Cunha e Silva Filho
Leio a última página do romance Reflexões de uma cadela vira-lata de Rivanildo Feitosa (Rio de Janeiro: Editora Mirabolante, ilustração de Fernanda Barreto e orelha do escritor piauiense José Ribamar Garcia,. 2011, 287 p.). Segundo informações que colho da segunda orelha, com foto do autor, vejo que o estreante atua no meio jornalístico de Teresina, tem 39 anos e nasceu em Pio XI, Piauí. Nada mais sei sobre o autor.
Costumo afirmar que o Piauí possui um número reduzido de ficcionistas, mesmo contando com os autores do passado. Portanto, esta é mais uma razão para que o crítico se sinta estimulado com a presença de mais um autor no gênero.
O último autor piauiense sobre quem escrevi foi o Dílson Lages com seu romance O morro da casa-grande, uma outra estreia que mereceu os elogios da crítica especializada.
Reflexões de uma cadela vira-lata narra a história de uma cadela com traços de personagem picaresca. Seu nome, Sabiá. Sua ambição maior: tornar-se uma mulher com todos as qualidades e os defeitos de uma bela mulher, cuja obsessão que a acompanha está profundamente enraizada no coito, num ímpeto insaciável que não tem tamanho . Este é o mais dominante leitmotif da narrativa.
De origem desconhecida, desde os primeiros meses de vida, Sabiá vive como andarilha, transpõe limites de municípios e vai dar numa cidadezinha de estranho nome, chamada Sem Nome, que acredito, não existir senão no universo do imaginário, fica perto de outra cidade piauiense - Mármoré, que, confesso, não sei se existe no mapa do Piauí ou se o nome é mais uma invenção do autor.
Ficção, antes de tudo, plena de personagens circunstanciais, a ponto de o leitor se ver às vezes confuso em nomeá-los e localizá-los no evoluir da fabulação, a história desta cadela vira-lata que se queria mulher diante dos homens sobretudo, dessa bem urdida criatura ficcional, concentra em si todo uma quadro múltiplo da realidade humana, sendo, por isso, de natureza proteica, ser ambivalente que, numa comparação aproximativa, semelha sair da tela de um filme em quadrinhos onde falam e agem animais de mistura com humanos, de tal sorte que, no conjunto, Sabiá torna a narrativa permeada não apenas da ficção tradicional, mas sobretudo de um universo imaginário que mistura harmoniosamente a prosa e a poesia.
Reflexões de uma cadela vira-lata, excetuando naturalmente seu aspecto pós-moderno ficcional, não é novidade em termos do aproveitamento do animal irracional que, no domínio das literatura de língua portuguesa, remonta a autores medievais, à fase dos Cancioneiros, a fabulistas da antiguidade grega e latina, a autores franceses como La Fontaine (1621-1695)
A melhor demonstração desse elo não perdido se encontra na alusão à cadela Baleia, personagem animal magistralmente criado por Graciliano Ramos (1892-1953), o qual a ela dedicou todo um capítulo de Vidas secas (1938). Atente-se, a propósito, para a seguinte citação da personagem Sabiá colada à voz do narrador: “ - Vida sofrida inspira livros e novelas - lembra ainda sem fama nenhuma, somente a de cadela-ladra e saliente.” (p.86).
Fabula? Alegoria? Literatura fantástica? O que seria a narrativa em questão? Apontaria uma sugestão: é um romance, talvez, em alguns traços, na linha do que já se está chamando “romance pós-pós”, como referência aos romances brasileiros publicados a partir dos anos de 1990 (Veja-se o interessante artigo “O pós-pós: literatura brasileira no século 21”, estudo conjunto de Carina Lessa, Cristina Amorim, Godofredo de Oliveira Neto e Jorge Marques (JB Ideias, Rio de Janeiro, 03/03/2010).
O romance de Rivanildo Feitosa é uma estreia que, pelos valores estéticos injetados, mais me impele a considerá-lo principalmente pelo que de virtudes ostenta: domínio imaginativo, linguagem moderna e correta (são poucos os senões nele observados com respeito ao uso da língua enquanto mero veículo de comunicação, fora alguns erros de impressão, uso da crase, uso de locução prepositiva, inadequação entre um determinante e um determinado), manejo técnico da narrativa que, no caso, só para considerar o dado do emprego do tempo e do espaço, não sendo linear, se constrói de blocos narrativos, ora para frente (prolepse) ora para trás (analepse) ou mesmo visto no seu todo, num presente de enunciação de complexa feitura.
O tempo, por sua vez, segundo disse, ocorre através de anacronias em narrativa que abrange 52 capítulos (todos com títulos alusivos à peripécia contada, além de ilustrações geralmente referentes ao falo), seguidos de um epílogo (também com que dá a medida da ruptura temporal e espacial da obra) que, em resumo, reforça os limites do enredo, do leit motiv da narrativa e do seu objetivo metaficcional, cujo exemplo é a deslocação do narrador, em toda a extensão da história, da terceira pessoa para um breve relato em primeira pessoa.(Cf. p. 240, capítulo 44), ocupando os dois últimos parágrafos desse capítulo, estratégia narrativa que funciona assim como quebra do ilusionismo narrativo até então empregado.
