cunha e Silva Filho



Não é de hoje que o estado do Rio de Janeiro carece de governos competentes, de administradores sérios eleitos para disseminar o bem social, corrigir as falhas de governos passados e mostrar o descortino de uma figura de político respeitado e querido pela população fluminense. Desde, pelo menos, Brizola, o estado do Rio tem tido os piores governadores de sua história. O mesmo se poderia afirmar dos prefeitos. Ora, leitor, governador e prefeito que deveriam passar grande parte do seu tempo dedicando-se ao trato da coisa pública, ao contrário têm uma sede enorme para as viagens ao exterior. Com isso, não podem estar atentos a imprevisíveis acidentes na cidade do Rio de Janeiro e, por extensão, no estado todo.
Apesar de tantos governantes medíocres que só mal fizeram ao governo do Rio de Janeiro durante décadas, houve uma exceção, a do governador Carlos Lacerda, o qual, conquanto falhas podemos nele apontar como político, realizou obras importantes para o estado que dirigiu com competência e sabedoria. Homem preparado intelectualmente, revelou-se bom administrador da coisa pública. Não fez papel feio no governo, soube se conduzir como homem público durante seu mandato. Foi operoso e deixou marcas de um grande político.
O prefeito, o governador têm que estar presentes, junto da população, nos momentos mais difíceis, como são as tragédias. Um delas atingiu há três dias o coração do Rio de Janeiro, o centro da cidade. Os desabamentos, na Rua Treze de Maio, na Cinelândia, ao lado do Teatro Municipal, foram ocorrências pungentes e desoladoras principalmente pelas perdas de vidas que provocaram. A par disso, os desabamentos desfalcaram profundamente o conjunto arquitetônico-histórico do Centro da cidade. Três prédios antigos, em construções feitas ainda nas décadas de trinta e quarenta, viraram apenas escombros, fumaças, água enlameada e um vazio imenso no coração dos habitantes do Rio.
Os desabamentos não foram obra de terroristas. Nem mesmo sabemos se houve explosão de gás. As conclusões não são até agora concordes. Os especialistas falam que os prédios ruíram em decorrência de uma obra irregular que estava sendo feita em alguns andares do prédio mais alto, de dezoito ou vinte andares. Este prédio, por sua vez, desencadeou o desabamento dos outros dois prédios mais baixos. Os desabamentos aconteceram à noite, cerca das 8: 00h, ou seja, quando um número relativamente pequeno de pessoas ainda neles.se encontravam trabalhando, ou fazendo alguma coisa diferente. O certo é que as vítimas fatais ainda tentaram correr para fora das salas, ganhar os corredores, possivelmente tentando sair pelas escadas. Foi quase inútil esse esforço, porquanto o prédio mais alto, em questão de poucos instantes, começou a perder o equilíbrio, desintegrando-se todo e levando de roldão os dois prédios vizinhos.
Não podemos deixar de associar, em alguns aspectos, este acidente trágico com as Torres Gêmeas americanas em Nova Iorque, o qual ficou conhecido mundialmente como o fatídico 11 de Setembro. No caso brasileiro, na Cidade Maravilhosa, um jovem casado, antes do desabamento, havia usado o celular para se comunicar com a esposa que se encontrava num dos prédios. Conseguiu por um instante falar algumas coisa para ela, mas de imediato o celular ficou incomunicável. Era justamente o início da tragédia. Depois de dois dias de escavações feitas por estes gloriosos bombeiros, soube-se que a esposa daquele jovem se encontrava entre os mortos. Este é só um caso entre outros que vimos na tevê - relatos de tristezas e infinita dor dos que perderam seus entes queridos, amigos, colegas de trabalho, chefes de seções etc. A cidade está enlutada, cheia de lágrimas, angustiada, desesperançada, órfã.
Um transeunte, diante da tragédia, desabafou: “- É uma vergonha, falta de respeito e previdência das autoridades no que diz respeito à fiscalização dos prédios do Rio de Janeiro. O transeunte, indignado, culpou o poder público pelo que aconteceu e pelo que pode a vir acontecer caso não sejam mudadas as regras de fiscalização, de vistoria da prefeitura do Rio de Janeiro e de órgãos do estado fluminense.
O que presenciamos agora com esta tragédia serve de sinal para que o povo do Rio se una e exija dos governos municipal e estadual uma resposta concreta e tecnicamente fundamentada sobre as razões dos desabamentos e sobre quem pode recair a responsabilidade da tragédia. Os culpados têm que ser punidos. Não é possível que terminem as investigações e laudos dos acidentes sem que apareçam os responsáveis. O dolo cabe a alguém ou a alguns e o poder público, por seu turno, tem uma parcela de responsabilidade uma vez que o fato acontecido está relacionado aos órgãos competentes de fiscalização.
Nos Estados Unidos, em Nova Iorque, por exemplo, a fiscalização é rigorosa, a multa por infrações de irregularidades em reformas e obras de prédios é também altíssima. A prefeitura dispõe de um serviço notável de armazenamento de informações sobre as condições físicas externas e internas dos prédios nova-iorquinos. Por que o Rio de Janeiro, o país, não copiam toda esta infra-estrutura e know-how já testados e que têm dado certo. Não custa nada ao prefeito do Rio, aproveitando as suas constantes peregrinações pela terra do Tio Sam, ao invés de visitar a Disney, ter uma conversa com o prefeito de Nova Iorque. O governador fluminense também deveria dar exemplo neste sentido quando das suas repetidas permanências no exterior.
O Rio de Janeiro - cidade e estado - está cansado de tanta inércia dos setores públicos diante de alguns sérios problemas que estão exigindo equacionamentos de soluções impostergáveis: a saúde, os hospitais, a segurança e o respeito ao patrimônio arquitetônico do Rio de Janeiro, da cidade, do estado, os quais, nas duas instâncias de poder, estão sem leme.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Um poema de Edna St Vincent Millay (1892-1950)*

