quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Literatura brasileira: um certo abuso de um tema e de uma forma

Cunha e Silva Filho


CONSIDERAÇÕES GERAIS. Não obstante este artigo, a princípio, não tenha por objetivo desenvolver uma discussão mais ampla da fase em que se encontra a produção da literatura brasileira contemporânea, alguns tópicos me instigam a fazer comentários que julgo pertinentes no que respeita aos gêneros ficcionais - romance, novela, conto e, de passagem, à poesia, conforme posso vislumbrar a partir do que tenho lido, notadamente quanto a questões do tema e forma, entendida esta como linguagem e técnicas narrativas.
Grande parte das melhores e mais recentes histórias da literatura brasileira de que hoje dispomos, quando publicadas em sucessivas edições, não têm dado conta, com maior amplitude e urgência, da novíssima produção literária, aqui considerando o interregno dos anos noventa até agora. Estou pensando particularmente nas mais famosas delas, a obra coletiva, dirigida por Afrânio Coutinho, A literatura no Brasil, em seis volumes, a História da literatura brasileira, de Massaud Moisés, em três volumes, a História concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi, A literatura brasileira, de José Aderaldo Castelo, em dois volumes, a também coletiva, dirigida por Sílvio Castro, História da literatura brasileira, em três volumes. Ao que tudo indica, os seus autores , com exceção talvez, de Sílvio Castro, parecem que deram por encerrada sua missão.
Sabemos que Bosi, autor talvez da mais lida das mencionadas acima, não deu continuidade, nas mais recentes edições, e foram tantas, da produção literária daquele período, ou seja, final do século 20 e primeira década do século atual. É uma pena que as coisas assim tenham ocorrido. É bem verdade que a contribuição da historiadora italiana, Luciana Stegagno-Picchio, autora de uma valiosa obra sobre nossos autores, a sua História da literatura brasileira, cuja segunda da edição, revista e ampliada, data de 2004, infelizmente não poderá brindar-nos com uma nova edição, ainda mais atualizada, por haver falecido. Há algum tempo, me confidenciaram que Eduardo Portella estava preparando uma história da literatura brasileira, assim como Gilberto Mendonça Telles teria dito que estava escrevendo um estudo abrangente de nossa literatura. O poeta Carlos Nejar, tendo escrito sua recente História da literatura brasileira: da carta de Pero Vaz de Caminha à contemporaneidade, prometeu também dar-lhe continuidade enfocando autores da década de sessenta do século passado até nossos dias. Aguardo, pois, que nosso historiadores literários possam dar sua contribuição necessária de, pelo menos, duas décadas para cá.
Convém salientar que, na ficção, felizmente, alguns passos já se deram nesta direção, como é exemplo do pequeno ensaio Ficção brasileira contemporânea (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009, 174 p.) de Karl Erik Schollhammer, docente da PUC-Rio. Neste livro o ensaísta competentemente aborda as mais recentes produções ficcionais da literatura de nosso dias, analisando alguns de nossos autores mais novos e fazendo, alem disso, um mapeamento das últimas gerações, cobrindo não somente os autores principais da chamada geração 90 como ainda da chamada “geração 00” (não sei se a expressão foi cunhada pelo autor do ensaio). Autores dessa “geração 00” entre outros, são Daniel Galera, Santiago Nazarian, Michel Laub, Cecília Giannetti , Verônica Stigger, i. e., um grupo de autores com livros editados já no século atual.
No ensaio, Karl Erik faz sua exposição tendo como premissa a questão do conceito de autor “contemporâneo” e de todas as implicações complexas e por vezes fugidias que o termo evoca provenientes da dificuldade de lidar com aquele conceito, seja do ponto de vista histórico-social, sejas do ponto de vista da situação dos autores em elaborar sua produção diante das opções de visão atual ou não da realidade brasileira, sobretudo quando ainda se tem em vista um outro conceito de alcance também movediço, que é o de “pós-moderno”.
Digno de acentuar no ensaio de Karl Erik é o seu sentido de oportunidade e de atualização (veja-se-lhe a fundamental bibliografia de ficção, no final do volume, onde estão relacionados, a par de autores mais velhos e ainda plenamente produzindo, aqueles da “geração de 90” e da ‘geração 00”, bem como de obras teóricas e críticas), pondo o leitor especializado, estudantes universitários e pesquisadores em sintonia com o que de mais atuante existe agora no panorama heterogêneo da criação literária do país.
Seu ensaio é positivo na medida da em que traz para o debate a questão dos relações entre os novos autores e a realidade editorial brasileira, assim como são prestimosos seus juízos acerca dos novos meios eletrônicos em que a literatura se faz presente, como os blogs de literatura, abrindo um vasto espaço virtual no campo da ficção e, diria, da poesia. A produção literária hoje em dia não pode descartar a interatividade entre autor, leitor, crítico e a atividade editorial, uns e outros não dispensando, na ponta, todas as mídias de que dispomos nos conturbados dias que vivemos.