Não devo deixar de mencionar o fato de que o título do último capítulo não vem numerado, mas apenas com um título que sinaliza para as preocupações do autor com a composição narrativa do romance: “Escrevendo seu início sem fim”, além de finalizar o verso da última página com uma ilustração de uma mulher nua em posição de um caminhar primitivo próprio dos irracionais. De resto, outras ilustrações que constam do livro, repito, aludem a cenas de coito ou à imagens fálicas, numa obsessão constante e, de certa forma, desmesurada nos relatos do texto, sobretudo porque abusa da caprologia, o que de alguma forma pode causar no leitor algum efeito negativo em relação ao conjunto do romance. Esse lado erótico da narrativa de Reflexões de uma cadela vira-lata seguramente agradará a alguns leitores que cultivam o gosto das cenas de sexo em romances e a assuntos correlacionados com práticas sexuais desviantes como pederastia, onanismo, sexo grupal.
O que, contudo, salva o romance desse exagero de sexo já mencionado são os recursos de narrativa de que se valeu o autor, realizando um romance que, antes de tudo, tem compromisso com a sua forma estética, enfim, com a linguagem escrita em bom e, por vezes, ótimo nível literário, tal a força de seu poder narrativo, tal a capacidade de infundir suas páginas de um lirismo poucas vezes encontrado em romances de escritores brasileiros. Se Reflexões de uma cadela vira-lata ganha consideravelmente em dimensões estéticas, ela igualmente tem o seu lado de narrativa que desnuda o universo social do interior brasileiro nordestino, fazendo, assim, denúncia às condições secularmente deploráveis de populações abandonada pelos poderes públicos. E isso sem laivos de engajamentos inócuos.
Seus personagens são convincentes, têm alma, têm vida e alguns deles hão de permanecer, seja pelas suas virtudes, seja pelos defeitos, na memória do leitores, como o primeiro deles, a cadela Sabiá, um dos personagens mais bem compostos que tenho visto na ficção brasileira. Sabiá permanecerá, sim, como Baleia de Graciliano Ramos, como alguns bichos-personagens de Guimarães Rosa, como o cachorro Quincas Borba do romance homônimo de Machado de Assis.
As ações de índole picaresca de Sabiá, movimentando-se sempre, se portando como gente, como mulher sensual e messalina, como uma aventureira que sai de uma cidadezinha do Nordeste e vai, escondida, de ônibus para a Cidade Grande (São Paulo), intromete-se com o baixo meretrício, conhece a prostituta Margarida, penetra em ambientes mais sofisticados, faz amizade com um morador de rua, um catador de lixo chamado Josué, imigrante em São Paulo vindo do Piauí. Sabiá, dessa maneira, como sói acontecer com os personagens pícaros, topa todas as paradas. Seu objetivo é sobreviver, nem que seja das sobras, do lixo urbano. Seus sonhos constituem parte considerável e um dos pontos altos da narrativa. É da passagem da realidade para o sonho que a linguagem se torna mais artística, mais poética, beirando a fronteira do mágico, do fantástico.
Epicentro de toda a fabulação, Sabiá vivencialmente, constrói e desconstrói, abuso dos seus descaminhos, dos seus sentimentos díspares, de suas perplexidade e de suas contradições. Ama e é amada por Zeca Macho, seu parceiro na normalidade e na metamorfose de lobisomem. Daí tantos trechos de cenas eróticas, de pantagruélicos excessos de orgasmos. Sabiá é o mais perfeito protótipo da cadela-mulher, numa simbiose de erotismo canino e mítico. Seria, pois, a representação mais alta do poder de despertar o seu descomunal lado sensual-erótico, assim como se observa na cena histriônico-irônco-erótica do pai do menino Erasmo em que o defunto põe avista o seu volumoso falo ereto, lembrando certa fase erótica de Jorge Amado (1912-2001)
Sua dimensão humana, no plano legendário, também se faz em vigorosas manifestações de carinho para com alguns seres humanos queridos, como o menino Erasmo, a proteção que um tempo deu à cidade Sem Nome, a seus habitantes, a seus cães, é admirável. Brincalhona, dançarina, desavergonhada, puta, amante e amada, vivendo amiúde dos sonhos de ser mulher, de ser atraente para os homens e os cachorros, faz dessa personagem uma exceção qualitativa na galeria dos animais que povoam a literatura brasileira, pelo menos. Isso é muito e a coloca numa narrativa que realça as técnicas e maestria de um simples estreante no quadro da literatura de autores piauiense e, por extensão, da literatura brasileira. Só espero que o autor não fique apenas nesta obra e dê continuidade à aliciante e desalienante arte de narrar.
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