On hearing a symphony of Beethoven



Sweet sounds, oh, beautiful music, do not cease!
Reject me not into the world again.
With you alone is excellence and peace,
Mankind made plausible, his purpose plain.

Enchanted in your air benign and shrewd,
With limbs a-sprawl and empty faces pale,
The spiteful and the stingy and the rude
Sleep like the scullions in the fairy-tale.

This moment is the best the world can give:
The tranquil blossom on the tortured stem.
Reject me not, sweet sounds! Oh, let me live,
Till Doom espy my towers and scatter them

A city spell-bound under the aging sun.
Music my rampart, an d my only one.


Quando ouço uma sinfonia de Beethoven


Maviosos sons, não parem - deslumbre de música,
Não me abandonem outra vez no mundo
Nestes sons só existem paz e magnitude,
A humanidade, plausível, claro, o seu objetivo.

Com o seu ar benigno e fino encantado,
Com membros espraiados e rostos pálidos e vazios,
O rancoroso, e o avaro e o grosseiro
Dormem qual lavadores de pratos em contos de fadas.

Esta é a melhor hora em que doar-se pode o mundo.
No caule atormentado o tranquilo desabrochar.
Maviosos ritmos, não me abandonem! Deixem-me viver.
Até que minhas torres a Morte vislumbre e as espalhe,

Sob o sol envelhecendo, uma cidade fascinada.
A música, minha salvação, e nada mais.

(Trad. de Cunha e Silva Filho)


Leitor: Dedico esta tradução aos que morreram no desabamento dos três prédios da Rua Treze de maio, Centro do Rio de Janeiro, neste final de janeiro de 2012.

terça-feira, 24 de janeiro de 2012

O triste destino das livrarias e do próprio livro

Cunha a e Silva Filho


A era digital veio para ficar, com todos os seus traços benéficos e maléficos. Agora, os seus primeiros golpes se voltam para o papel escrito. Não respeitou os antigos, nem a chegada da imprensa graças a Gutemberg. Pergaminhos, nem se fala. Tudo virou História e museu.
Agora, o que impera é o monitor, as telinhas dos mil gadgets da tecnologia de ponta Aos poucos, nos vamos acostumando com os novíssimos tempos de uma modernidade que se eterniza e dá as costas para o tempo e as divisões múltiplas culturais, os períodos, os anos, os séculos, as eras, o calendário, o relógio. Pra que agora se preocupar com a ampulheta, se temos, diante de nós, o tempo intemporal, as galáxias num universo que, segundo os cientistas, cresce a passos largos (ou a passos lentos?).
Não me importo com a objetividade de afirmações pouco objetivas. Sei dos meus limitados conhecimentos racionais. Quero, antes, a sensibilidade, moeda forte que anda esquecida nos corações humanos. É feio, é insensato, coisa de mulher alguém, em tempos correntes, mostrar-se sensível, sentimental, amoroso, delicado. Iriam tachar esse “alguém “de pouco viril ou de outros epítetos preconceituosos.
Esta notícia que nos vem pela imprensa – que ironia das coisas! – de que o e-book vai tomando o lugar privilegiado do livro impresso vem como uma bomba na cabeça dos bibliófilos e bibliômanos, dos bookwoms. Coitados de nós, que amamos tanto o pegar num livro, folheá-lo, fazer anotações a lápis nas margens, sublinhar o que nos chama a atenção, sentir o cheiro do papel, velho ou novo, ver a capa, tocá-la, ver as suas cores, as ilustrações, a contracapa, as orelhas, senti-las materialmente, ver o tamanho dos tipos impressos, examinar o livro em todos os seus aspectos físicos, ângulos, levá-lo para a cama, para o sofá, para um canto recolhido da casa, buscá-lo na prateleira, ver-lhe a lombada. Ah, nada mais agradável do que o livro impresso! Nada mais precioso do que ter uma biblioteca. Que solene! Amei sempre as bibliotecas, as particulares, as públicas. Não sei como seria o mundo futuro sem a condição secular do livro impresso.
Na minha visão profética ( quanta audácia minha!), vejo seres mecanizados, apressados, sobraçando e-books, insípidos, sem requinte, sem nobreza, sem linhagem, sem nada. Lá estão no futuro aqueles homenzinhos abrindo seus aparelhinhos digitais, lendo as obras dos grandes escritores de todos os tempos ou de nenhum tempo, os bons, os médios, os ruins, os best-sellers, satisfeitos de seus livros virtuais, somente preocupados com o sinal eletrônico avisando-os de que, a qualquer hora, a bateria acabará. Mas, há a eletricidade, a energia, para recarregá-lo em algum lugar onde exista um tomada. Já o livro impresso prescinde de tudo isso. Se com ele tivermos cuidados, dura muito tempo, até séculos, ainda que, como os seres humanos, envelheçam e se estraguem.
Ontem, vi na tevê e, depois, no jornal, que em Nova Iorque, as livrarias estão fechando as portas, ou seja, como dizia o aviso nas portas das livrarias: “... out of business”. Oh, triste destino das livrarias. Aqui no Rio de Janeiro, uma conhecida livraria portuguesa, a Camões, está fechando, ou já fechou as portas. Lamentável! Um proprietário de sebos no Centro do Rio me havia dito pouco tempo atrás que os sebos e as livrarias estavam diminuindo. Boas livrarias, como a Martins, também fecharam suas portas na filial do Centro carioca. Novos tempos, novos problemas.
É bem provável que o livro impresso, se resistir no futuro, será adquirido só por milionários dado o altíssimo preço que terão. Entraremos na Idade Média das publicações, só acessíveis à nobreza.
Assim anda a roda do tempo. A força da maioria prevalecerá. Para os leitores do futuro serão os e-books tão normais quanto para mim e outros agora são as obras impressas. Nos tornaremos pré-históricos para tais leitores. “O quê, livro de papel, que é isso, quando houve esse tempo?,” refletirão atônitos os leitores dos futuro.
As grandes bibliotecas de agora virarão novas alexandrias, só que digitalizadas. No entanto, os velhuscos livros do passado, ainda atualmente existentes, durante algum tempo indeterminado do futuro, deixarão de existir. Não resistirão ao tempo devorador da matéria.
Não estaremos vivos para conferir tudo isso, nem os que nasceram agora. Seremos passado como o são os gregos antigos, os latinos, os povos do Oriente. A História, esta “mestra da vida” segundo Heródoto, será armazenada em “ bibliotecas” gigantescas digitais, que, por sua vez, tomarão outros espaços, tal como as bibliotecas do nosso conhecimento, porque tudo tem limites, até para caber a História da Humanidade.