No tocante ao gênero poético, não conheço ainda uma síntese em livro, semelhante ao trabalho de Erik Karl, que, pelo menos, enfoque, num mapeamento seletivo, os novíssimos poetas da “geração 90 e da geração 00”, para usar as duas classificações que aparecem no ensaio. De certo tal mapeamento de conjuntos de autores mais representativos será um trabalho que exigirá tremendo esforço devido à grande quantidade de poetas novos e novíssimos espalhados pelo país inteiro e muitos, provavelmente, de boa qualidade, a se ver pela leitura de alguns que nos chegam ao conhecimento. O livro de Alexei Bueno, Uma história da poesia brasileira, de 2007, já foi um bom passo nesta direção. Só assim dotar-se-á o leitor ou leitor especializado de um lúcida visão em conjunto do que se tem publicado no país nas duas últimas décadas. A própria Coleção Contemporânea, da Civilização Brasileira, que tem Evando Nascimento como organizador, bem poderia pensar num empreendimento cultural deste porte.
O que se nos apresenta no momento atual é a constatação de que o historiador literário, o crítico e o ensaísta têm pela frente uma tarefa hercúlea dado que a copiosidade de autores de poesia, mais do que na prosa, ou tanto quanto esta, não para de crescer, segundo o próprio Erik Karl declara no estudo.
UM TEMA E UMA FORMA. Após essas considerações gerais, quero, agora, me deter em dois aspectos importantes na construção das obras ficcionais de nossos dias: 1) um certo excesso de personagens desempenhando na narrativa o papel da figura de escritor ou de um professor universitário de letras escritor; 2) um excessivo uso do recurso metaficcional em romances, decorrente, muitas vezes, daquele papel do personagem narrador às voltas com as vicissitudes de quem lida com a criação literária. Uma das consequências disso seria um problema conectado com a função do leitor, reduzindo este a um seleto e elitista grupo de especialistas e teóricos da literatura, e afastando, por outro lado, o leitor comum ou médio que não alcançariam, em geral, os complexos e intrincados mecanismos ou estratégias metaficcionais. Seria isso uma espécie de crise de assunto ou tema no âmbito da narratividade?
Posto sejam recursos explicitamente contemporâneos, segundo aparecem em autores como Ítalo Calvino, Milan Kundera, Doris Lessing em The golden notebook (1962), John Fowles, em The French lieutenant’s woman (1969) Guimarães Rosa, num bom exemplo que é o conto “Corpo fechado” da obra Sagarana ou mesmo de remota data, como, entre outros, podem-se ver em Lawrence Sterne, Machado de Assis, ou implicitamente já possamos encontrá-los em Miguel de Cervantes, em Don Quixote de la Mancha. Esses recursos, predominantemente focados no metatexto, de resto, notáveis como elementos novos acrescidos às técnicas narrativas, na realidade, aprofundam o conhecimento epistemológico do que sejam os fundamentos da criação literária. No entanto, se empregado abusivamente, podem ter efeito negativo na recepção do leitor médio, tendo-se em vista o pressuposto de que a nenhum escritor interessas só o leitor ideal que esteja teoricamente sintonizado com o escritor. Afastam por isso o interesse do leitor comum, que frui e aprecia narrativas mais focadas em tramas da vida humana e na perspectiva existencial como representação de mundos possíveis.
Veja bem, a minha ressalva não se assenta absolutamente na recusa desse tipo - o que seria de minha parte um reducionismo de natureza conservadora -, de narrativa pela narrativa. O que me preocupa é o emprego indiscriminado que alguns escritores de hoje têm feito desses recursos internos tanto no país quanto no exterior, de tal sorte que chega ao cansaço e este se afigura um meio caminho para a exaustão que a ninguém positivamente interessa.
Até me parece, em algumas vezes, que o ficcionista, para ser bem visto pela comunidade literária, o esprit de corps do meio acadêmico-universitário, para dar prova de atualização, de modernidade, deva por obrigação testar sua experiência de docente de literatura (em geral, tais autores são professores de letras) a fim de mostrar-se, reafirmo, em sintonia, ademais, com alguns autores do exterior. Lembro a este escritor no entanto, que uma ficção bem articulada e sem fazer concessões anacrônicas ao Romantismo, Realismo e Naturalismo ou a outros estilos literários, muito bem pode explorar, em linguagem renovada e com originalidade de composição, os velhos (eternos) e novos temas da humanidade, sem que, com isso, possa ser rotulado de passadista. Recorde-se que o antigo e o atual – haja vista o sucesso que têm tido bons autores de romances históricos - podem ser temas do escritor de hoje, desde que a habilidade do artista transforme o antigo em formas novas e até transgressoras, e mais, sem prejuízo de legibilidade do leitor em contato com a obra.
Se a literatura, em qualquer parte hoje, persiste na imitação da imitação, no modismo pelo modismo, creio que chegará a impasses que nenhum crítico ou leitor desejarão para o futuro da narrativa. Quanto mais persistir na estratégia de expressar-se literariamente por hermetismos, a condição literária vai seguramente perder leitores, os quais irão procurar sem dúvida as leituras mais excitantes, como a ficção policial e os apelos e facilidades dos bestsellers estrangeiros.
Ao girar em demasia sobre um mesmo eixo temático do próprio ato de narrar e seus inúmeros percalços, o escritor de ficção tenderá a perder contato com a realidade dos leitores, os quais dele fugirão, uma vez pressentindo tratar-se de obras que para eles não passam de quebra-cabeças ou charadas metaficcionais. O autocentramento, no campo da literatura, não irá resolver todos os impasses epistemológicos sobre as aporias de Sísifo, incapazes de responder plenamente e de vez aos enigmas da criação literária, tal como os surrados problemas da origem da vida ou da existência , ou não, de um Criador do Universo.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Folheando o jornal do dia

