Cunha e Silva Filho
Pego um exemplar de hoje, dia 27 de novembro, de O Globo e começo a folhear-lhe todas as seções, como de costume. Procuro primeiro o caderno de literatura, o Prosa e& Verso que passei a ler cm mais assiduidade. Antes, fazia mais com o caderno Ideias de sábado, do JB, que não existe mais impresso. Grande perda para os leitores que, como eu, o acompanhava há tantos anos nas suas varias modificações de formato e de corpo editorial. No domingo, leio o antigo Mais da Folha de São Paulo. Gostava mais do antigo formato e da matéria e alguns colunistas cativos. A gente vai se acostumando com algumas colunas e tem a tendência de não querer delas separar-se. No Ilustríssima, substituto do Mais, há coisas de que gosto, como a oportunidade diversificada que se dá aos colaboradores, mas sinto que há um espaço de preferência do responsável pelo caderno cultural – os artistas das áreas de designers, cartunistas, e assemelhados. Poderia haver mais resenhas de literatura, teatro, cinema, por exemplo.
Depois dessa digressão, tenho uma sensação de que as horas passam mais rápido atualmente em consonância com a pressa dos tempos de agora, quando tudo parece que deve ser resolvido para ontem. O sentido do presente é o do instantâneo. Para onde toda essa pressa quer se dirigir, como se não bastassem os males inerentes aos tempos que correm, dilacerando os convívios e os diálogos vivos entre as pessoas e substituindo-os pelos insípidos contatos virtuais?
Vejo, agora, a manchete, em primeira página, de O Globo aludindo aos tanques e blindados vindos em socorro do Rio de Janeiro aflito. Não era sem tempo essa presença das forças armadas entre nós para assegurarem uma trégua de paz. Oxalá consigam sem muito derramamento de sangue, de parte a parte, e sobretudo de uma parte, a mais sofrida, que é a das camadas humildes dos morros cariocas, mais sujeitas a balas perdidas e a fatalidades.
Fotos de soldados em trajes de guerra contra bandidos da mesma nacionalidade. É trágico, mas é real o momento presente no Rio. Estamos, sim, numa guerra entre filhos da mesma terra, da mesma língua. Aquela cena de marginais em fuga, correndo em disparada, sem norte, quase em fila indiana, pelas ampla e bela vegetação no alto do morro do Cruzeiro, na Penha, bairro da antiga Leopoldina, na tela da TV me lembravam as figuras - às avessas -, molambentas de Antônio Conselheiro.. Aqueles jovens facínoras, vestindo apenas bermudas e sandálias sujas, com os peitos nus e os corpos geralmente esguios, cabeças quase raspadas segundo a moda atual entre os que não podem etnicamente exibir cabelos lisos e longos, formavam um quadro tétrico e patético de seres desarvorados, cujo denomina dor comum é o exemplo sintomático da alienação social. Nas suas cabeças só uma idéia fervilhava: a da fuga desvairada tendo como companheiro um fuzil e comparsas do mesmo destino sem volta e sem esperança.
Lá embaixo, as forças legalistas que tardaram a chegar num país de decisões quase sempre tímidas e adiadas. Governos e governos por aqui passaram. Todavia, as sementes da marginalidade que se estavam plantando insidiosamente em todas as direções do espaço urbano carioca, deram seus frutos que não foram extirpados em tempo certo. Acumularam-se por falta de vontade política. Permitiram-se as construções indiscriminadas nos morros e até na horizontalidade espacial rarefeita dos asfaltos. As sementes tomaram proporções gigantescas com o aumento desordenado de contingentes em série de migrantes, principalmente do Nordeste diante do silêncio e complacência ambígua dos órgãos públicos responsáveis pela política habitacional de planejamento da cidade do Rio de Janeiro.
Perdeu-e, portanto, o controle da ocupação do solo urbano que se estendia, ao arrepio das leis, pelos morros e nos rincões suburbanos e periféricos. Nada quase se fez pra conter as ondas humanas migratórias que, além disso, em obediência natural, posto inconsciente e irresponsável, do “crescei e multiplicai” tomado literalmente do conselho bíblico, inflaram espantosamente a demografia urbana da acidade. As comunidades carentes, construídas, muitas vezes, em espaços promíscuos, separados por vielas e passagens estreitas e perigosas – locus ideal para ali se homiziarem criminosos, foram, desta forma, se avolumando com demandas cada vez maiores de mínima infraestrutura em todos os aspectos. O resultado: a escalada da alta criminalidade do narcotráfico, solta e ubíqua, pipocando sem dó nem piedade de vítimas inocentes no asfalto e nos próprios morros e outros espaços urbanos periféricos. Um parêntese: fica pairando no ar um questionamento sobre as reais origens dos grandes responsáveis por esses molambentos marginais que atuam no mercado ilegal das drogas e dos assaltos. Pergunte-se à população responsável e trabalhadora e ela certamente dirá quem são os chefões e chefetes dessas organizações criminosas. Enquanto o país não debelar essas fontes do alto crime tudo o mais não passará de exibição e paliativo.
A ausência do poder constituído fez tradicionalmente vista grossa a toda essas situação de indigência da lei mesmo diante do caos urbano há tempos instalado na vida carioca. Daí os morros, principalmente, encherem-se de marginais com vontades própria e prepotência. Tomaram ares de superioridade em relação à estrutura da máquina de repressão do Estado brasileiro e mesmo, nos últimos anos, desafiando debochadamente os órgãos de segurança representados pelas polícias militar e civil e até pelas Forças Armadas.
O fato é que a cidade partiu-se em duas, só pra lembrar o título de uma obra de Zuenir Ventura. Os monstros do crime e do narcotráfico não são criações espontâneas. São manifestações da degenerescência do tecido social diante, segundo já referi, das grandes falhas e omissões do poder público que não é o caso aqui de aprofundar, porém muito conectadas à vida dos brasileiros ainda em estado de extrema carência de recursos, de bem-estar social, de desintegração familiar, de educação ainda deficiente, de falta de moradia minimamente humana, e de perspectivas de uma vida decente.
Só quando a situação chegou a níveis do que se poderia chamar terrorismo urbano, como a que está vivendo a cidade do Rio de Janeiro agora, com repercussão ampla e desabonadora no exterior e sinalizando para as consequências do papel da cidade do Rio de Janeiro como local escolhido para sediar a próxima Copa Mundial e as Olimpíadas, é que o governo brasileiro se lembrou de que algo mas sério se devia fazer para evitar desastres maiores e irremediáveis.
Por tudo isso, torço para que desta vez os governos federal, estadual e municipal consigam finalmente exercer suas prerrogativas devolvendo ao sofrido povo carioca a antiga tranquilidade em seu cotidiano e, assim, minimizando consideravelmente umas das mais deletérias chagas sociais contemporâneas, não só no país mas em vários lugares do mundo, que têm atormentado a paz e a alegria da Cidade Maravilhosa: o narcotráfico e suas derivações tão de nós conhecidos.
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