O esquecimento é uma ideologia
Cunha e Silva Filho
O romance O feijão e o sonho (1938), de Orígenes Lessa, ilustra bem o quanto o tempo destrói nomes. Campos Lara, é personagem central desse romance simples que ao mesmo tempo oculta sérias discussões em torno do tema da carreira de um escritor e exemplifica, sobretudo na sua parte final, o que o tempo faz com alguns escritores quando estes se veem diante das fases de transição de um tipo de literatura por eles produzida e um nova fase que se abre como movimento pendular vanguardista. É nessa fase que o escritor supera, a ele aderindo, ou se mantendo irredutível nas suas práticas agora consideradas pelos novos como uma espécie de nova e necessária ruptura. Foi o que aconteceu no enredo de O feijão e o sonho, ficção que, por sinal, foi adaptada à linguagem da telenovela.
Campos Lara, poeta e escritor, ao longo de sua carreira de dificuldades financeiras e pequenos desacertos familiares, já percebia que ia ficando para trás. Sua obra já se tornava passadista e, por isso, logo seria engolida pelo movimento Modernista de 22. Esta é uma das chaves do romance que merece uma discussão mais aprofundada.
Aliás, todas as querelas literárias mais famosas na literatura ocidental passaram mais ou menos por esses momentos de efervescência mutacional entre uma estética passadista e uma nova estética que chega com a ferocidade destruidora e iconoclasta dos valores consagrados, da tradição que já dava sinais de esgotamento.
É óbvio que parte da geração que está sendo substituída por novos atores no cenário literário não arredará pé dos seus postulados estéticos. Foi, pois, o que se deu com escritores como Coelho Neto, Rui Barbosa, diante da nova linguagem de um Lima Barreto, isso no campo da prosa. Análoga situação se defrontaram os parnasianos ou simbolistas em relação aos modernistas da primeira fase demolidora.A fúria dos novos, no ponto mais alto de rebeldia de novas formas de linguagem, de estilos e de visões do mundo não se compadecia do passadismo. Porém, no meio de tudo isso, alguns “velhos” se mantiveram resistentes a qualquer mudança, sobretudo na poesia. O verso teria que ser verso, com rima e métrica rigorosas. Nada de versilibrismo, o qual, para eles, não passava de um saída fácil para alguém “fazer poesia” como se fosse prosa, rompendo com todo o arcabouço teórico de uma tradição secular.
O que desejo assinalar é que o passado e seus seguidores logo serão esquecidos e esquecidos injustamente porque o tempo delimita visões e formas literárias, como se estas fossem menos valiosas nos seus valores e características estéticas. O vanguardismo é uma verdade que não pode ser contestada. Entretanto, não significa progresso ou formas artísticas de uma linguagem melhor e superior. No exemplo do personagem Campos Lara, os autores que vinham superar o passado, na sua visão, iriam aos poucos desbancá-lo. Sentia que o tempo culturalmente lhe estava sendo desfavorável. Essa posição em que se encontrava tendia a isolá-lo e a afastá-lo do centro das atenções dos leitores e da vida literária no seu todo. Vejo essa situação do escritor no romance como a metáfora de qualquer geração de escritores que são substituídos por outros, os que chegam com novas armaduras, novas concepções de formas de linguagem, de técnicas, de temas, de visões novas do mundo. Campos Lara torna-se, assim, personagem-símbolo dos escritores que se encontram em fase de final de carreira, de exaustão.
Ainda quando alguns deles prosseguem escrevendo novas obras e até procurando formas de linguagem que se ajustem mais aos tempos da contemporaneidade, ainda assim, com o tempo – o grande destruidor dos ídolos -, tenderão a ceder lugar aos que estão chegando.
Assim se deu também com as vanguardas literárias brasileiras, Concretismo, Poema-Processo, Poesia-Práxis, Neoconcretismo. Alguns de seus adeptos encontraram, ao longo da vida, outras formas mais modernas de escrever poesia, procurando renovar-se, modernizar-se embora deixando, no espaço literário das novas produções, um substrato da sua fase inaugural de produção.
Os mais novos ainda, os novíssimos vão aos poucos entrando na cena atual. Já, porém, pouco ou nada sabem daquelas figuras que, em outra fase mais recente do passado, tiveram seu tempo e sua hora. Os novos, muitas vezes, podem pensar que serão sempre vanguardas. Triste ilusão. Os mais velhos, ex-vanguardas, por sua vez, vão desaparecendo do cenário, dos holofotes, das entrevistas, das “antologias dos melhores da atualidade”. Outra ilusão. Os mais velhos, mas nem tanto, vão sendo abafados, perdem os contatos, antigos amigos, antigos parceiros de ideais estéticos.
O esquecimento dos mais velhos se afirma, a meu ver, como uma ideologia. Sua luta se trava em direção a uma postura artística que vai minando antecessores com novas propostas e projetos literários que, em síntese, pela lição do novo ou da novidade, vão construindo horizontes de expectativas que, dentro de um período limitado, se vão estabelecendo, se firmando e se afirmando na consciência artística da comunidade intelectual e acadêmica, até encontrar um ponto ideal de reconhecimento e de aceitação. Dessa maneira, se vai esquecendo e derruindo quem passou. A memória dos novos é, em alguns, muito curta, pois se volta, na maioria das vezes, para o seu específico e individual tempo de existência e de ação intelectual. O “agora’ bem poderia ser um bom lema para a ideologia do esquecimento.
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