sábado, 22 de dezembro de 2012

Da janela da Arlindo Nogueira: memórias

NOTA PRÉVIA AO LEITOR:  a vontade de escrever me fez antecipar o período  de minha  volta a este  blog. Segue, abaixo,  mais um texto meu.



Cunha e Silva Filho



Era tempo de ginásio e, em seguida, de científico. Mas, era tempo também de imensa saudade vista pelo olhar do narrador de hoje .

Domício. Liceu Piauiense. No meu diploma do científico, o velho Liceu de tantos carnavais, era então chamado de Colégio Estadual “Zacarias de Góis, pelo menos assim consta do meu diploma assinado, em 1963, pelo (desculpe-me o chavão) “saudoso” e ilustre professor Lysandro Tito de Oliveira e pelo secretário, professor Alcides Lebre, que, por sinal, tinha sido meu professor de desenho no Domício. O grande mestre de geografia, Lysandro, que me lecionou no Domício, em aulas dignas de gravação, nos fazia viajar pelo Brasil afora. Era professor catedrático do Liceu piauiense. Sabia de tudo sobre o Sul do país. Principalmente, se deliciava descrevendo a paisagem rural, econômica, social e histórica de estados sulinos que, só muito mais tarde , iria conhecer pessoalmente.

Alto, usava bigode. Sério e ao mesmo tempo afável, exigia muito do alunado, porém sem exageros. Eu estudava muito para suas provas, às vezes me desesperava em casa, quase chorando, porque julgava que havia muito conteúdo para aprender e a ser cobrando nas provas. É curioso: não fui muito forte na geografia, apesar de meu pai ser também professor de geografia. As notas não eram tão altas assim. Contudo, pouco me importava, porque gostava dele como professor e como pessoa. Até hoje, lamento não lhe ter dado um grande abraço e conversado com ele na última vez que o vi e o cumprimentei na presença de meu pai. É que eu estava aflito para entrar num banco, onde havia um dinheiro para receber e que tinha demorado muito. Foi imperdoável da minha parte.

Em 1965, já no Rio, lhe pedi, através de meu pai, uma carta de recomendação que juntaria com outras, as do querido e admirado professor Viveiros, de inglês, de quem fui aluno nota 10 no período do ginásio, no Domício (famoso e popular colégio particular dos irmãos Magalhães), principalmente nos anos cinquenta, sessenta, e no científico, no Liceu Piauiense. A carta do professor Domício era igualmente cheia de boas referências sobre minha vida de estudante.

O objetivo dessas cartas era atender a uma exigência da burocracia do setor de bolsas de estudos aos Estados Unidos, a cargo do IBEU, sigla para o tradicional curso de inglês, Instituto Brasil-Estados Unidos, célebre pelos seus seminários anuais de professores de inglês vindos de quase toda as partes do país e pelo alto nível do seu TTC (Teacher’s Training Course), curso de formação de professores, naquela época considerado de alto nível. O IBEU realizava /realiza também os exames de Michigan, concedido pela Universidade de Michigan por longo tempo muito concorrido por estudantes ávidos de ostentar a sua proficiency oral e escrita na língua inglesa.A eles me submeti com sucesso, sendo que o meu certificado data de 1982.

Tinha me inscrito como candidato a uma bolsa de nível undergraduate, o que corresponderia a um nível entre o curso secundário, o equivalente ao ensino médio de hoje e a universidade. Nos Estados Unidos o curso duraria um ano e meio. Passara bem nos exames escrito e oral. Já tinha feito uma entrevista com o setor encarregado das bolsas. Juntei, depois, todos os documentos. Estava pronto a embarcar. Diziam que viajaria em navio militar.

As cartas de recomendação, sobretudo as do professor Lysandro e do professor Viveiros, eram muito elogiosas, especialmente porque falavam bem de meu caráter como estudante. A do professor Viveiros viera redigida em inglês, com todas as formalidade de um correspondência oficial dirigida ao governo americano. Até me lembro de algumas frases, entre as quais, forçando a memória, “To whom it may concern”. O aluno em questão “was an exceptional student while I was his high school English instructor” “He is congenial...” “I can highly recommend him as a good representative Brazilian student in the United States.”

Não tenho cópia das cartas que tanto me lisonjearam e me estimulavam a estudar no exterior. Uma semana antes do embarque, recebi uma carta do IBEU lamentando que a minha bolsa tinha sido cancelada. Foi uma ducha de água fria no espírito caloroso daquele adolescente de dezoito anos. O pior era que já tinha me despedido de alguns amigos mais chegados. Decepção sem tamanho! A carta, como consolação, ainda afirmava que, no ano seguinte, poderia tentar outra vez.

Mais tarde, pensando bem, deduzi a razão do cancelamento da minha bolsa de estudos. Na mencionada entrevista que tive com uma senhora do setor de bolsas, eu havia declarado não ter condições financeiras de ordem familiar para o meu sustento (alimentação, hospedagem e outras despesas) lá fora. A bolsa apenas incluía a gratuidade dos estudos, do curso. Não tentei. A decepção feriu muito profundamente a minha sensibilidade de jovem. No ano seguinte, entrara para cursar letras na Faculdade Nacional de Filosofia. Na época, não atinei para a iniciativa de tirar cópias daquelas cartas maravilhosas de meus ex-professores.

Após essa digressão com a qual não contava como assunto central destas memórias, machadianamente volto ao sugerido no título deste texto.

