segunda-feira, 18 de junho de 2012

Carta a um jovem crítico

   Rio de Janeiro, 19 de junho de 2012




Meu caro jovem crítico:



Ao transpormos um determinada fase etária que não nos permite mais pensar trinta ou mais anos para diante, é tempo mais do que aprazado para poder ter pelo menos a dignidade da velhice a fim de sugerirmos conselhos que, em geral, pouco são seguidos à risca. Cada um, de uma forma ou de outra, consegue encontrar um caminho, ou não, por uma circunstância ou outra.

Mas, vejamos no seu caso. Você me pede não um conselho apenas, mas uma orientação dessas que os escritores mais velhos , alguns, pelo menos, gostam de passar às gerações mais novas.

A primeira coisa que você deve ter em  mente não é declarar-se ser crítico de moto próprio de forma narcisista, vaidosa, sem o mínimo de autocrítica (perdoe-me o trocadilho, que pode soar aos seus ouvidos um tanto pejorativamente) antes que alguém mais experiente lhe possa afirmar diretamente ou por terceiros. É óbvio que você tem, nos seus verdes anos, já um bom discernimento para saber relativamente o que pretende fazer com o vasto campo literário da crítica,  dividido e fracionado em múltiplos aspectos, em muitas correntes, antigas e modernas.Atividade literária esta que, de vez em quando, se proclama morta ou, no mínimo, em crise.

Ninguém, que eu saiba, pelo menos no caso da literatura brasileira, de repente se auto-proclamou: “sou um crítico literário!” Acredito que alguém que tenha porventura feito isso, já se arrependeu há muitos anos e talvez tenha-se debandado para outro gênero (ou gêneros)  que, em tempo, descobriu ser mais conveniente ao seu talento.

Por falar de grande experiência de crítico, além de talento para este ofício, lembro-me, agora, de uma autor de um utilíssimo livro sobre correspondência oficial, que escrevera há muito tempo uma carta ao velho e agora esquecido crítico Agripino Grieco, solicitando-lhe opinião apreciativa a respeito da obra de Camilo Castelo Branco, notável ficcionista romântico português, famoso por obras como Amor de perdição, Amor de salvação, um escritor que deixou uma produção numerosa no campo da ficção. A resposta de Agripino foi, como se podia esperar, de um grande leitor da sua espécie: uma lição admiravelmente resumida do que pensava da obra camiliana, dos seus valores estéticos da sua posição de alto relevo na literatura portuguesa.

A atividade crítica, assim como todas as outras, mesmo as não literárias, pressupõe uma condição fundamental: a formação intelectual. Esta é seu pilar, sem o qual não pode existir o crítico na acepção rigorosa do termo. Alguém, porém, pode argumentar: “E quando não havia o que hoje denominamos formação em Letras, ou mesmo um modalidade já em vigor em algumas universidades brasileiras, que é o curso de estudos de crítica literária? Ora, na falta das universidades, o seguro seria começar pelos filósofos gregos que estudaram questões de altíssima relevância aos estudos literarios, como Sócrates (469 a.C); Platão (427 a. C.), nos diálogos socráticos, discute a doutrina do seu mestre, na obra Íon, em que estuda a inspiração poética; Protágoras, no qual se discutem a virtude e o conhecimento, considerando ambos a mesma coisa; Geórgias, tratando da retórica; Crátilo, ocupando-se da linguagem; Maior, a respeito da beleza. Este último, segundo estudiosos, é de autenticidade duvidosa, assim como Íon, Menexeno, Hípias Maior, Epinômides; .Aristóteles (384 a. C.), com a sua Retórica e a sua Poética.

A par da contribuição gigantesca daqueles filósofos antigos, nenhum passo significativo pode ser dado rumo às atualizações do saber teórico-literário,  como  a intimidadae obras-chave em toda a história da literatura universal não podem ser desconsideradas na formação do jovem crítico. Seu trabalho consiste em combinar um série de área afins e de área complementares: a literatura, a história, a geografia,  a filosofia, a socióloga, a estatística,, os estudos de línguas modernas (espanhol, francês, italiano, inglês, alemão, numa seleção mínima), e os de línguas clássicas, o grego e o latim.

Dentre as obras de enorme contribuição ao repertório do crítico, destacaríamos, por autores, numa citação sumária e assistemática, as seguintes: as tragédias gregas de Ésquilo, Sófocles, Eurípedes, as obras de Milton, Voltaire, Montesquieu, Rousseau, Samuel Taylor Coleridge, Nietzsche, Hegel, Locke, Santo Agostinho, Bacon, Wittgenstein, Maquiavel, Marx, as obras de Homero, de Sêneca, de Aristófanes, de Goethe, Shakespeare, Dante, Petrarca, Milton,, Samuel Taylor Coleridge, Miguel Cervantes de Saavedra, Schiller, Gil Vicente, Stendhal, Camões, Mallarmé, Verlaine, Rimbaud,  Sterne, Poe, Fernando Pessoa, Hölderlin, Thomas Mann, Flaubert, Balsac, Victor Hugo, Dostoiévski, Tolstói, Marcel Proust, James Joyce, Kafka, Borges, Ezra Pound, Edmund Wilson, T.S. Elliot, Faulkner, dos filósofos, ou antropólogos, ou críticos, ou teóricos, ou linguistas, ou pensadores: Boileau, Saint-Beuve, Taine, Bennedetto Croce, I. A. Richards, Sartre, Marcuse, Heidegger, Freud, Lévi-Strauss, Derrida, Foucault, Adorno, W. Benjamin, Saussure, Horkheimer, Spitzer, Dámaso Alonso, Carlos Bousoño, Vossler, Roman Jakobson, Wolfang Kayser, Pierce, Chomski, Todorov, Julia Kristeva, Lukács, Auerbach, Edmund Wilson, David Daiches,  Mihail Bakhtin, Raymond Williams, Renné Welleck, Austin Warren,  Habermas, entre tantos outros de primeira plana.

As citações acima servem apenas para mostrar o quanto é espinhosa e complexa a atividade crítica, a sua preparação acadêmica no sentido de o crítico também exercer a docência superior combinada com o exercício da critica ou do ensaio.Outras vezes, o crítico, sem ser especificamente um professor universitário, por uma natural vocação e amor aos estudos de obras e às questões teóricas, pode com sucesso construir uma obra no terreno da crítica, da historiografia literária e da teoria literária. Exemplo disso no Brasil são muitos, como Agripino Grieco, Fausto Cunha, Assis Brasil. São o que poderíamos chamar de self-made critics , críticos independentes, surgidos fora dos campi universitários.

