Cunha e Silva Filho
Naquela velhíssima Casa de Estudante da Rua Senador Pompeu, chamada CESB (sigla para Casa do Estudante Secundário do Brasil), Centro do Rio de Janeiro, ano de 1965, para onde fui graças à bondade de um amigo de Amarante que nunca mais vi, e sobre o qual nem mesmo sei se ainda vive no Rio ou se voltou ao Piauí. Infelizmente, nunca mais soube dessa criatura séria e solidária. Só espero que tenha sido muito feliz na vida.
Eu me preparava para o vestibular da Faculdade Nacional de Filosofia, curso de Letras. Como não tinha dinheiro para pagar o chamado curso pré-vestibular, a única saída que encontrei era estudar sozinho confiante também no meu preparo trazido das escolas de Teresina.
O exame do vestibular era realizado pela própria faculdade escolhida e constava de três provas: língua portuguesa, língua latina e língua inglesa, esta última compreenderia uma prova oral, um ditado, e uma prova escrita. As provas escritas, todas discursivas. As questões eram difíceis. A de latim abrangia tradução para o português seguida de questões gramaticais. Não foi fácil. Os examinadores apertavam na rigidez da correção. Preparei-me durante quase um ano e como local de estudos, usava a Biblioteca Demonstrativa “Castro Alves,” na Rua Treze de Maio, também no Centro. Parece-me que a biblioteca pertencia ao Instituto Nacional do Livro. Era excelente, tinha um bom acervo no campo das letras, bons dicionários, boa bibliografia em filologia, gramática portuguesa, literatura portuguesa, brasileira, universal, alguns bons livros didáticos de língua inglesa, de latim. Essa biblioteca não mais existe no antigo endereço. Disseram-me que o seu acervo havia sido transferido para uma anexo da biblioteca do Colégio Pedro II. Não sei se em São Cristóvão ou em outra unidade deste Colégio. Foi uma pena terem acabado com ela.
Certo é que, na Casa de Estudante, aos sábados e domingos, ficava estudando numa mesa grande da sala principal desse precário prédio.
Comigo também, no mesmo horário, compartilhavam da mesa dois colegas que se preparavam para o vestibular. Um, o Marinho, iria fazer exames para engenharia; um outro - o nome dele não me ocorre agora -, para medicina. Ambos eram, como eu, jovens pobres vindos do interior para a grande cidade carioca. Eram bons em matemática, estudiosos e de bom caráter. A Casa naqueles dois anos quase que lá passei, abrigava uns vinte jovens, a maioria de idade próxima. Mas, havia deles que eram bem mais velhos do que eu, aproximadamente de vinte e quatro a não mais de trinta anos. No geral, todos se davam bem e mantinham bom convívio.
Um outro colega já era estudante do segundo ano de engenharia da UFF (Universidade Federal Fluminense), de cujo nome não me lembro mais, sabendo que todos os outros moradores iam passar o Natal em algum lugar, e vendo que eu não tinha para onde ir passar o Natal, chegou-se até a mim e me disse: “Francisco, estou te convidando para no sábado, que é Natal, almoçarmos juntos. Você não vai pagar nada, tudo por minha conta, sim?” O convite inesperado encheu-me de alegria incomum. Aceitei de imediato. Meu colega e amigo se defendia dando umas aulas particulares em cursinho de pré-vestibular, aulas particulares. Assim, ia se defendendo.
O nosso almoço natalino foi num restaurante da antiga Mesbla, na Cinelândia, coração do Rio de Janeiro. Tudo transcorreu muito bem. Conversamos muito e eu particularmente estava muito contente com a companhia daquela amigo. Era um jovem moreno, magro, de estatura média, cabelos meio crespos, de olhar compenetrado, educado, sério, estudioso. Naturalmente, percebendo a minha solidão, a minha falta de dinheiro e sabendo, por observação, que eu era estudioso e com bom relacionamento com os moradores, logo pensou em conseguir uma forma de me tirar da solidão e do isolamento do sagrado feriado natalino. Foi o que fez o meu amigo estudante de engenharia que, hoje, se for vivo, deve estar também aposentado após ter seguramente exercido com dignidade a sua nobre e profissão.
Se não fosse ele, o meu Natal de 65 seria um desastre. Não tinha aonde ir, nem me atrevia a passar – sem ser convidado - na casa de algum parente que morava no subúrbio. Naquele período, deixei de frequentar casa de parente. Amargar um Natal sozinho no velho prédio da CESB era a última coisa que queria. Por isso foi tão providencial o convite do meu colega de moradia. Principalmente, porque esse feriado sempre me fora especial no tempo em que estava com meus pais lá em Teresina, com um Natal e a galinha assada esplendidamente preparada por mamãe.
Com hoje está tudo tão distante! Não, porém, sem as imagens daqueles anos de infância e adolescência, nem sem o badalar dos sinos da Igreja de São Benedito à meia-noite para a Missa do Galo. Não, porém, sem a alegria da ceia natalina, ouvindo as vozes queridas de papai e de mamãe e o burburinho álacre das vozes dos meus irmãos. Tudo se foi com o tempo. Tudo se foi com o silêncio e a eternidade querida daqueles que me deixaram na orfandade física e na orfandade da memória. Foram-se contra a minha vontade, mera vontade de um simples vivente também marcado com a natureza do efêmero.
Aquele almoço no restaurante da Mesbla com o jovem estudante de engenharia foi mesmo um presente de Natal que, de certa maneira, vinha suprir o vazio de minha imensa solidão na grande cidade.
Ontem, um amigo de quem sempre extraio saberes empíricos me disse uma frase que me tocou: "São os pequenos gestos que revelam o caráter de um homem, pois geralmente são expontâneos." O seu amigo engenheiro mostrou ser, entre outras coisas, solidário e leal. Qualidades raras atualmente.
ResponderExcluirPrezado Nelson Rios:
ResponderExcluirÉ verdade o que diz a frase do seu amigo, que deve ser pessoa inteligente e espirituosa. São "os pequenos" gestos" que preenchem toda uma solidão.
Como você pode ver, estou afastado, por um período, da minha Coluna, realizado trabalhos de pesquisa que me tomam bem o tempo. Mas, você sabe, acostumei-me tanto com o ato de escrever nesta Coluna e em geral, que me é difícil não estar produzindo para esse obejtivo de falar com os meus leitores, quer encotre eco nas minhas palavras, quer não, não me importa, porquanto nem tudo que perfilhamos pode encontrar ressonância de pensamento comum com algum leitor.
Um abraço do
Cunha e Silva Filho