Nota: Texto melhorado após cuidadosa revisão do autor.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Uma estreia na literatura piauiense

Cunha e Silva Filho



Leio a última página do romance Reflexões de uma cadela vira-lata de Rivanildo Feitosa (Rio de Janeiro: Editora Mirabolante, ilustração de Fernanda Barreto e orelha do escritor piauiense José Ribamar Garcia,. 2011, 287 p.). Segundo informações que colho da segunda orelha, com foto do autor, vejo que o estreante atua no meio jornalístico de Teresina, tem 39 anos e nasceu em Pio XI, Piauí. Nada mais sei sobre o autor.
Costumo afirmar que o Piauí possui um número reduzido de ficcionistas, mesmo contando com os autores do passado. Portanto, esta é mais uma razão para que o crítico se sinta estimulado com a presença de mais um autor no gênero.
O último autor piauiense sobre quem escrevi foi o Dílson Lages com seu romance O morro da casa-grande, uma outra estreia que mereceu os elogios da crítica especializada.
Reflexões de uma cadela vira-lata narra a história de uma cadela com traços de personagem picaresca. Seu nome, Sabiá. Sua ambição maior: tornar-se uma mulher com todos as qualidades e os defeitos de uma bela mulher, cuja obsessão que a acompanha está profundamente enraizada no coito, num ímpeto insaciável que não tem tamanho . Este é o mais dominante leitmotif da narrativa.
De origem desconhecida, desde os primeiros meses de vida, Sabiá vive como andarilha, transpõe limites de municípios e vai dar numa cidadezinha de estranho nome, chamada Sem Nome, que acredito, não existir senão no universo do imaginário, fica perto de outra cidade piauiense - Mármoré, que, confesso, não sei se existe no mapa do Piauí ou se o nome é mais uma invenção do autor.
Ficção, antes de tudo, plena de personagens circunstanciais, a ponto de o leitor se ver às vezes confuso em nomeá-los e localizá-los no evoluir da fabulação, a história desta cadela vira-lata que se queria mulher diante dos homens sobretudo, dessa bem urdida criatura ficcional, concentra em si todo uma quadro múltiplo da realidade humana, sendo, por isso, de natureza proteica, ser ambivalente que, numa comparação aproximativa, semelha sair da tela de um filme em quadrinhos onde falam e agem animais de mistura com humanos, de tal sorte que, no conjunto, Sabiá torna a narrativa permeada não apenas da ficção tradicional, mas sobretudo de um universo imaginário que mistura harmoniosamente a prosa e a poesia.
Reflexões de uma cadela vira-lata, excetuando naturalmente seu aspecto pós-moderno ficcional, não é novidade em termos do aproveitamento do animal irracional que, no domínio das literatura de língua portuguesa, remonta a autores medievais, à fase dos Cancioneiros, a fabulistas da antiguidade grega e latina, a autores franceses como La Fontaine (1621-1695)
A melhor demonstração desse elo não perdido se encontra na alusão à cadela Baleia, personagem animal magistralmente criado por Graciliano Ramos (1892-1953), o qual a ela dedicou todo um capítulo de Vidas secas (1938). Atente-se, a propósito, para a seguinte citação da personagem Sabiá colada à voz do narrador: “ - Vida sofrida inspira livros e novelas - lembra ainda sem fama nenhuma, somente a de cadela-ladra e saliente.” (p.86).
Fabula? Alegoria? Literatura fantástica? O que seria a narrativa em questão? Apontaria uma sugestão: é um romance, talvez, em alguns traços, na linha do que já se está chamando “romance pós-pós”, como referência aos romances brasileiros publicados a partir dos anos de 1990 (Veja-se o interessante artigo “O pós-pós: literatura brasileira no século 21”, estudo conjunto de Carina Lessa, Cristina Amorim, Godofredo de Oliveira Neto e Jorge Marques (JB Ideias, Rio de Janeiro, 03/03/2010).
O romance de Rivanildo Feitosa é uma estreia que, pelos valores estéticos injetados, mais me impele a considerá-lo principalmente pelo que de virtudes ostenta: domínio imaginativo, linguagem moderna e correta (são poucos os senões nele observados com respeito ao uso da língua enquanto mero veículo de comunicação, fora alguns erros de impressão, uso da crase, uso de locução prepositiva, inadequação entre um determinante e um determinado), manejo técnico da narrativa que, no caso, só para considerar o dado do emprego do tempo e do espaço, não sendo linear, se constrói de blocos narrativos, ora para frente (prolepse) ora para trás (analepse) ou mesmo visto no seu todo, num presente de enunciação de complexa feitura.
O tempo, por sua vez, segundo disse, ocorre através de anacronias em narrativa que abrange 52 capítulos (todos com títulos alusivos à peripécia contada, além de ilustrações geralmente referentes ao falo), seguidos de um epílogo (também com que dá a medida da ruptura temporal e espacial da obra) que, em resumo, reforça os limites do enredo, do leit motiv da narrativa e do seu objetivo metaficcional, cujo exemplo é a deslocação do narrador, em toda a extensão da história, da terceira pessoa para um breve relato em primeira pessoa.(Cf. p. 240, capítulo 44), ocupando os dois últimos parágrafos desse capítulo, estratégia narrativa que funciona assim como quebra do ilusionismo narrativo até então empregado.