Meu caro aspirante a crítico,  você sabe que o ato crítico é espinhoso, muitas vezes injusto para seu praticante e exige uma continuidade de atualização e  de leituras de autores em quantidade sem paralelo que vêm surgindo, sobretudo nos últimos anos. Tanto isso é verdade que muitos críticos tendem a se especializar no gênero da poesia e, em segundo plano, na ficção, no teatro. E podemos radicalizar ainda mais, muitos críticos se tornam especialistas em um autor, ou num período literário.Outros ainda, por razões de múltipos talentos, além de críticos, são contistas, romancistas, poetas, ensaístas, historiadores, dramaturgos, crítico de artes.

Uma outra questão problemática e de grande complexidade é a escolha da linha do pensamento crítico, tomada de decisão intelectual que está muito associada à formação das leituras teóricas do crítico e das influências sofridas por ele no tempo e no espaço. Cada aspirante a crítico seria, por assim dizer, produto do seu tempo no que tange ao pensamento crítico que vai lhe nortear a produção .Ao longo da história da crítica literária ocidental, diversas correntes foram surgindo, as quais remontam aos períodos mais fecundos do pensamento helênico e latino, num espectro tão abrangente que Carmelo M. Bonet chamou, em sintese,  de crítica dogmático-hedonista, passando por Platão, Aristóteles e vindo atingir até à época de Cervantes. Para simplificar, nomeemos as mais influentes correntes do pensamento crítico ocidental a partir do século XIX:



1) “Crítica compreensiva;”(Mme. De Staël);

2) determinismo (Taine);

3) crítica biográfica (Saint-Beuve);

4) crítica evolucionista (Brunetière);

5) impressionismo ( Anatole France);

6) crítica expressionista (influenciada pelas ideias de Benedetto Croce);

7) formalismo russo (Roman Jakobson, Boris Eichenbaum e Victor Shklovski);

8) o new critcism, de procedência anglo-americana, divulgado por Afrânio Coutinho e aplicando entre nós a abordagem da obra literária considerando sobretudo o seu estudo nos seus elementos intrínsecos dissociados de componentes extra-literários, procurando ainda na obra a sua autonomia de forma de linguagem, no estilo, nos aspectos formais,  i.e., em elementos como personagens, espaço, tempo, enredo, ponto de vista, metáfora, símbolos, imagens, símiles, mitos, métrica, rimas, ritmos, enfim,  as partes de sua  estrutura linguística em estado de tensão com o paradoxo, a ironia, a ambiguidade, utilizando-se de uma retórica objetiva e afastada de conceitos de natureza impressionista, subjetivista como sensações, relação entre autor e obra (biografismo) ou seja, a obra analisada como se fosse um objeto científico, mas visando a fins estéticos;

9)  fenomenologia (Edmund Husserl). Outras versões da Fenomenologia:

10) reader-response criticism (Stanley Fish, Wolfgang Iser);

11) estetica da recepção (Hans Robert Jauss);

12) crítica estruturalista (Roland Barthes, Jonathan Culler);

13) pós-estrututuralista (Barthes, Lacan, e Foucault);

14) desconstrução ( Jacques Derrida);

15) teoria feminista ( Elaine Showwater, Jacqueline Rose, Mary Jacobus, Kaja Silverman);

16) psicanálise (Jacque Lacan através da base teórica vinda de Freud);

17) crítica marxista (Karl Marx, Engels);

18) novo historicismo/ materialismo cultural ( Raymond Williams, Catherine Balsey, Jonthan Dollimore, Alan Sinfield e Peter Stallybrass, Stephen Greenblatt, Louis Montrose);

20) teoria pós-colonial (Edward Said);

21) discurso de minorias (promoveu-se dentro das instituições dos EUA os estudos da escrita negra, latina, asiático-americana, nativo-americana;

22) queer theory



. É óbvio, caro jovem, que outras correntes e métodos críticos contemporâneos ou mesmo mais remotos não foram  referidos aqui por completo. Contudo, o jovem crítico, a partir de suas próprias leituras e cruzamentos de leituras teóricas,  irá delas tomar conhecimento ou, quem sabe, poderá fazer parte de sua abordagem de escolha.



 Você, desejoso de estabelecer familiaridade mais profunda com a atividade da crítica literária, não deve negligenciar que, na França, além dos mais conhecidos movimentos teóricos surgidos nos últimos anos, e divulgados para outros países europeus e para as  Américas, a cultura francesa voltada para a análise crítica de autores e para os aspectos teóricos envolvidos, oferece um grande espectro de abordagens muitas vezes pouco conhecidas em nosso país e, para isso, cumpre estar atento para algumas obras que deem boa fundamentação sobre o assunto, como, para ilustrar, podemos ler em A crítica literária de Jérôme Roger e até mesmo um livrinho antigo, La critique littéraire, de J.C. Carloni e Jean C. Filloux, o primeiro traz um Quadro Cronológico, mencionando, em duas colunas; na primeira obras literárias, cuja citação começa com Homero e, na segunda, valiosos títulos de obras de crítica.. Na primeira obra e na segunda, constam bibliografia sobre crítica literária.

Conjugando o conhecimento crítico importado e a atividade crítica no país desde suas origens até à contemporaneidade, o jovem crítico, por esforço próprio e pela formação acadêmico-erudita adquirida, dentro ou fora da universidade, há de conseguir desbravar o seu próprio método de trabalho que, geralmente, seguirá algumas das  correntes em voga da crítica contemporânea ou mesmo  tornar eclético seu  pensamento crítico  Com sua abordagem preferida, e assim fizeram todos os seus predecessores na sua época, com as exceções dos críticos de formação independente, que preferiram - vamos dizer - criar os seus próprios fundamentos teóricos de interpretação das obra. A recepção dos resultados do seu fazer crítico-analítico é que em geral vai receber a classificação e o reconhecimento , ou não,  de seus pares  nesse  gênero. Ficou célebre a frase "crítico ao Norte!", de Alceu Amoroso Lima quando da publicação de Dimensões I (1958), de Eduarado Portella, primeiro  volume de  crítica literária   de uma série de três com este título.Sua estreia se dera com  Aspectos  de la poesía brasileña contemporánea (Madrid, 1953).

