quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

A AGENDA MÁGICA



                                                                                      PARA ELZA



                                         CUNHA E ASILVA FILHO



          Era uma agenda diferente, entre o sonho e o sono. No entanto, tinha algo que me chamava por demais a atenção: a sua brancura, a sua luminosidade  de  forma tão  intensa que doía na minha vista. Era um clarão  como  um olhar um  sol   a pino  num verão carioca  de mais de quarenta graus.   Que agenda exótica! Estava  colocada numa prateleira  de  uma das minhas estantes,  na parte que dá espaço depois da organização dos livros. Em comparação com as outras agendas que tive, ou melhor, que ganhei  de presente (já que, por sinal,   nunca comprei  nenhuma agenda pra mim  na vida) nos dias  festivos de final de ano,  essa agenda era algo quase impalpável.

        Ali estava naquela estante da sala, a agenda impressa (sim, sei que era impressa) que surgiu ali   de repente e se mostrava pra mim  como se fosse uma pessoa  viva desejosa de que eu a examinasse e  a folheasse em cada página   com aquelas  divisões  de praxe: os meses em três  idiomas, os números de dias,   uma mapa-múndi,  uma mapa em que aparecia só  o Brasil verde-amarelo,  os espaços destinados  às anotações  à semelhança de diários,  enfim,  uma agenda  como tantas que   se espalham  por aí, quer nas papelarias,  quer, já compradas,  nos  diversos  lugares  ( ou lares) nos quais por ventura se encontrassem.

     Eu a chamei de mágica  em razão  do inusitado    encontro meu com ela  naquela prateleira   mencionada linhas atrás. Nem mesmo sei por que foi se alojar ali,  com aquele brilho todo,  a luz  intensa, aquele clarão   em torno  dela  ofuscando a minha vista e  ao mesmo tempo   me deslumbrando  por   tê-la encontrado  ali. Como foi surgir ali? Não me recordo   quem pudesse tê-la levado pra aquele  canto  cercado de livros e de lindas lombadas. Oh, aqueles livros queridos e amados por toda a vida! Uns dois ou três velhíssimos, do tempo do Brasil  Império.

     Até agora, não posso atinar   quem seja o verdadeiro  dono daquela  agenda  luminosa. Quem seria? Decerto  não era minha. Por que  se exibiu ali  num piscar de olhos? Me lembro de que ainda estava deitndo na cama  de manhã bem cedinho quando me veio  à lembrança  um tanto difusa  a imagem da agenda mágica.   O pior é que, ao lado da agenda mágica, havia uma  impressa bem  simplória, do mesmo tamanho   que teimava em aparecer  ao lado da agenda  mágica. Que confusão  pra minha  mente agora  que agora  não sabe se tudo fora um  sonho ou se era verdadeira, concreta,  aquela agenda ofuscante  de tanto brilho   lembrando   raios laser  cortando, em movimentos pra cima de pra baixo,   o espaço   de uma tela  de cinema.

       Não nego que  gosto de agendas impressas,  da mesma forma que ainda  me fascinam  os cartões de Natal  impressos  e com belas mensagens  de final de  ano. Tenho  várias  de diversas épocas, todas  anotadas  com certa  confusão  espacial  e  falta de cronologia. Nuca fui uma pessoa muito  organizada  com  papéis e impressos. É defeito de nascença.  Não tem  jeito de consertar.    Por outra lado nunca me atraíram  as agendas  eletrônicas. Tenho-as no  meu celular, no meu computador,  porém  ali ficam   virgens pra sempre.

     Volto para a agenda mágica, junto daquela outra impressa,  cuja presença não sei  explicar.Vejo ambas e não  sei por que  insistem  em  se mostrarem  uma ao  lado da outra. Levanto-me da cama,  vou direto à sala. Qual não foi  a minha surpresa! Vejo que só  a agenda luminosa  se encontra na prateleira.

         A outra que   aparecia junto dela  se evanesceu. O que eu pensava que era a verdadeira  não era. Nem parecia somente uma ilusão de ótica.  Entretanto,  a agenda mágica ali estava me atraindo pra junto  de si, como a me pedir que a examinasse toda,  em todos os seus   detalhes: a textura do papel,   a cor  da página,  os números,  os meses, os anos,  os outros  itens  comuns  a uma agende que  se preze. De inopinado, tive a sensação de que aquela agenda  era minha. Mas  quem  a deu pra mim? Que eu me lembre, ninguém  me falou  que  era um presente de um amigo,  de um filho, de um parente,  de um não sei o quê. Ora,  essa sensação de que aquela magia de  agenda  fosse minha me exultava, me deixava mais leve,  menos tenso. Sim.  Seguramente  era minha, sim.  