Não devo deixar de mencionar o fato de que o título do último capítulo não vem numerado, mas apenas com um título que sinaliza para as preocupações do autor com a composição narrativa do romance: “Escrevendo seu início sem fim”, além de finalizar o verso da última página com uma ilustração de uma mulher nua em posição de um caminhar primitivo próprio dos irracionais. De resto, outras ilustrações que constam do livro, repito, aludem a cenas de coito ou à imagens fálicas, numa obsessão constante e, de certa forma, desmesurada nos relatos do texto, sobretudo porque abusa da caprologia, o que de alguma forma pode causar no leitor algum efeito negativo em relação ao conjunto do romance. Esse lado erótico da narrativa de Reflexões de uma cadela vira-lata seguramente agradará a alguns leitores que cultivam o gosto das cenas de sexo em romances e a assuntos correlacionados com práticas sexuais desviantes como pederastia, onanismo, sexo grupal.
O que, contudo, salva o romance desse exagero de sexo já mencionado são os recursos de narrativa de que se valeu o autor, realizando um romance que, antes de tudo, tem compromisso com a sua forma estética, enfim, com a linguagem escrita em bom e, por vezes, ótimo nível literário, tal a força de seu poder narrativo, tal a capacidade de infundir suas páginas de um lirismo poucas vezes encontrado em romances de escritores brasileiros. Se Reflexões de uma cadela vira-lata ganha consideravelmente em dimensões estéticas, ela igualmente tem o seu lado de narrativa que desnuda o universo social do interior brasileiro nordestino, fazendo, assim, denúncia às condições secularmente deploráveis de populações abandonada pelos poderes públicos. E isso sem laivos de engajamentos inócuos.
Seus personagens são convincentes, têm alma, têm vida e alguns deles hão de permanecer, seja pelas suas virtudes, seja pelos defeitos, na memória do leitores, como o primeiro deles, a cadela Sabiá, um dos personagens mais bem compostos que tenho visto na ficção brasileira. Sabiá permanecerá, sim, como Baleia de Graciliano Ramos, como alguns bichos-personagens de Guimarães Rosa, como o cachorro Quincas Borba do romance homônimo de Machado de Assis.
As ações de índole picaresca de Sabiá, movimentando-se sempre, se portando como gente, como mulher sensual e messalina, como uma aventureira que sai de uma cidadezinha do Nordeste e vai, escondida, de ônibus para a Cidade Grande (São Paulo), intromete-se com o baixo meretrício, conhece a prostituta Margarida, penetra em ambientes mais sofisticados, faz amizade com um morador de rua, um catador de lixo chamado Josué, imigrante em São Paulo vindo do Piauí. Sabiá, dessa maneira, como sói acontecer com os personagens pícaros, topa todas as paradas. Seu objetivo é sobreviver, nem que seja das sobras, do lixo urbano. Seus sonhos constituem parte considerável e um dos pontos altos da narrativa. É da passagem da realidade para o sonho que a linguagem se torna mais artística, mais poética, beirando a fronteira do mágico, do fantástico.
Epicentro de toda a fabulação, Sabiá vivencialmente, constrói e desconstrói, abuso dos seus descaminhos, dos seus sentimentos díspares, de suas perplexidade e de suas contradições. Ama e é amada por Zeca Macho, seu parceiro na normalidade e na metamorfose de lobisomem. Daí tantos trechos de cenas eróticas, de pantagruélicos excessos de orgasmos. Sabiá é o mais perfeito protótipo da cadela-mulher, numa simbiose de erotismo canino e mítico. Seria, pois, a representação mais alta do poder de despertar o seu descomunal lado sensual-erótico, assim como se observa na cena histriônico-irônco-erótica do pai do menino Erasmo em que o defunto põe avista o seu volumoso falo ereto, lembrando certa fase erótica de Jorge Amado (1912-2001)
Sua dimensão humana, no plano legendário, também se faz em vigorosas manifestações de carinho para com alguns seres humanos queridos, como o menino Erasmo, a proteção que um tempo deu à cidade Sem Nome, a seus habitantes, a seus cães, é admirável. Brincalhona, dançarina, desavergonhada, puta, amante e amada, vivendo amiúde dos sonhos de ser mulher, de ser atraente para os homens e os cachorros, faz dessa personagem uma exceção qualitativa na galeria dos animais que povoam a literatura brasileira, pelo menos. Isso é muito e a coloca numa narrativa que realça as técnicas e maestria de um simples estreante no quadro da literatura de autores piauiense e, por extensão, da literatura brasileira. Só espero que o autor não fique apenas nesta obra e dê continuidade à aliciante e desalienante arte de narrar.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Um quase Nero na Síria