Fazendo uma comparação simples, o jovem crítico semelha a um cantor no início da carreira, quando elege um cantor famoso como seu modelo. Seria esta uma fase de imitação até natural, a qual, à medida que passa o tempo, o jovem cantor vai adquirindo voz própria, encontrando finalmente seu caminho no espaço musical.O crítico já experiente sofreu influências, teve suas preferências por certos crítico e isso pode-se fazer notar até nos seus escritos de início de atividade. É que não podemos fugir à nossa formação, às nossas leituras teóricas com as quais mais nos identificamos, embora isso não signifique que possa haver evolução, ou melhor, mudança de direção nos métodos e correntes do pensamento crítico, assim como pode haver mesmo interrupção da atividade de um crítico, o que ocorreu com Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde) que da crítica militante do Modernismo, passou à produção de pensador e líder católico, no que muito o ajudou a sua grande erudição e os variados campos do conhecimento que dominava bem e com grande talento e capacidade de polígrafo. É bem verdade que, no Jornal do Brasil, de quando em quando, vinha ele com sólidos artigos focalizando questões de crítica e teoria literária.

Porém, é de bom alvitre que não se deixe levar pela mera opinião de terceiros, uma vez que, no campo da judicatura crítica, o que vai prevalecer são dois aspectos básicos: a formação cultural do crítico e sua personalidade literária, sua capacidade de ser original e criativo e o nível de seus estudos e pesquisas. Por outro lado, ninguém há de moldá-lo nos seus objetivos traçados, em suas ideias com intenção renovadora de ir a fundo no fenômeno estético. Só o tempo dirá até que profundidade alcançaram  seus estudos, os autores pesquisados e seus silêncios sobre outros autores, assim como sua contribuição aos estudos realizados durante a sua vida útil na função espinhosa e muitas vezes ingrata e mal compreendida de crítico. Será entendido por alguns, mal interpretado por outros e até desprezado por outros mais. A história da crítica literária em nosso país está apinhada de casos dessa natureza, de polêmica homéricas, de diatribes, de inimizades e, por incrível que pareça, de reconciliações.

O seu maior compromisso, em questões de crítica, estará vinculado à sua visão de abordar obras e temas literários e de fazê-lo com a maior seriedade possível em se tratando de uma atividade intelectual que agrada a egos, causa melindres, provoca frustração, despeito, inveja e até ódio. Essa dimensão pessoal, personalista e destruidora não deve fazer parte do exercício da crítica, mas seres humanos que somos, uma vez ou outra caímos  na fraqueza das vaidades e a literatura, neste caso, por instante, perde seu brilho e o sortilégio de seu renovada sensação do mistério da obra literária.

Espero, prezado jovem, que alguma diretriz ou um pouco de minha experiência venha a contribuir para, se assim for de sua vontade, vir fazer parte dos que, como condição primeira de gênero de escrita e de atividade intelectual, fizeram a opção pela leitura de obras como possibilidades de aproximação interpretativa e de fazer outros melhor entenderem a grandiosidade da literatura e de sua importância para uma visão mais densa da vida, dos homens e do mundo.

Permito-me, quebrando o protocolo dos gêneros, finalizar esta carta, com uma bibliografia (vide abaixo) em respeito aos autores citados e não citados no corpo do texto, e ao mesmo tempo  lhe desejo um fecundo caminho de militância crítica.



Com os cumprimentos do



Cunha e Silva Filho





Referência biblliográfica:





AMOROSO LIMA, Alceu. Quadro sintético da literatura brasileira, 3 ed. ver. e aumentada. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1969.

AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da literatura. 6 ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1984.

.BONET, Camelo. Crítica literária. Trad. de Liz Aparecido Caruzo. Editora Mestre Jou, 1969.

CARLONI, j.c. et Flloux, Jean-C. La critique littéraire. 5ème édition revue. Paris: Presse Universitaires de France, 1966.

CULLER, Teoria literária: uma introdução. Trad. e notas de Sandra Guardini T. Vasconcelos. São Paulo: Beca Produções  Culturais Ltda, 1999.

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma orientação. Trad. de Waltensir Dutra. Martins Fontes: São Paulo, 1997.

________________. The function of criticism. – from the Spectator to Post-Structuralism. Thetford, Norkolk: Thetford Press Ltd., 1984.

GRAY, Martin. A dictionary of literary terms. 2nd edition. 3rd impression. Essex, England: Longman York Press.1994.
COSTA  LIMA, Luiz (org.). 2 vols. Teoria da literatura em suas fontes.2 ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1983.
 MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 6 ed. São Paulo: Cultrix, 1992.

MONDIN, Battista. Curso de filosofia – os filósofos do Ocidente. Vol. 1. 2. Ed São Paulo: Edições Paulina, 1981.

ROGER, Jerome. A crítica literária. Trad. de Rejane Janowitzer. Rio de Janeiro: Difel, 2002.

SOUSA, Roberto Acízelo de. Teoria da literatura. 3 ed. São Paulo^Ática, Col. Princípios, 1990.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Violência, crimes hediondos e modernidade no Brasil




Cunha e Silva Filho



Não há como negar que o país, não obstante os avanços conquistados em alguns níveis sociais, sobretudo das classes rotuladas de desfavorecidas, os muito pobres e os que saíram da extrema pobreza, a inserção da sociedade civil no circuito do consumismo trazido pelo capitalismo desenfreado das três últimas décadas e em ritmo crescente teve forte influência em mudanças de padrões de comportamento do indivíduo, sobretudo oriundos das nações mais adiantadas do planeta e, em particular, dos EUA via diversas formas de mídia, tendo à frente a internet e os outros meios de comunicação hoje amplamente interconectados, de tal sorte que a televisão, o celular, os mais diversos gadgets que dia a dia estão invadem nosso país, todos eles visando a dar acesso de informações em nível interplanetário a seus usuários. São mudanças radicais e imediatas que os mais velhos não conseguem acompanhar nem mesmo assimilar.