  Comecei a examinar  novamente  todo aquele encanto e formosura de agenda.  A luminosidade   quase a  me cegar os olhos  curiosos  e  ávidos  de   ter a certeza  de que  era minha e de não  mais ninguém.  Quando  me levantei da cama e  fui pra sala, não havia nenhuma outra pessoa  já acordada. Todos ainda dormindo  naquela  manhã que mal  iniciava. De repente, alguém  veio por detrás de mim e disse:  “É minha.”     

           

domingo, 16 de dezembro de 2018

CRIMES NA CATEDRAL : MIMETISMO IANQUE?


CUNHA E SILVA FILHO
Não é esta que lhe estou agora escrevendo uma crônica-reportagem nem colhi tampouco dados mais consistentes e de natureza policial-investigatória. O que me chamou a atenção de observador para os crimes da Catedral em São Paulo pelo menos, duas coisas básicas: 1) o inusitado do lugar do crime horripilante; 2) uma associação que faço no que diz respeito à poderosa influência que os países hoje sofrem do mundo civilizado e do mundo bárbaro.
Sempre tenho meditado muito sobre assassínios cometidos, sobretudo no EUA, com matadores bem armados que, de repente, chegam a um local e começam a atirar em pessoas inocentes, sejam crianças, adultos, adolescentes, idosos, pouco importa. O palco do crime vira uma tragédia sem proporções e ganha manchetes pelo mundo afora. O mais terrível: o culpado comete suicídio e reduz todo poder de punição legal a nada. Só restam mortos, inocentes e, geralmente, um culpado. O ato insano, abominável vira metafísica para filósofos farta matéria investigações e pesquisas de psiquiatras, psicólogos, sociólogos e antropólogos.
Óbvio que crimes hediondos sempre houve na Humanidade. Os EUA nem se fala. Tanto assim que lá o cinema americano é muitíssimo fértil na produção de filmes de horror, de crimes inimgináveis, tanto por cineastas menores quanto por gênios como o emblemático Alfred Hitchcock.
Uma hipótese minha e que venho há algum tempo amadurecendo é que o fato de uma civilização centrada cada vez mais no locus urbano e num mundo globalizado e virtualizado com crescente aumento de tecnologia e sofisticação de modos de vida e de automatismos tende a exercer uma forte influência deletéria na psique do ser humano, principalmente de indivíduos muito inclinados, seja por tendência inata de desarranjo mental, seja por outros motivos inconfessáveis, a partirem para maquinar atos diabólicos contra inocentes e indefesos. O caso desse homem ainda moço em São Paulo seria um paradigma desse tipo de gente com potencial para atitudes brutais e letais. São verdadeiras armas humanas a serviço de um cérebro estiolado e talvez até sem cura por parte da Medicina, porém que pelo mens poderiam ser tratadas pelos órgãos de saúde do país. O que não pode é ficarem livres nas ruas com um perfil desses de estranhos hábitos. Esse foi o caso do atirador da Catedral.
Outra circunstância reveladora é que o atirador que mato quatro ou cinco pessoas, consoante demonstraram as investigações policias e divulgadas pela imprensa escrita televisa e nas redes sociais, era um criminoso anunciado dado que, em casa e recluso no seu quarto, usava como divertimento, ou não, jogos eletrônicas, desses que mostram ao usuário como atirar em seres humanos aleatoriamente – é isso mesmo o que quero dizer.
Ora, esse tipo de jogos, nas mãos de psicopatas, pode ser uma prévia de futuros atos criminosos por parte de doentes mentais não tratados. Cumpre repensar até que ponto esses jogos eletrônicos podem estimular ações violentas e crimes macabros. No entanto, vejo com preocupação esse tipo generalizado de brincadeiras virtuais de matança indiscriminada. Os multimilionários fabricantes desses gadgets deveriam pensar duas vezes com o que podem provocar de pernicioso e de deformação de personalidades nessa meninada que se utiliza desses jogos banalizadores desse valor inestimável e sem preço, que é a vida.
Observe-se, ademais, o fato sinalizador de que o atirador em casa parecia ter o costume de fazer anotações, formulando, na loucura de seu conturbado mundo interior, possíveis planos de cometer uma agressão inaudita e trágica. Ele estava seguramente, por conta do seus delírios alucinatórios, pronto a perpetrar um crime ominoso como o fez ao final Tudo aponta nessa direção, nesse comportamento doentio nesse ensimesmamento, nesse isolamento, nessa vida antissocial, reclusa, na solidão trágica dos alienados.
Essa barbaridade não será certamente a primeiro nem a última de que temos notícia aqui e no exterior, sobretudo nos EUA. Mais uma vez, estou pronto a repensar os meus conceitos sobre o uso indiscriminado de armas de fogo no meu país, porém deixarei para um outra ocasião esta questão espinhosa e altamente polêmica.