Cunha e Silva Filho


Pego um exemplar de hoje, dia 27 de novembro, de O Globo e começo a folhear-lhe todas as seções, como de costume. Procuro primeiro o caderno de literatura, o Prosa e& Verso que passei a ler cm mais assiduidade. Antes, fazia mais com o caderno Ideias de sábado, do JB, que não existe mais impresso. Grande perda para os leitores que, como eu, o acompanhava há tantos anos nas suas varias modificações de formato e de corpo editorial. No domingo, leio o antigo Mais da Folha de São Paulo. Gostava mais do antigo formato e da matéria e alguns colunistas cativos. A gente vai se acostumando com algumas colunas e tem a tendência de não querer delas separar-se. No Ilustríssima, substituto do Mais, há coisas de que gosto, como a oportunidade diversificada que se dá aos colaboradores, mas sinto que há um espaço de preferência do responsável pelo caderno cultural – os artistas das áreas de designers, cartunistas, e assemelhados. Poderia haver mais resenhas de literatura, teatro, cinema, por exemplo.
Depois dessa digressão, tenho uma sensação de que as horas passam mais rápido atualmente em consonância com a pressa dos tempos de agora, quando tudo parece que deve ser resolvido para ontem. O sentido do presente é o do instantâneo. Para onde toda essa pressa quer se dirigir, como se não bastassem os males inerentes aos tempos que correm, dilacerando os convívios e os diálogos vivos entre as pessoas e substituindo-os pelos insípidos contatos virtuais?
Vejo, agora, a manchete, em primeira página, de O Globo aludindo aos tanques e blindados vindos em socorro do Rio de Janeiro aflito. Não era sem tempo essa presença das forças armadas entre nós para assegurarem uma trégua de paz. Oxalá consigam sem muito derramamento de sangue, de parte a parte, e sobretudo de uma parte, a mais sofrida, que é a das camadas humildes dos morros cariocas, mais sujeitas a balas perdidas e a fatalidades.
Fotos de soldados em trajes de guerra contra bandidos da mesma nacionalidade. É trágico, mas é real o momento presente no Rio. Estamos, sim, numa guerra entre filhos da mesma terra, da mesma língua. Aquela cena de marginais em fuga, correndo em disparada, sem norte, quase em fila indiana, pelas ampla e bela vegetação no alto do morro do Cruzeiro, na Penha, bairro da antiga Leopoldina, na tela da TV me lembravam as figuras - às avessas -, molambentas de Antônio Conselheiro.. Aqueles jovens facínoras, vestindo apenas bermudas e sandálias sujas, com os peitos nus e os corpos geralmente esguios, cabeças quase raspadas segundo a moda atual entre os que não podem etnicamente exibir cabelos lisos e longos, formavam um quadro tétrico e patético de seres desarvorados, cujo denomina dor comum é o exemplo sintomático da alienação social. Nas suas cabeças só uma idéia fervilhava: a da fuga desvairada tendo como companheiro um fuzil e comparsas do mesmo destino sem volta e sem esperança.
Lá embaixo, as forças legalistas que tardaram a chegar num país de decisões quase sempre tímidas e adiadas. Governos e governos por aqui passaram. Todavia, as sementes da marginalidade que se estavam plantando insidiosamente em todas as direções do espaço urbano carioca, deram seus frutos que não foram extirpados em tempo certo. Acumularam-se por falta de vontade política. Permitiram-se as construções indiscriminadas nos morros e até na horizontalidade espacial rarefeita dos asfaltos. As sementes tomaram proporções gigantescas com o aumento desordenado de contingentes em série de migrantes, principalmente do Nordeste diante do silêncio e complacência ambígua dos órgãos públicos responsáveis pela política habitacional de planejamento da cidade do Rio de Janeiro.