Um país como nosso, que ainda mantém alto índice de assimetrias sociais, culturais, econômicas e de baixo nível de escolaridade e de qualidade de formação ainda muito desfavorável em relação às nações adiantadas, dificilmente consegue o equilíbrio necessário no inter-relacionamento entre seus habitantes, divididos que estão pelo fosso enorme das mencionadas assimetrias. Em outras palavras, o país, em algumas áreas de sua estrutura sócio-cultural, mostra-se em plena sintonia com o mundo avançado na tecnologia e, em outros domínios da vida social e da estrutura do Estado, bastante atrasado, como na saúde pública,  na segurança,  nos transportes.
O Brasil, enquanto funciona burocraticamente com serviços de alta tecnologia para movimentar parte de sua máquina do Estado, por outro lado sofre a defasagem de oferta de qualidade na educação fundamental e média de nossa escolas públicas, e de parte da privada. Temos universidades com quadros de professores de alta competência e ao mesmo tempo nos faltam infraestrtura de condições de trabalho, plano de carreira que não sofra com o tempo achatamento salarial, para que seus mestres possam transferir conhecimento e desenvolver melhor nível de pesquisa  inicial (iniciação científica)  na graduação  e em nível  de pós-graduação, além de sobre os mestres recaírem problemas que interferem profundamente na formação dos estudantes, como salários ainda não compatíveis para a relevância da missão dos docentes.

Antigamente, costumava-se usar a expressão “os dois brasis’, i.e., o Sul, adiantado e o Norte, atrasado. Isso não cabe mais hoje. As realidades se misturam e, tanto uma região quanto outra apresentavam e ainda apresentam disparidades em setores múltiplos, quer dizer, o arcaico tanto pode se divisar em alguma parte de regiões mais adiantadas, quanto o moderno em regiões subdesenvolvidas. Tudo depende do setor e das condições de cada região.

Bem, todo esse pano de fundo, serve neste artigo para ressaltar duras realidades por que está passando o nosso país. A modernidade de que falo aqui está conexionada com componentes de vida que surgem de várias situações de vida social, as quais estão ligadas a valores materiais e morais, tendo como epicentro  o sistema capitalista gerador simultaneamente de formas hedonistas de vida e de individualismo que, por sua vez, propiciou a   banalização  da vida em  variadas formas de convivência,  seja  interpessoal, de amizade,  de emoções,  mesmo   diante da dor alheia.  Vivemos uma fase crucial  do "eu sozinho", do descarte de quem  não nos pode oferecer  nada, sobretudo materialmente.
. Vivemos a desenfreada corrida da competição em direção ao  supremo valor atribuído aos que supostamente mais são dotados na ordem de seleção natural da pessoa humana -  espécie de neoevolucionismo darwiniano  na sociedade material-virtual.

Isso que os ingleses chamam de “rat race”, pela própria inerência de sua natureza competitiva, é profundamente desumano e aniquila qualquer resquício de natureza sentimental e emocional. O que impulsiona seus seguidores, se assim podemos dizer, obter sucesso e chegar ao pódio.

Só vale para os seus adeptos e admiradores se o competidor chegar primeiro, mostrar que é melhor, que sabe mais, que tem mais competência. Não existe um meio termo e a plateia que o aplaude só tem olhos para ele. O resto se torna escória, figura raté como diria o grande crítico social Lima Barreto (1881-1922) em Os Bruzundangas (1922) que estou relendo com prazer, uma caricatura do país da Velha e nascente República e um prognóstico de um Brasil “país do futuro,” com tantas semelhanças ainda em vigor para vergonha de nossa decantada “modernidade”

Ninguém quer saber dos decaídos da vida. A sociedade das celebridades e do idiotia do efêmero – e isso vale para o espaço universal das sociedades civis afluentes e ditas civilizadas. - que está na moda,  só vale  para os vitoriosos, os quais parecem os únicos em geral  a "merecerem " “ prêmios.

Não é de admirar que, homens e mulheres, cada qual a seu modo, sendo cercados por todos os lados por essa aparente e ilusória realidade real-virtual, tentarão buscar, por todos os meios, sobretudo os ilícitos, os criminosos, os  hediondos, os expedientes da força que atos indignos passam a exercer num país de impunidade de leis anacrônicas.  E  por isso mesmo é que falo de assimetrias de realidades sociais brasileiras,  que  permeiam   a intimidade de  lares mal construídos. Lares  construídos sobre  alicerces da imoralidade, do interesse, da ausência do amor. Lares construídos   sem a cumplicidade sadia e duradoura, daí resultando  a previsibilidade  dos mais abomináveis crimes que o ser humano  possa  cometer.
Doente está a nossa sociedade, campeã  da impunidade, da certeza de  que pode matar e não ser punida de acordo com a gravidade do delito, sociedade que se encontra num emaranhado de leis e de brechas legais que fazem de um assassino de trânsito, de um assaltante desalmado, de um monstro, homem ou mulher, um bicho capaz de esquartejar um ser humano, matar uma crianças, um adultos, uma velho.

Quem acompanha a crônica policial no país sabe que, dia após dia, está em níveis insuportáveis o cotidiano da sociedade brasileira. Nem seria preciso e urgente a pena de morte para os grandes crimes. Basta que o criminoso cumpra a sentença do juiz na inteireza de sua duração legal, sem brechas, nem progressões,nem tampouco o desmoralizado  conceito de “bom comportamento,” que não passa de uma hipocrisia legal.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Um poema de Rudyard Kipling (1865-1936)





The children’s song



Land of our Birth, we pledge to thee

Our love and toil in the years to be

When we are grown and take our place

As men and women with our race.



Father in Heaven who lovest all,

Oh, help Thy children when they call;

That they may build from age to age

An undefiled heritage.



Teach us to o bear the yoke in youth,

With steadfastness and careful true;

That, in our time, They Grace may give

The Truth whereby the Nations live.



Teach us to rule ourselves always,

That we may bring, if need arise,

No maimed or worthless sacrifice.



Teach us to look all our ends,

On Thee for judge, and not our friends;

That we, with Thee, may walk uncowed

By fear or favour of the crowd.



Teach us the Strength that cannot seek,

By deed or thought, to hurt the weak;

That under Thee, we may possess

Man’s strength to comfort man’s distress.



Teach us Delight in simple things,

And Mirth that has no bitter springs;

Forgiveness free of evil done,

And Love to all men ‘neath the sun!