Um quase Nero na Síria


Cunha e Silva Filho


A “Primavera Árabe” na Síria de Bashar al-Assad parece não ter solução para os problemas gravíssimos de um povo que vem sofrendo todas as atrocidades de um ditador impiedoso e cruel, capaz de confundir a todos com suas ações maquiavélicas e genocidas. Ditador pronto a pôr a culpa da matança dos sírios que se lhe opõem ao regime autoritário nos próprios cidadãos civis, ou mesmo capaz de matar soldados seus para jogar a culpa nos insurgentes. Nem a sua formação em país de regime democrático conseguiu mudar a sua mentalidade sanguinária. Há quase um ano a matança de civis revoltosos já atingiu pelo menos cinco mil vitimas da sua truculência.
Podemos prever que seu fim não será nada glorioso ainda que conte a seu favor com parte considerável da população – é possível esta avalizar todos os seus crimes de morte? É difícil acreditar que parte da população ainda concorde com ele, mas comportamento como esse é de se esperar do ser humano e a História o tem mostrado sobejamente tendo em vista o que aconteceu com a Alemanha nazista.
Os Estados Unidos, embora tenham manifestado sua reprovação com o que está ocorrendo na Síria, não tem dado nenhum sinal de que se alinhará a outros países da Europa e do Oriente Médio a fim de propor ações firmes contra um ditador que está dizimando populações indefesas, implantando o terror, a tortura, a repressão desenfreada contra a sociedade civil.
Já é hora de a ONU, tomar medidas drásticas e mesmo militares contra o ditador sírio que, ao que parece, não tem dado nenhum sinal de que está amedrontado com a repercussão negativa que seu regime tem tido junto à comunidade mundial que luta pela paz e pela segurança dos povos, cujos maior sonho seria alcançar um estado onde a liberdade dos indivíduos seja conquistada de forma perene.
O ditador sírio, depois das tentativas de pedidos por parte da Liga Árabe para que esta pudesse enviar observadores e verificar o comportamento do governo em relação ao opositores do regime, não se deixou intimidar e continuou reprimindo os civis, com ações bélicas contra a população que não deseja mais se submeter aos sacrifícios impostos duramente pelo ditador e sim alcançar aspirações que levem o país a um estado de liberdade de expressão e de escolher pelo voto seus governantes, quer dizer, o povo, compondo seguramente a maioria da sociedade civil, não aceita mais um regime discricionário como o que se instalou na Síria desde, pelo menos, o tempo da ditadura do pai de Assad, o presidente Hafez al-Assad, a quem sucedeu em 2000, na condição de ditador através de um “referendo”.Vale lembrar que o pai de Bashar al-Assad, governou o país por cinco mandatos consecutivos, ou seja, era “eleito” através de uma lista única pelo partido Ba’ath, do que se tornou seu secretario geral. Desta maneira, tanto o pai quanto o filho não passaram de governantes em cujas mãos enfeixavam poderes ilimitados. A sua propalada situação política de República Parlamentar não passa, pois, de uma fachada para esconder práticas de eleição manipulada e de autoritarismo e ausência de alternância no poder.