Gosto
Comentar

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

O AUTOR E AS GRALHAS






                                            Cunha e Silva Filho



                Alguns escritores nem querem ouvir  falar  em gralhas, essas coisinhas  tipográficas   que saem da impressão  de um livro  para atormentar  ou mesmo  atazanar  a vida dos  autores. Contudo, elas existem  e como! Nuns mais que em outros. Colegas de atividade da escrita me falam  que não devo  me preocupar tanto com  esses indesejados  defeitos, os quais de resto, já vêm de longa data.

               Do tempo das impressões algo medievais, da preparação impressa quase manual dos velhos  jornais  até chegar aos  linotipos,  que havia no interior, nas redações dos jornais provincianos, no meu caso,  os jornais de Teresina dos anos 1950. Certo é que jornais havia  no meu tempo de menino  quando ia à Redação do jornal  O Dia,  de Mundico Santilho, pegar uma prova de artigo de meu pai a fim de que, em casa, ele corrigisse  à mão  os erros e, depois, levasse de volta para a Redação. Quantas vezes não  apanhei  na Redação desse jornal  artigos de meu pai! Na época,  não me interessava  pela leitura de jornais, coisa  que  só vim a fazer lá pelos  14 anos.

              Me pai era rigoroso  demais com os erros de  impressão e, mesmo  assim, se queixava de que, ao sair  o jornal  para circulação, ainda encontrava gralhas. Não tinha jeito. Um diplomata brasileiro chegou  uma vez  a  afirmar que em seus livros publicados por  editoras  de prestígio,  sempre encontrava erros  de digitação,  mesmo depois de uma, por assim dizer,  rigorosa revisão feita.

             Ora, isso me leva a  mencionar  a seguir trecho de Monteiro Lobato (1882-1948) citado  por um dos  melhores ficcionistas regionalistas   de Santa Catarina, o Enéas Athanázio. No trecho, Lobato  alude à agonia  de autores diante de  erros  de revisão,  dessa maneira   definindo-a exemplarmente:   “A luta contra o erro tipográfico tem algo de homérico. Durante a revisão erros se escondem. Fazem-se positivamente  invisíveis. Mas, assim que o livro sai, tornam-se visibilíssimos sacis  a nos botar a língua em todas as páginas, Trata-se de um  mistério  que a ciência ainda não conseguiu decifrar.” 

            Tudo o que  expus linhas atrás   se prende ao fato de que, na minha produção  publicada, que  é pequena, mas  a não publicada  em livro é bem maior, três de quatro livros meus  tiveram um só edição até hoje que não me agradou por inúmeras gralhas  e outros defeitos   de edição, não só por minha culpa, mas por culpa do editor. 

            Entretanto,  posso lhe afirmar, leitor, que toda essa produção editada já passou agora pelo meu crivo de revisão  escrupulosa,  malgrado aquela certeira    observação de Monteiro Lobato.

            Não concordo com aqueles  que julgam  os autores pelos erros tipográficos de sua produção. Um bom autor vale mais do que um mau autor com livros publicados  em edições  limpas de  gralhas. Não se  deve medir a   qualidade de um livro pelos erros tipográficos  da edição.

           O valor  da obra  vale pela  elevação  e a densidade de pensamento, por  sua originalidade, por seu alcance  logrado numa determinada  área do conhecimento,  pelo que a constitui  nos seus  componentes literários, estilísticos, expressivos,  intrínsecos. O bom leitor de obras literárias  ou de  outra natureza  está mais  interessado é na substância   do livro, não nas suas exterioridades  e adereços.       

          Quem pensa que um autor  seja  avaliado  pelo número de erros tipográficos  contados  pelo leitor  está equivocado,  porque o leitor perspicaz, tolerante,  como deve ser um bom leitor,  conhece  uma obra  boa ou ótima ainda que com falhas  tipográficas  e sabe distinguir entre a aparência   de qualidade de um livro  da essência da sua  qualidade. Portanto,   um autor não vai se queimar junto aos seus pares ou  fiéis leitores somente por  ter falhas de revisão mais escrupulosa.

            Lima Barreto (1881-1922) foi, por algum tempo,  criticado  por ser negligente com a  sua linguagem literária, o que,  na realidade,  não passava de estratégia do autor de um discurso ficcional  moldado às característica  não alinhadas  a uma   linguagem literária  sequestrada e desgastada   já à altura do que  se chamou Pré-Modernismo. Os críticos da sua época não souberam em geral  reconhecer-lhe  os méritos  de grande prosador  e inventivo  ficcionista da realidade dos mais humildes e injustiçados, ou seja, da voz e da linguagem  dos oprimidos. A conquista de seu real  relevo como ficcionista  só lhe veio mais tarde e sobretudo  graças aos críticos  e ensaístas brasileiros  das gerações mais recentes.   

            Enfatizo, por fim,   reafirmando que  os  bons autores,  os críticos, os ensaístas, sejam de que gêneros literários forem,  serão, sim, julgados e  avaliados pela grandeza  das suas obras, não pelas gralhas de sua produção  editada.