Land of our Birth, our faith, our pride,

For whose dear sake our fathers died,

Oh, Motherland, we pledge to thee

Head, Heart and Hand through the years to be!





A canção das crianças



Pátrio berço, a ti dedicamos nosso amor e labuta

À medida que crescermos e assumirmos nosso lugar

De homens e mulheres em nossa pátria.



Ò Pai Celestial, que a todos amais

De vossos filhos atendei aos apelos
A fim de que possam todos, de geração em geração,

Uma herança de pureza construir.



Da juventude o jugo ensinai-nos a suportar

Com firmeza e verdade escrupulosa

Para que, em nossa época, Vossa Graça

A Verdade possa realidade tornar a vida das Nações.



Ensinai-nos, dia e noite, e sempre, a disciplina,

O equilíbrio e a decência

A fim de que possamos evitar, se necessário,

Qualquer sacrifício inútil e dispensável.



A olhar em todas as direções ensinai-nos

Tendo Vós como juiz e não como nossos amigos,

Para que, junto a Vós, caminhar possamos protegidos

Sem medo ou favor da multidão.



Mostrai-nos a Força que impeça de,

Por atos e pensamentos, os fracos maltratar

De sorte que, sob Vosso amparo, possamos dispor

Para confortar as desgraças do homem da força do homem.



Ensinai-nos a ver as Delícias nas pequeninas coisas

A Alegria sem o travo das amarguras

O Perdão livre de todos os males perpetrados

E o Amor a todas as criaturas debaixo do sol!



Pátrio berço, nossa fé, nosso orgulho,

Por tua causa amada morreram nosso ancestrais

Oh, Mãe-Pátria, a ti dedicamos, unidos,

Cabeça, Coração e Mãos por longos e longos anos vindouros!





                                                                                                          (Trad. de Cunha e Silva Filho)



domingo, 10 de junho de 2012

Idiossincrasias de um leitor




Cunha e Silva Filho



Uma vez escrevi um artigo no qual falava da maneira como lia um jornal, por onde começava, por onde terminava, o que lia no meio do jornal, essas coisas que ninguém sabe ou pode explicar direito, pois o cronista pode inventar modos de ler ou de escrever ou de até inventar autores e obras assim como dizem que o escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) fazia com a sua literatura. No fundo, talvez, tudo não passe de uma questão de gosto, de preferências ainda que muitas vezes anárquicas, volúveis, infiéis, passageiras ou contínuas (por quê não?).

Contudo, aqui não pretendo me limitar ao exemplo do jornal que, aliás, leio mais do que revista. Dizem os grandes escritores que, invariavelmente todas as manhãs, leem os jornais, não um jornal, já que um só não lhes satisfaz a sede das notícias ou das mesmas notícias escritas de forma diferente e com propósitos também diferentes que tanto gosto fazem, sobretudo pelos editoriais, aos analistas do discurso.

Recorramos, agora, a algumas passagens da memória de leituras de jornais, não lhes fazendo a síntese, o que me é quase impossível dados o tempo longo decorrido e os temas variados e por vezes complexos com que os seus autores os abordavam. Forçando a memória, me lembro da Última Hora, que li muito nos anos setenta, aproveitando as viagens de ônibus em direção a uma escola estadual muito distante.

De duas colunas gostava, a de Afrânio Coutinho (1911-2000) que, em geral, falava de literatura, teoria literária, educação e com frequência tinha uma palavra de defesa pela melhoria do ensino no país, por melhores salários do professor em todos os níveis, e a de uma senhora - a Sandra Cavalcanti - que para mim escrevia com muito brilho, não entrando nesse juízo na questão das matérias tratadas nas suas crônicas Muita gente falava mal dela associando-a a um fato ou boato que, por algum tempo, causava mal-estar na política carioca. Afirmavam seus adversários que tinha sido responsável por desaparecimentos de mendigos afogados no rio Guandu no tempo em que era governador da ex-estado da Guanabara, Carlos Lacerda (1914-1977). Nunca acreditei nisso nem acredito agora tampouco. Sandra Cavalcanti era uma exímia jornalista, de estilo claro, impecável, fluente, original e de leitura agradável. Está hoje bem esquecida.

Carlos Heitor Cony era outro colunista de mão cheia, corajoso, principalmente durante o primeiro ano da ditadura militar, cujos artigos saídos, primeiro, no Correio da Manhã, foram, em 1979, reunidos em livros em duas partes, sob o título O ato e o fato, publicados pela Civilização Brasileira. Jornalista com uma capacidade de estilo de um ficcionista de amplos recursos literários. Mas, nele me agradava sobremaneira a coragem de discutir seus temas, sobretudo políticos. Gosto mais dele daquela época do que de hoje na sua mini-coluna na Folha de São Paulo.

Não posso esquecer de, mesmo em memórias desordenadas, das leituras que fiz do colunista Hélio Fernandes, na Tribuna da Imprensa, com seus longos e destemidos artigos atacando as ações dos governos militares. Que fôlego de grande jornalista me revelava ele como alguns outros da época que tanto se arriscaram em defesa da volta do país a um estado democrático. Onde estão agora os continuadores desses intrépidos jornalistas que tanta falta nos fazem, sendo um dos últimos o saudoso Fausto Wolf.(1940-2008)?

Do Jornal do Brasil, dos tempos áureos, me deliciava com os artigos de Alceu Amoroso Lima (Tristão de Athayde – 1893-1983) tanto os de natureza política quanto de natureza literária. Que maneira singular de escrever! Parecia que, ao lermos um artigo dele, íamos aprendendo a escrever melhor em nosso próprio estilo de escrita.

Outro, era o grande jornalista e também escritor Barbosa Lima Sobrinho (1897-2000), que me enchia de orgulho pela coragem e desassombro de suas posições, e aqui tão ousadas quanto as do crítico e pensador Tristão de Athayde. Outro mais eram os artigos fascinantes e independentes de Nelson Werneck Sodré, que lia sempre com o maior deleite. Este último, graças a Deus, ainda se encontra vivo. Do Jornal do Brasil, ou como era mais conhecidos pelos aficionados, do JB, acompanhava as crônicas de Carlos Drummond de Andrade, crônicas que me davam a forte impressão de que eram escritas por um escritor e poeta que estava atento a tudo o que interessava ao Brasil.