Perdeu-e, portanto, o controle da ocupação do solo urbano que se estendia, ao arrepio das leis, pelos morros e nos rincões suburbanos e periféricos. Nada quase se fez pra conter as ondas humanas migratórias que, além disso, em obediência natural, posto inconsciente e irresponsável, do “crescei e multiplicai” tomado literalmente do conselho bíblico, inflaram espantosamente a demografia urbana da acidade. As comunidades carentes, construídas, muitas vezes, em espaços promíscuos, separados por vielas e passagens estreitas e perigosas – locus ideal para ali se homiziarem criminosos, foram, desta forma, se avolumando com demandas cada vez maiores de mínima infraestrutura em todos os aspectos. O resultado: a escalada da alta criminalidade do narcotráfico, solta e ubíqua, pipocando sem dó nem piedade de vítimas inocentes no asfalto e nos próprios morros e outros espaços urbanos periféricos. Um parêntese: fica pairando no ar um questionamento sobre as reais origens dos grandes responsáveis por esses molambentos marginais que atuam no mercado ilegal das drogas e dos assaltos. Pergunte-se à população responsável e trabalhadora e ela certamente dirá quem são os chefões e chefetes dessas organizações criminosas. Enquanto o país não debelar essas fontes do alto crime tudo o mais não passará de exibição e paliativo.

A ausência do poder constituído fez tradicionalmente vista grossa a toda essas situação de indigência da lei mesmo diante do caos urbano há tempos instalado na vida carioca. Daí os morros, principalmente, encherem-se de marginais com vontades própria e prepotência. Tomaram ares de superioridade em relação à estrutura da máquina de repressão do Estado brasileiro e mesmo, nos últimos anos, desafiando debochadamente os órgãos de segurança representados pelas polícias militar e civil e até pelas Forças Armadas.
O fato é que a cidade partiu-se em duas, só pra lembrar o título de uma obra de Zuenir Ventura. Os monstros do crime e do narcotráfico não são criações espontâneas. São manifestações da degenerescência do tecido social diante, segundo já referi, das grandes falhas e omissões do poder público que não é o caso aqui de aprofundar, porém muito conectadas à vida dos brasileiros ainda em estado de extrema carência de recursos, de bem-estar social, de desintegração familiar, de educação ainda deficiente, de falta de moradia minimamente humana, e de perspectivas de uma vida decente.
Só quando a situação chegou a níveis do que se poderia chamar terrorismo urbano, como a que está vivendo a cidade do Rio de Janeiro agora, com repercussão ampla e desabonadora no exterior e sinalizando para as consequências do papel da cidade do Rio de Janeiro como local escolhido para sediar a próxima Copa Mundial e as Olimpíadas, é que o governo brasileiro se lembrou de que algo mas sério se devia fazer para evitar desastres maiores e irremediáveis.
Por tudo isso, torço para que desta vez os governos federal, estadual e municipal consigam finalmente exercer suas prerrogativas devolvendo ao sofrido povo carioca a antiga tranquilidade em seu cotidiano e, assim, minimizando consideravelmente umas das mais deletérias chagas sociais contemporâneas, não só no país mas em vários lugares do mundo, que têm atormentado a paz e a alegria da Cidade Maravilhosa: o narcotráfico e suas derivações tão de nós conhecidos.