O mundo árabe que não compactue com as truculências que se vêm arrastando por quase um ano, deve fazer pressão contra o regime desse ditador de tal sorte que, encurralado e isolado, ele se veja forçado a deixar a Síria à qual só tem feito mal e se desgastado diante dos olhos dos povos livres. Em caso contrário, estará o ditador instigando o povo a uma divisão ideológica e política que levará a nação à uma carnificina ainda mais sangrenta através da guerra civil, cujas consequências trarão apenas a destruição da integridade física do país e da desagregação do que já foi construído pelo povo com o seu trabalho ainda que vivendo por largo tempo sob um regime de opressão às liberdades do indivíduo.
Até agora, não tenho visto nenhuma providência do Conselho de Segurança da ONU a fim de que formule estratégias que venham salvar o povo da Síria das infâmias e da estupidez de um quase Nero da pós-modernidade. O mundo democrático aguarda, portanto, urgentes medidas partindo do Conselho de Segurança em direção à paz na Síria.Não podemos cruzar os braços e assistir à violência diária de tropas do governo contra inocentes e indefesos civis rebelados contra a prepotência e a barbárie.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

As águas contra as terras

As águas contra as terras


Cunha e Silva Filho


A mesma cantilena de sempre, sobretudo da parte das autoridades municipais, estaduais e federais. Chega o período das chuvas torrenciais, morrem as pessoas e só depois surgem algumas providências.Porem, isso não basta. É obvio que toda ajuda é bem-vinda, quer dos governos, quer da iniciativa voluntária, das pessoas generosas que muito dão de si em prol do bem comum.
A tragédia brasileira das chuvas fortes do verão implica outras causas, outros motivos, os quais não são vislumbrados com antecedência. Esta é a maior parcela de culpa que atribuo ao governo federal, ao Ministério competente. Nenhuma ação eficaz e séria se toma. As verbas existem mas só vêm em cima da hora, quando a tragédia já aconteceu.O Brasil é um país que tem o péssimo vício do improviso.
No ano passado e em outros anos, a tragédia sempre tem sido um acidente anunciado. Não há pois, planejamentos de alta envergadura para essas chuvas, essas inundações que transformam as pequenas, médias e grandes cidades em autênticas Venezas brasileiras, só que inundadas e com correntezas que alargam os rios e invadem as cidades sem clemência, derrubando o que encontra pela frente, causando mortes e transtornos às populações, que perdem seus bens móveis e imóveis e, o que é mais grave, passam a engrossar a fileira enorme de sem-teto. A televisão, nas reportagens in loco, dia a dia, mostram os estragos incalculáveis da fúria das águas. Só há desespero, choros, tristezas.. “O que fazer?”, dizem as as pessoas afetadas, sem esperança alguma, sem saber o que fazer.
Sua desesperança tem o sofrimento atroz da fatalidade que a natureza, indiferente, imprime, principalmente aos deserdados da sorte.A população perde tudo o que acumulou em anos de trabalho árduo, de dinheiro pingado, de sacrifícios mil que, de repente, mais do que de repente, se esvai como uma bolha de sabão.Sofrem o Rio de Janeiro, principalmente no interior e na região serrana, Belo horizonte, o interior de Minas Gerais, sofrem outras cidades brasileiras no Centro-Oeste, no Nordeste. Deslizamentos de terras vindo dos morros.Casas construídas quase nas ribanceiras são as primeiras a viraram pó e lama. O luto se agiganta. Bombeiros, a Defesa Civil, os sobreviventes, todos juntos, arregaçam aas mangas e vão à luta para salvar vidas e bens na medida das possibilidades. As águas não param, os rios sobem, saem das margens, invadem as cidades. Pessoas, em geral mais humildes, sãos as vítimas que mais padecem. Ficam soterradas. O único recurso agora é encontrar os corpos . Um trabalho hercúleo dos bombeiros e de voluntários amigos.
Não é só a visita de governadores ao lugar das tragédias que irá melhorar esta angústia coletiva. Lamentar tudo o que ocorreu é muito pouco e inócuo. O que vale mesmo é procurar estratégias que resolvam grande parte desses males, a começar do planejamento urbano, da fiscalização rígida dos espaços que não podem ser construídos. No entanto, as prefeituras não fiscalizam devidamente as ocupações do solo urbano ou interiorano. E as construções, em geral perto do perigo, lá se vão a todo o vapor. Uma atrás da outra, em cima, embaixo, na encosta, no morro, perto da ribanceira, em solo instável e inadequado. Campeia a improvisação, das famílias ávidas de ter uma moradia própria ainda que sob a mira do perigo, das intempéries. E o resultado ano a ano: as tragédias. A ponto de um ministro, que mora certamente em casa confortável e luxuosa, ou apartamento, não sei, afirmar : “Todos os anos vão morrer pessoas em inundações.” “Meu Deus, quanta fatalidade no pensamento do ministro! Sabemos que a engenharia moderna pode reverter grande parte dos males das inundações e das chuvas torrenciais.
Os governos podem fazer muito neste sentido desde que tenham o sentimento de solidariedade para com as populações mais pobres, embora saibamos que a raiz dos problemas vem de dois lados. Primeiro, da falta de planejamento, como já acentuei, da fiscalização das construções, proibindo essas realizações em lugares de risco. Segundo, o problema vem mais de longe, visto que está intimamente ligado às condições alteradas do clima na Terra.Com o aquecimento do planeta, com a evaporação mais e mais intensa e constante, com o aumento de poluidores em escala global, emissão gigantesca e criminosa de CO2 , notadamente pelos países ricos, alguns dos quais não aceitam a diminuição dos agentes poluidores, piorando gradativamente o efeito estufa, não é de se espantar que o nosso planeta desequilibre suas condições climáticas. Antigamente, se falava muito do período das secas no Nordeste, causadora também de outro mal, a indústria da seca, ação predatória de políticos que lucravam eleitoralmente com a manutenção desse estado de coisas, agente realimentador da miséria oficializada do flagelo das secas, tão bem retratado por alguns escritores, à frente Graciliano Ramos (1892-1953), com a obra-prima Vidas Secas (1938). Hoje, já se tornou comum no Sul do país surgir as altas temperaturas, dias de seca e perda consequente da lavoura. As periódicas reuniões de cúpula de países ricos, com suas discussões sobre a questões climáticas, ao que me consta, não têm feito muita coisa para resolver os gravíssimos problemas da poluição mundial. Inclusive, países como os Estados Unidos nunca se dispõem a aprovarem as recomendações dos signatários nestas reuniões. As advertências, contudo, dos especialistas não têm sensibilizado algumas nações poluidoras.
O planeta Terra, através das reações da natureza, estará cada vez mais arriscando as possibilidades de sobrevivências das gerações futuras. Mexer com as geleiras é brincar com fogo. A conclusão que se tem é que as condições meteorológicas perderam seu rumo e o resultado está aí: inundações pelo planeta todo, destruição de populações, perda de bens materiais, desolação e choro em toda a parte, prejuízos enormes para a economia. Tenhamos pena de nosso planeta antes que seja tarde demais e aprendamos a ouvir a linguagem da Natureza e os sinais do tempo.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Um poema de Ben Jonson (1572-1637)