Ele era atualizadíssimo, tanto no que concerne a novas formas de linguajar, de comportamentos, de modos de vida moderna, por exemplo, dos jovens, quanto pela suas veementes críticas a erros e desacertos governamentais em várias questões que diziam respeito à defesa de nosso direitos de nação e de soberania da vontade popular. Apontava os erros e propunha sugestões de como solucioná-los. Drummond, que agora, completará 112 anos de seu nascimento, será o autor homenageado na décima edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).

Ainda no JB, Caderno Ideias, não esqueço os inúmeros artigos do jovem ensaísta, crítico, historiador e pensador José Guilherme Merquior (1941-1990), um dos mais preparados ensaístas que o país já teve em todos os tempos, com obras que ultrapassaram as fronteiras nacionais, posto que, em seu país, fosse alvo de crítica em virtude de suas posições de liberal social ou por ter seu nome associado à função de assessor de Leitão de Abreu, (1913-1992), que foi ministro da Casa Civil do presidente Médici (1905-1985). Merquior, depois, passou a escrever uma coluna no Globo, chamada, se não me engano, O mundo das ideias, sempre escrita com aquele mesmo vigor, erudição e independência intelectual.

Anos atrás, também era assíduo leitor do Jornal de Letras, dos irmãos Condé. Ia logo para a coluna de Assis Brasil, sobre Literatura brasileira hoje, que li enquanto durou..

Outra época tinha a mania de ler um jornal americano publicado no Rio e talvez em São Paulo, não sei ao certo. Chamava-se Latin American Daily News, onde, numa coluna, escrevia com muita verve um talentoso jornalista americano, Art Buchwald (1925-2007).

Por muitos anos, li também uma revista americana de orientação evangélica, de título The Plain Truth,do editor Pastor Louis Armstrong, há muito falecido, mas confesso que, embora algumas matérias fossem culturais e não rigorosamente religiosas, eu a lia para treinar a minha compreensão escrita em inglês.

No Piauí, durante um largo tempo, li muito o jornal Estado do Piauí (Teresina), de Josípio Lustosa, onde meu pai escreveu por muitos anos com aquela sua pena fluente, límpida, correta e, com o já salientei em vários momentos, com uma independência e uma coragem sem precedentes na historia do jornalismo piauiense. Com ele aprendi muito, principalmente não ser hermético nem escrever com frieza de objetividade. Com ele aprendi também a valorizar mais os estudos históricos, sociológicos, culturais e o amor à democracia, à liberdade de pensamento, o horror às injustiças e o respeito à dignidade humana.

Quanto a leitura de livros, sou daqueles que leio mais de um livro ao mesmo tempo. Ainda que seja uma ou duas páginas, vou lendo, ora um, ora outro. Gosto de combinar a leitura de ficção, com a de ensaio. Às vezes, deixo o que estava lendo pra depois. Pego outro livro, e mais outro, e mais outro. No fim, sinto-me perdido e um pouco amargurado de não poder concluir logo a leitura de todos os que, por grupo, escolhera para leitura. O diabo é que ainda tenho que escrever os meus próprios textos, fazer uma tradução, ler artigos em blogs, comentar, quando possível, um artigo ou uma crônica, ou um ensaio que me chamaram a atenção. Tenho um horário de leituras e estudos a que nem sempre obedeço. Há sempre uma novidade que aparece para atrapalhar minha programação.

A leitura é o maior combustível de quem escreve. É um hábito contínuo, persistente, sem retorno.É um bem à mente e ao corpo. Um forma de dar sentido e direção à brevidade da vida.



quinta-feira, 7 de junho de 2012

Síria: visões de um representante em meio a atrocidades




Cunha e Silva Filho



Não concebo consistência alguma entre enviados da ONU e de seu Conselho de Segurança para mediarem os angustiantes conflitos entre o ( des)governo sírio e os indevidamente denominados rebeldes. De rebeldes nada têm de um prisma de reivindicações justas e motivos de enfrentar o ditador Bashar al-Assad.

Esses grupos que formam a oposição contra o governo ilegítimo e opressor não podem ser rotulados simplesmente de rebeldes, porquanto, no mínimo, o que podem representar é a indignação, o choro dos ofendidos e o luto da sociedade civil que, infelizmente, dividida está contra os crimes do ditador. Rebeldes, se assim fossem entendidos pelos observadores sérios e isentos, teriam uma conotação de grupos guerrilheiros, de terroristas, de desordeiros da pátria que se pusessem em armas frente a um governo legítimo e aprovado pela maioria do povo, não aquele que ali está, imposto pela força de sucessões ilícitas, com votos fraudados e partido regulado pelo arbítrio de tiranos fantasiados de governante. Ao chamar a oposição de terroristas que aspiram às liberdades democráticas e de condições dignas de vida para sua população, o ditador de plantão está se utilizando das mesmas estratégias do sanguinário e psicopata Nero,conhecido pela sua crueldade e loucura, que cometeu duas abomináveis crimes: o primeiro matar a própria mãe; o segundo, igualmente horripilante, foi mandar incendiar Roma e pôr a culpa nos desprotegidos e perseguidos cristãos.

Não devemos subestimar o Conselho de Segurança da ONU que, bem ou mal, tem se portado segundo os seus rituais diplomáticos em defesa de nações em conflitos diversos, i.e., procurando, pelo caminho da negociação, uma saída para os crimes inomináveis cometidos pelo governo sírio, não somente no caso da Síria mas de outros países pelo mundo afora.

Acertada foi a ida de Kofi Annan à Síria. Corretos foram os outros concursos de delegações como observadores do desenrolar do conflito  no sentido de dirimir as desavenças entre a oposição e a ditadura através de uma solução que não descambe para uma guerra civil. Entretanto, se observadores e líderes de negociação por várias vezes têm procurado alguma via de resolver grande parte da questão síria,  não podemos nem mesmo afirmar que o país praticamente não se encontre em situação concreta de guerra civil. As vítimas fatais já chegaram a cifras altíssimas O trágico é que as matanças não são apenas entre homens armados contra soldados armados até os dentes, de vez que o exército sírio é uma instituição organizada, bem equipada e treinada, mas crimes ignóbeis contra inocentes, crianças, velhos atacados nas próprias residências. Ou seja, são crimes de natureza genocida.