sábado, 4 de dezembro de 2010

A coméda e a política

Cunha e Silva Filho


Custa-me acreditar no tragicômico desfecho da votação dada ao humorista Tiririca. Verdadeiro cenário humano e social de uma comédia de nosso Martins Pena (1815-1848). O humorista se elegeu com um milhão de votos pelo estado de São Paulo para o mandato de deputado federal – o mais votado na última eleição, no que eu chamaria de maior embuste praticado pelo eleitorado paulista.
A princípio, se dizia que não poderia tomar posse porque era analfabeto funcional. Não tinha diploma do fundamental nem nada. A Justiça Eleitoral o convocou a fazer um exame de escolaridade para saber se o fato era verdadeiro. Fez o exame e, para resumir, foi considerado apto a exercer o importante cargo no Congresso Nacional. A imprensa divulgara, antes do exame mencionado, um bilhete do humorista e, logo depois, se tomou conhecimento de que não tinha sido escrito por ele. Caracterizou-se a atitude dele como falsidade ideológica. Entretanto, nada disso, após o exame a que se submeteu, foi levado em conta. Estranha a posição e conclusão da Justiça Eleitoral que o investiu do direito à diplomação no início do próximo ano.
Vejo a conclusão da Justiça Eleitoral como um passo extravagante, mais parecendo estar fazendo ouvidos moucos à irresponsabilidade desse gigantesco número de eleitores de São Paulo que, no caso de Tiririca, deu inquestionável prova de descaso com as instituições democráticas, sem a mínima parcela de ética para com o sagrado direito do voto. Alegar-se que o fizeram por protesto só faz reiterar a dimensão de usar o voto de forma leviana, amolecada e destituída de qualquer resquício de dignidade e de cidadania comprometida com a melhoria das práticas de eleições. De Gaulle tem razão, Pelé, idem.
Se o milhão de eleitores, que elegeram o Tiririca, quisesse protestar de verdade contra as mazelas de nossa política, não seria melhor que o fizesse através de abaixo-assinados com propostas que – isso sim - servissem ao aperfeiçoamento de nossas instituições a fim de que novos governos se dessem conta de que políticas de fachada devem ser eliminadas do cenário nacional?
Um simples exame da questão de ser lícita ou não a posse do artista popular facilmente – e nem é preciso ser jurista para perceber essas particularidades -, nos mostra a contraditória decisão da Justiça Eleitoral . Todo eleitor mais ou menos informado e com alguma escolaridade sabe bem que Tiririca não é o único candidato eleito sem ter pelo menos o diploma do primário. Nem tampouco mandatos de políticos sem instrução formal são exemplos só da atualidade. No passado já os houve, é só dar um pulo pelos estados brasileiros para conferir essa realidade. Todavia, o problema que envolve Tiririca não é só constituído desse fator. É mais profundo e está entrelaçado à nossa formação social e cultural.
O meu reparo à atitude da Justiça Eleitoral prende-se ao fato de que o humorista em pauta não possui o mínimo necessário para ser um representante de um estado da magnitude de São Paulo. E o pior é que o exemplo dele poderá contaminar outros pretendentes que procuram a política apenas para benefício próprio. Neste mesmo caso, outros oportunistas, mesmo com formação educacional melhor, mas tendo a seu favor a iconicidade popular, se sentirão estimulados a fazer o mesmo. Na práxis política, são necessários competência, integridade moral e talento para a vida pública.
A raiz do problema aqui nada tem a ver com a performance artística do humorista, mas com a absoluta ausência de preparo geral a um mandato de deputado. É fácil prever que ele será manipulado partidariamente. Sua função, como a de outros exemplos iguais ao dele, será somente de aparência, uma vez que a sua atuação passará pelo crivo e filtro de seus assessores políticos e jurídicos diante de projetos futuros a serem submetidos a plenário.
Na realidade, a raiz do problema situar-se-ia - vale reforçar –, na atitude caricata e carnavalizada por parte de quem nele votou. Essa falta de compromisso do eleitor do humorista, a meu ver, constitui a peça central a fim de que a Justiça Eleitoral, se fosse mais coerente, pudesse, utilizar como argumento irrefutável para sustar a diplomação do artista a um mandato no Poder Legislativo.
Outro argumento que poderia ser usado pela Justiça Eleitoral se relacionaria à área midiática, ou seja, basta que alguém do mundo artístico brasileiro, se elevasse ao estrelato, seja da cultura popular, seja da cultura erudita, ganhando, assim, visibilidade da “sociedade de espetáculo”, para que encontre meio caminho andado a uma vaga no executivo e principalmente no legislativo. São muitos os exemplos que poderíamos mencionar.
Essa forma de eleger-se tem muito mais possibilidade de vitória do que por vezes candidatos com inequívoca vocação para a atividade política que não dispõem da mídia a seu favor.
Por conseguinte, as duas situações afloradas acima seguramente seriam úteis a uma correta, amadurecida e isenta decisão da Justiça Eleitoral.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Um poema de Phillips Brooks (1835-1893)