Um poema de Ben Jonson (1637-1774)


Advice to a reckless youth


What would I have you do? I’ll tell you, kinsman:
Learn to be wise, and practise how to thrive
That would I have you do: and not to spend
Your coin on every bubble that you fancy,
Or every foolish brain that humours you.
I would not have you to invade each place,
Nor thrust yourself on all societies,
Till men’s affections, or your own desert,
Should worthily invite you to your rank
He that is so respectless in his curses,
Oft sells his reputation at cheap market.
Nor would I you should melt away to yourself
In flashing bravery, lest, while you affect
To make a blaze of gen try to the world,
A little puff of scorn extinguish it,
And you be left like an unsavoury snuff,
Whose property is only to offend.
I’d ha’ you sober, and contain yourself;
Not that your sail be bigger than your boat;
But moderate your expenses now (at first)
As you may keep the same proportion still.
Nor stand so much on your gentility,
Which is an airy, an d mere borrow’d thing
From dead man’s dust and bones; and none of yours;
Except you make, or hold it.

Conselhos a um jovem imprudente


O que em orientação me pedes? Dir-te-ei:
Aprende a seres prudente pelo esforço feito
Isso te peço com segurança: O teu dinheiro
Não gastes com qualquer coisa o que à imaginação te venha
Ou ouvidos dês a qualquer idiota que te importunar apareça
A todos os lugares não te aconselharia entrar
Nem a ingressares em todas as sociedades
A não que dos homens as afeições ou a tua própria solidão
Digno de teu nível social te façam.
Quem por seus atos não merece o respeito
A reputação por bem pouco amiúde vende.
Igualmente a dissipares não te aconselharia
Em efêmeras bravuras, a fim de que, enquanto aparentas
De fidalguia menor ao mundo alarde fazer,
Um leve sopro de escárnio não a dissipe
E a um rapé insosso te reduzas,
Cuja propriedade apenas para a ofensa seja.
Antes sóbrio e contido te quero
Não indo além do que suportas.
Porém, primeiro, em teus gastos não te excedas
Porquanto manter intacta a mesma proporção bem podes.
Demorar-te tanto em gentilezas tampouco deves,
As quais são algo superficiais e meros empréstimos oriundos
Do pó e dos ossos mortais, e não do real ser,
Salvo se as construíres ou de berço vierem.

(Trad. de Cunha e Silva Filho)

sábado, 7 de janeiro de 2012

De benefícios, malfeitos a malefícios se constrói um país

Nota introdutória:
Prezados leitores; Tendo felizmente encontrado um tempinho para escrever meus textos sem prejuízo de pesquisas que estou fazendo, volto com satisfação a esta coluna com mais uma matéria.