Cidades importantes estão sendo destruídas, suas construções nas suas diversidades de funções e serviços, estão sendo bombardeadas. Como pode haver vida normal, em cidades que devem ter a sua rotina continuada no trabalho, em casa, na rua, nos edifícios, no lazer?

Um novo enviado desta a vez à Síria é um brasileiro, Paulo Sérgio Pinheiro, que se incumbirá de investigar o massacre de Houla. Ele antecipou alguns pontos de vista que, a meu ver, pouco trarão de soluções imediatas. Noto que, na entrevista que ele concedeu ao Globo (02/06/2012) como presidente da mencionada comissão de investigação, suas palavras me soaram algo realistas e sem objetividade prática exigida pela urgência da delicada questão síria. Até pressenti nele um tom algo indulgente, pouco animado quanto às metas visadas na sua missão. Ao declarar que “solução militar” não serve para terminar o conflito, descartou logo essa possibilidade de intervenção que, segundo ele, iria mais acirrar os ânimos belicistas de parte a parte. Para ele, evitar a morte de duzentas mil pessoas, caso o país partisse para a guerra civil, seria muito melhor do que a quantidade de mortos até agora, ou seja, em torno de dez mil . Não vejo assim. A morte de uma pessoa é tão perniciosa  quanto  a de muitas. E mais, de grão em grão a galinha enche o papo. Se o conflito em tom menor se prolonga muito, num certo tempo milhares de vítimas já serão ceifadas. Mas, meu Deus, se tantas tentativas de entendimento com as lideranças do governo já foram feitas, se acordos de cessar-fogo foram interrompidos e desrespeitados pelo governo que, assim , perdeu credibilidade, o que o representante brasileiro espera? Que a pax caia das nuvens? Que os beligerantes acabem por se entenderem e se darem as mãos ?

Se a diplomacia da ONU, suponhamos, não lograr pôr fim ao confronto armado em que a inferioridade bélica da oposição é gritante e extremamente vulnerável, seria lícito deixarmos os revoltados, os adversários do ditador jogados às feras de Nero, com toda uma população amordaçada pelas ações fratricidas de Bashar al-Assad que demonstra estar acima das leis internacionais e dos limites e convenções que povos em guerra devem respeitar? O atual nível de carnificina choca o mundo civilizado e amante da democracia e dos povos não submissos a tiranias. Só a China, Cuba, Rússia, Coreia do Norte, o Afeganistão, o Irã, por motivos obviamente geopolíticos e econômicos, não parecem ter o sentimento humanitário em face da barbárie.

Se o brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro só – quero crer – vê alguma solução por meios de negociação, então, estará chovendo no molhado, porquanto o ditador indica firmeza de não determinar um imediato cessar-fogo. Para o representante brasileiro o exercito da Síria não é como o da Líbia. Ora, se minimizou o exército da Líbia, isto equivale a uma ironia. Se assim o é, mais razões temos para jogarmos pesado com um país com mais poder de fogo sobre a sua a sociedade e, portanto, digno de ser barrado pelas forças internacionais. A união destas fará frente às prepotências de um tirano fora da lei.

Os EUA, não obstante tenham sido responsáveis por outras graves ilegalidades internacionais, hajam  vista na Guerra do Golfo, no Iraque e na Líbia, para citar alguns exemplos, ainda dispõem de liderança e grande poder dissuasório militar, junto com os países-membros da ONU e da OTAN, e estão, por conseguinte,  em condições de depor Bashar al-Assad.  Hillary Clinton, Secretária de Estado dos Estados Unidos, já deu há pouco seu recado : “O ditador deve deixar o governo.” Eu acrescentaria, não basta deixar, porém  de ser responsabilizado por todas as mazelas que fez a  Síria sofrer  em quinze meses  de combates. .Para esse  ditador não pode haver a mínima ideia de perdão ou anistia. Entre parênteses: a tevê agora mesmo comentou que até os observadores foram alvos hoje e o Secretário Geral das Nações Unidas, o sul-coreano Ban Ki-moon, afirma a ilegitimidade do governo sírio. Protelações são inócuas diante da indiferença do tirano. Ele não está livre das sanções rigorosas  do Tribunal Penal Internacional. Motivos para julgamentos ele os tem e muitos.



domingo, 3 de junho de 2012

Defesa de um intelectual piauiense



Cunha e Silva Filho





Mais de um vez me vejo instado a dar minha opinião contra a injustiça imerecida e leviana, e desta vez da injustiça duplamente maléfica, que é a do apagamento de fatos e feitos do engenho humano, de quem tem ainda bem iluminada a chama de acreditar na possibilidade de nunca se deixar datado em sua práxis cultural e dos saberes regionais e universais.

Desrespeitar ou ignorar a obra e o nome com raro brilho conquistado pelo professor M. Paulo Nunes, sobretudo a partir de sua regresso de Brasília, depois de uma longa permanência ali, para dar continuidade a metas e projetos de realizar-se como escritor e educador tendo a cultura piauiense como seu maior objetivo primacial de vida no plano intelectual, não faz sentido e só prejudica a imagem de um estado que, em geral, é carente de maior visibilidade no país.

Não faz bem a grupos de artistas piauienses procurar indispor-se com uma figura que representa a inteligência do Piauí em tantos dados simbólicos da cultura do estado, pelo que imensamente já realizou no campo intelectual e em realizações concretas na sua acepção mais genuinamente piauiense. Uma vez, um membro da Academia Brasileira de Letras me confessou que Paulo Nunes, pelo nível de cultura e sofisticação que alcançou, possa por vezes se sentir um pouco deslocado num meio ainda em alguns aspectos provinciano.

Além de ser uma reação intempestiva e desabonadora a que foram levadas algumas pessoas que se fazem identificar como gente ligada ao mundo artístico local, esses supostos artistas desrespeitaram um eminente intelectual, num desacato à função orientadora ou mais consultora, conforme lembra o professor Cineas Santos em defesa do Presidente do Conselho de Cultura do Piauí.