A Rua Arlindo Nogueira tem uma capital importância na minha vida de escritor. Foi naquela casa grande e de varanda ampla que me iniciei na arte de escrever e de me sentir inclinado para o resto da vida à escrita e à leitura. No entanto, não vou agora detalhar esse aspecto, pois o que me interessa aqui é comentar aquele lado da vida m ais pessoal e mais íntimo, que é o despertar para o amor. Sentimento indispensável da vida de qualquer ser humano, vou recolher os primeiros frutos dele através da imagem espácio-temporal localizada a partir de uma das janelas para fora da qual dirigia o meu olhar com aquilo que virou hábito: à tardinha, apreciar sobretudo as belas meninas que todo dia passavam pela rua, ora para casa, ora para outros lugares. Ali estavam elas graciosas, de todos os tipos e para todos os gostos: morenas cor de jambo, alvas, louras, algumas bem torneadas, com as curvas mais harmoniosas, ou seja, as curvas de Niemeyer..

Obviamente, não poderia ter a pretensão de que todas também me dessem um olhar mais faceiro ou que me correspondessem sempre (que pretensão!) ao meu próprio olhar de jovem romântico em plena adolescência. A minha casa tanto dava para a Rua Arlindo Nogueira quanto para a Rua São Pedro. Nesta é que a minha casa tinha sua entrada, uma espécie de espaço pequeno em  que bem se  poderia ali plantar flores e fazer um jardinzinho. Era uma entrada apenas aparente, visto que por ali se podia ter acesso a um quarto especial ou, usando uma palavra mais antiga, porém apropriada ao tom deste texto, para a alcova justamente o espaço sagrado de meus pais. O quarto, além disso, servia para ocupar duas estantes apinhadas de livros, preciosos livros! As estantes eram grandes, sólidas e de boa madeira. No teto delas meu pai colocava caixas grandes de papelão, repletas de antigos recortes de artigos de diversos jornais para os quais havia colaborado ou ainda colaborava assim como revistas, anotações de estudo de língua estrangeira, material esse datado do início de sua carreira de jornalista e professor, primeiro em Amarante, depois, em Teresina.

Na casa das Ruas Arlindo Nogueira e São Pedro, praticamente iniciei a minha vida amorosa, as minhas aventuras juvenis à procura da simpatia feminina que às vezes não surtia o efeito desejado. Qual adolescente que não se frustra com um amor não correspondido? Decepciona, dói, mas, como tudo nesta vida, cura com o tempo. Era uma época grandiosa sob todos os aspectos. Amores idos e vividos. Amores partidos. Até amores sonhados. Amores nunca percebidos plenamente pela outra parte. Ficava apenas na vontade de amar, o que é dilacerante para os adolescentes.

Aquela janela, inscrita num tempo pretérito, virou uma forma de metáfora de uma época em que começava a forjar as experiências que me levariam a outros amores, agora adultos, e as experiências com o ato da escrita, também com as suas mudanças, suas tentativas de melhor comunicar o sentimento e o pensamento lógico em variadas formas e em tempos superpostos que me chegam até os dias de hoje.A Rua Arlindo Nogueira, esquina  com a São Pedro, é o princípio de tudo na vida deste  escritor. 

4 comentários:

  1. Ah, memórias, esse gênero tão imprescindível. Muito bom, prezado Cunha e Silva Filho. Meus cumprimentos. E Boas Festas!

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  2. Caríssimo poeta Luiz Filho de Oliveira:

    Antecipei meu descanso e voltei ao labor dos textos. Escrever é um vício, mas um vício que faz bem ao autor e a alguns leitores.
    Ao chegarmos a uma certa idade - não tão velha assim - o passado nos chama, de quando em vez, para um reenncontro com alguns fatos, pessoas e circusntâncias da existência que precisamos contar, narrar, fazer renascê-las na simbiose do tempo presente, quando elas se transmudam por vezes em sonhos misturados com a realidade precisa do tempo decorrido.
    Quem escreve gosta de dar um testemunho, um exemplo, uma experiência que, se válida para o leitor visado, e em consonância com o efeito que neste pode provocar, atinge umç ponto de cumplicidade ou de comunhão de ideias.
    Grande Natal pra você e sua família!
    Um grande abrçao naalino do amigo
    Cunha e Silva Filho

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  3. Caro Cunha,
    como diriam os jovens, você arrasou no seu texto. Nele perpassa, penso, todos os sonhos, alegrias, decepções e angústia da adolescência, essa quadra tão difícil da vida humana, mas tão emotiva, tão sentimental. Ao falar de si mesmo, você foi um porta voz de todos os que são ou que algum dia foram adolescentes.

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  4. Caro amigo Elmar Carvalho?

    Da mema forma que as palavras do jovem e talentoso poeta Luiz Filho, suas palavras, Elmar, me trazem o estímulo que é fator deterinante a quem escreve literatura seja em que gênero for.
    O grande objetivo do escritor é transmitir alguma coisa que ligue os homens para uma compreensão mais aguda da existência, tanto no plano da beleza advinda da palavra esteticamente considerada, como no plano de despertar no leitor um desejo de, junto com o leitor, encontrar algum eco ou ressonância da visão do autor que de alguma forma amplie no leitor a capacidade de conhecer novas experiências, novos conhecimentos sobre múltiplos problemas do mundo que nos cerca. O escritor aprofunda o que o homem comum apenas intui, e é nesse processo de colaboração comunicativa que a literatura atua de forma construtiva e necessária.
    Um forte abrçao natalino do amigo
    Cunha e Silva Filho

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