O little town of Bethlehem


O little town of Bethlehem,
How still we see thee lie!
Above thy deep and dreamless sleep
The silent hours go by.
Yet in thy dark street shineth
The everlasting Light;
The hopes and fears of all the years
Are met in thee tonight.

For Christ is born of Mary
And gathered all above,
While mortals sleep the Angels keep
Their watch of wondering love.
O morning stars, together
Proclaim the holy birth!
And praises sing to God the King,
And peace to men on earth.

How silently, how silently,
The wondrous gift is given!
So God imparts to human hearts
The blessings of His Heaven,
No ear may hear his coming;
But in this world of sin ,
Where meek souls will receive Him still,
The dear Christ enters in.

Where children pure and happy
Pray to the blessed Child,
Where Misery cries out to Thee,
Son of the Mother mild.
Where Charity stands a watching,
And Faith holds wide the door,
The dark night wakes, the glory breaks,
And Christmas comes once more.

O holy child of Bethlehem,
Descend to us we pray!
Cast out our sin and enter in ,
Be born in us today.

We hear the Christmas Angels
The great glad tidings tell;
O, come to us, abide with us,
O Lord Emmanuel!


Oh, cidadezinha de Belém

Oh, cidadezinha de Belém,
Em igual silêncio e lugar te vejo!
Acima de teu profundo sono sem sonhos
Mudas, as horas passam.
No entanto, brilha, na tua rua escura,
A Luz perene;
De todos os anos as esperanças e os receios
Em ti se depositam nesta noite.

Pois Cristo de Maria nasceu
E do Altíssimo escolhido foi,
Enquanto dormem os mortais, os Anjos
Sobre eles mantêm sua amorosa e admirável vigília.
Oh, manhãs estreladas, juntas
O santificado nascimento anunciam!
Ao Cristo-Rei louvores cantam ,
E paz desejam na Terra aos homens.

No silêncio, no profundo silêncio
Se concede a dádiva grandiosa!
Deus, assim, no corações humanos infunde
Dos Céus as bênçãos.
Provável seja que ninguém Sua chegada perceba;
Neste mundo, porém, de pecados,
Onde ainda almas humildes O recebem,
Nelas o amado Cristo, presente, se faz.

Onde crianças puras e felizes
Pela Criança abençoada orem,
Onde por Vós a miséria clama,
Oh, filho da Mãe gentil.
Onde a Caridade em espera põe-se,
E a Fé sua porta abre,
Desperta a noite espessa, a glória irrompe,
E o Natal uma vez mais chega.

Oh, santa criança de Belém,
Vinde a nós, vos rogamos!
Do pecado livrai-nos, e entrai,
Em nós, hoje, nasceis.

Do Natal os Anjos ouvimos
As boas e álacres novidades anunciarem;
Oh, vinde a nós, em nós habitai,
Oh, Emanuel!

(Tradução de Cunha e Silva Filho)

* Phillips Brooks, poeta, escritor e sacerdote americano (1835-1893).