Ora, senhores detratores do saber alheio, todos temos conhecimento de que o crítico M. Paulo Nunes já é uma pessoa idosa, mas isso não nem deve ser nunca motivo de um artista (?!) escarnecer, como demonstração da mais rasteira ignorância, da condição de idade elevada de M. Paulo Nunes, inclusive infringindo um dos princípios fundamentais do Estatuto do Idoso, que é o de desrespeito ou injúria à imagem dos mais velhos, quando países de cultura desenvolvida, como o Japão, tratam seus idosos com o maior carinho e reverência. Grandes universidades nos EUA e na Europa fazem questão de nunca se desligarem da orientação e dos préstimos valiosos de seus scholars, ao contrário de nosso país que não tem apreço em geral pelos mais avançados em idade.

No caso desse simplório que fez piada de mau gosto com a idade de M. Paulo Nunes, como se idade mais avançada fosse uma doença, e ainda desinformando toscamente quem o ouvisse de que o ensaísta piauiense só era conhecido por 70% dos piauienses, tenho o seguinte a adverti-lo : o mundo e o tempo nasceram para todos. Se essa sua obtusidade de nascença e falta de neurônios tanto o prejudicam, lembre-se de que o professor M. .Paulo Nunes, além de ser um ilustre intelectual, admirado por muita gente da cultura nacional, jamais caberia na falta de juízo argumentativo de sua estreita cabeça de “artista” apagado e invisível, já que os que conhecem o ensaísta são os que leem, os que amam os livros, os que estudam, os que produzem e levam a cultura piauiense adiante.

O maior exemplo disso é que, nos meios acadêmicos universitários, temos pesquisadores estudando,  elaborando trabalhos de pós-graduação com recortes focando a participação de M. Paulo Nunes na renovação das letras piauienses nos anos 40, ao lado de ºG. Rego de Carvalho, H. Dobal, Celso Barros Coelho, Afonso Ligório, entre outros, conforme também sobre esse tópico se debruçaram jovens ensaístas piauienses, como Halan Silva ( As formas incompletas – apontamentos para uma biografia. Teresina: Oficina da Palavra, 2005) João Kennedy Eugênio e Halan Silva (Cantiga de viver – leituras (Teresina: Fundação Quixote, 2007).Da mesma forma, nesta última obra, entre jovens ensaístas, M. Paulo Nunes assina ensaio de análise do poeta piauiense H. Dobal,

Desta maneira, M. Paulo Nunes, incansavelmente, e até os dias atuais, no jornal na revista, no livro, na conferência leva a cultura piauiense adiante fundamentado numa experiência da sabedoria dos eruditos, dos que leram o mundo naquilo que ele tem de mais profundo em várias frentes do conhecimento humano, de culturas e gerações diversas, de visões polifônicas, de teorias, das artes mais populares às mais requintadas, do teatro clássico, popular de puras raízes, da música, em suas  várias formas, da pintura, da arquitetura, das artes cênicas, do cinema, do contato com as grandes capitais do mundo, do convívio amplo com as melhores inteligências do país, na filosofia, na educação, na política, no direito, história literária, na crítica, no ensaio, na sociologia, na história, na literatura universal, no convívio íntimo de tudo o que se produziu no Piauí pelos seus grandes homens, enfim, nos multifacetados saberes da inteligência humana.

No fundo, as desavenças no Conselho Estadual de Cultura não seriam só isso, mas, quem sabe, cabalar para destituir o atual Presidente e substituí-lo - eis o perigo - por alguém que não estivesse à altura das atribuições de um órgão de alta envergadura cultural. Aproveitando-se da circunstância de que um pretendente a membro do Conselho, não teve seu pleito atendido, o que não poderia acontecer dado que a escolha do Presidente cabe ao poder executivo.

Ora, tal fato gerou ressentimentos e melindres da parte da classe de artistas e é nesse ponto que do ressentimento passou-se à indignação de quem se considerava pouco representado como classe que reivindicava maior voz e vez nas decisões de representação de classe do Conselho Estadual de Cultura, mas em vão, porque desprovida de conhecimento dos valores culturais, das ciências e dos estudos, das leis, das normas e da memória histórico-cultural de uma personalidade que, ao longo de sua atuação como escritor, educador no sentido mais refinado do termo, professor emérito da UFPI e com um extraordinária e invejável folha de serviços prestados à vida intelectual piauiense, somente foi movida pelo bem-estar do órgão que dirige com dignidade e que já faz parte de sua vida e de seu espírito de escol. A revista Presença, já no seu número 47, é a mais viva prova desse escritor tão representativo de seu povo e de suas tradições.

A esta altura em que se encontra com o seu tempo de fecunda e vibrante lucidez de homem de letras apoiado em anos e anos de trabalho e dignidade de ações, de estudioso, de um disciplinado em tudo que faz com consciência plena do alcance maior de sua missão, o professor M. Paulo Nunes sem favor merece, por tudo que fez pelo Piauí, no domínio da inteligência e do seu desenvolvimento social, cultural, histórico e artístico e o que mais possa ser objeto de sua semeadura em outras direções do seu pensamento crítico-cultural da vida contemporânea, a posição que atingiu, na condição ímpar de ser talvez uma das mais respeitadas figuras piauienses da atualidade.

sábado, 2 de junho de 2012

Um poema de Alfred de Musset (1810-1857)




Tristesse


J’ai perdu ma force et ma vie

Et mes amis et ma gaieté;

J’ai perdu jusqu’à la fierté

Qui fasait croire à mon génie.



Quand j’ai connu la Verité,

J’ai cru que c’´était une amie;

Quand je l’ai comprise et sentie,

J’en était déjà dégoûté.



Et pourtant elle est éternelle,

Et ceux qui se sont passés d’elle

Ici-bas ont tout ignoré.



Dieu parle, il faut qu’on lui reponde.

- Le seul bien qui me reste au monde

Est d’avoir quelquefois pleuré.





Tristeza





Minha vida e minhas energias dissipei

Minhas alegrias, minhas amizades

Até no próprio orgulho, que me fez crer

ser gênio, naufraguei.



Quando a Verdade conheci,

Ganhar julguei uma amiga

Quando aquela compreendi e a percebi,

Conheci com ela a decepção



No entanto, sendo ela eterna,

Aqueles que a conhecem

Cá na Terra a esqueceram por completo.



Deus fala. Urge que se Lhe responda.

- O único bem que do mundo sei

É algumas vezes chorado haver.



                                                        (Trad. de Cunha e Silva Filho)