De benefícios, malfeitos e malefícios se constrói o país

Cunha e Silva Filho


O Brasil – país do futuro - é mesmo surpreendente em tudo, até no que não presta, no que está errado, no que é injusto, no que confunde, no que não dá certo. O país se faz de amálgamas do bem, do mal e do bem e do mal ao mesmo tempo, porquanto o bem para alguns é o mal para outros, e o mal para outros mais é o bem para outros mais. Nessa cadeia de oposições o país se vai desenvolvendo a ponto de ser agora a sétima economia do mundo e o 84º em bem-estar social.
Em todos os aspectos por onde o consideramos, o país se mostra camaleônico, maleável, relativizado. Na política é que mais nitidamente assumimos os contrastes e os confrontos.
O Poder Legislativo, Câmara e Senado, por exemplo, se concedem aumentos salariais sem que haja o aval do Presidente, enquanto o Judiciário, para ganhar salários mais altos, depende da aprovação do Executivo. No extremo, sem voz e nem vez, o funcionalismo público federal fica à mercê do que o Presidente da República, com base na Constituição, determine reajustes, ou seja, fica sujeito à vontade soberana do Chefe da Nação. Este cumpre ou, infringindo a Carta Magna, descumpre qualquer possibilidade neste sentido. Como no país costuma-se copiar o que alguém faz, é bem provável que os empresários não deem reajuste aos seus funcionários, ou, quando o fazem, dão migalhas ao empregado-povão, assim como o prefeito e o governador, acompanhado os passos e as decisões do governo federal, tampouco concedem reajustes aos barnabés.Enquanto isso, o legislativo estadual e os vereadores, tal como os congressistas, usando da força da lei, também são favorecidos com o aumento de seus salários.
Ora, país como este melhor não há. Um povo generoso, pacífico, cordato, bem-instruído e com as melhores condições de bem-estar social deste mundo, nada faz, a não ser falar mal de políticos pelas costas, o que significa gastar o latinório à toa. Esta estrutura do Estado brasileiro funciona maravilhosamente, já que o Presidente da República passa por cima da lei e tudo fica por isso mesmo.
Em São Paulo, numa determinada rua da capital, numa espécie de letreiro, o impostômetro não cessa de crescer em velocidade da luz, acumulando reais para o Tesouro brasílico. A Casa da Moeda nem deve ficar tão apreensiva com o sinistro de que foi vítima há pouco, pois a dinheirama gigantesca vai certinha para Brasília.
Com a aprovação da DRU, nem se fala, tudo fica por conta dos humores da Chefe da Nação. Vinte por cento do Orçamento para ser destinado a qualquer eventualidade e sem ter que dar explicações ao povo não é – para o governo federal -, algo sem cabimento nem racionalidade. Entretanto, tal ação do governo federal deixa qualquer cidadão brasileiro de orelha em pé. Estas idiossincrasias da administração pública são, por si mesmas, absurdas e carregam em si resquícios de prepotência política e de mandonismo, i.e., ferem a constitucionalidade e integridade moral do governo federal.
Falta ao povo brasileiro amadurecimento político, consciência clara de seus direitos e das obrigações do Estado para com ele. Basta dizer, por exemplo, que, quando ocorre um incidente mais grave, ou mesmo uma tragédia, causados, na maioria das vezes, por má gestão em concessões de serviço público, como linhas férreas, embarcações, rodovias, entre outras, as pessoas comuns, geralmente ignorantes dos seus direitos, nem mesmo sabem a que órgão, a que setor, dirigir suas reclamações ou suas críticas, não sabendo elas tampouco que aquelas concessões foram dadas, por tempo determinado, pelos governos municipal, estadual ou federal. Assim sendo, os reais responsáveis são poupados por mero desconhecimento do povão com respeito ao funcionamento da máquina do Estado. Por isso, choram, praguejam, se desesperam e nenhuma revolta ou indignidade manifestam contra as autoridades. E, desse modo, se vão reelegendo maus prefeitos, governadores, presidentes etc. É disso que vive e se alimenta o Estado brasileiro, conhecedor esperto da ideologia dominante de que se fazem porta-voz invisível.
No jogo político, no qual quase nunca existe fair play, muito ao contrário, as práticas continuam se aprofundando no sentido de que a chamada a corrupção que se alastra pela pátria brasileira não tem recebido o tratamento correto da parte da Presidente Dilma. Desde o tempo de “malfeitos”, termo que, se não me engano, foi pela primeira vez empregado pela Presidente e, agora, virou moeda corrente no discurso político petista e até não petista, da era Lula, culminando com o famigerado “Escândalo do Mensalão” e continuado de certa forma pelas denúncias de corrupção no alto escalão do atual governo, o que se viu de Lula e tem se visto de Dilma é uma espécie de refutação dos constantes “malfeitos” fecundados por alguns membros no corpo político do governo federal. Inclusive, como agravante, é o fato de afirmações da Presidente em defesa de seus ministros e de seus ex-ministros expurgados de suas funções não pela vontade dela e sim, conforme dizem os jornais, pela pressão da imprensa.
O que não se concebe como iniciativa do governo federal é permitir que preços de diversos itens, incluindo produtos alimentícios e farmacêuticos, sejam majorados e não cessem de crescer sem que os salários do funcionalismo público se recomponham por aumentos salariais anuais, quer dizer, os aumentos sucessivos vão minando os salários, arrochando-os como se vivêssemos com sérios problemas de caixa. Os cofres do Tesouro estão abarrotados de dinheiro e não será um pequeno reajuste salarial anual, para compensar as perdas da inflação, que nos levará à bancarrota de países europeus, cujas crises foram provocadas pelos desmandos dos próprios países, seja nos EUA, seja na Europa.