Cunha e Silva Filho
Tenho dúvidas se muita gente sabe que o grande romancista Érico Veríssimo(1905-1975) publicou, em inglês, uma história da literatura brasileira, vinda a lume em 1945. 1 Seu título no original é Brazilian literature – an outline.
Conheci a ficção de Érico, pela primeira vez, adolescente, lendo a bela narrativa A vida de Joana D’Arc2.Depois, li outra obra, comovente Olhai os lírios do campo (1938).Mais tarde, outros livros dele.
Um dia, porém, descobri, não me lembro em que espaço literário, que ele havia escrito essa breve história da literatura brasileira. Sabe-se que – e ele mesmo o confessa – o estimado escritor gaúcho não era historiador literário, nem, a meu ver, pretendia sê-lo.
Sou um aficionado de leituras de histórias literárias e, no meu caso, por dever do ofício, sou obrigado a conhecer as principais histórias literárias brasileiras, escritas ou não por brasileiros. Folheei a conhecida - uma das melhores que temos - História concisa da literatura brasileira -, de Alfredo Bosi e nela não consta a referência à obra de Érico Veríssimo, como não cita outras da mesma forma. Será que dela não gostou? Não é possível que dela não tenha tido notícia ou não a encontrou. Não pretendo aqui ser exigente com os historiadores, mas uma verdade é evidente: alguns historiadores são omissos com nomes que deveriam constar em seus estudos de historiografia. Citar uma obra, ainda que seja menor, não compromete o pesquisador. Sabe-se que, no meio acadêmico, não é de bom tom citar um autor didático. É pelo menos isso que tenho visto, por experiência, do meu tempo de mestrado e doutorado, e de professor em universidade. Até faz pensar que autor didático nivela por baixo os altiplanos dos mestres universitários.
A breve obra de história da literatura brasileira de Érico longe está de ser uma obra didática, pelo menos em muitas de suas páginas, ou melhor, na maioria delas. Naturalmente foi planejada para atender a um público estrangeiro, público composto por estudantes que formaram a assistência das conferências sobre literatura brasileira proferidas por Érico Veríssimo na Universidade da Califórnia, em Berkeley, em pleno período da Segunda Guerra Mundial. Veríssimo estava lá a convite do Departamento de Estado americano, além de ser e membro do quadro da Casa Panamericana do Mills College, Oakland, no verão de 1944.
Érico, àquela altura da vida, já era um escritor aplaudido no país e nos Estados Unidos com livros traduzidos para o inglês, como Caminhos Cruzados (1935). As orelhas dessa pequena história literária bem demonstram o quanto o escritor era respeitado na América do Norte.
Já no prefácio, Érico avisa aos leitores que não é um crítico, mas um contador de histórias, um ficcionista. Nessa declaração está, no meu entender, a chave para que se possa empreender a leitura dessa história literária, que abrange a nossa produção desde os primórdios até referências a nosso escritores a partir de 1930. As suas derradeiras referências bibliográficas chegam a nomes novos mais conhecidos hoje em dia como Clarice Lispector e Lygia Fagundes Telles. A obra deve ter sido provavelmente concluída por volta de 1944. Daí que o historiador não tenha feito nenhuma menção à geração de 45 da poesia brasileira.
Outro fato curioso que a leitura nos permite constatar é que o apêndice que o livro inclui no final do volume está repleto de autores brasileiros que hoje estão completamente esquecidos . E mais: há autores de que a grande maioria do público leitor de literatura provavelmente nunca ouviu falar. E de público especializado, não seria exagero acrescentar. Isso me permite uma reflexão: como o escritor brasileiro é esquecido e desconhecido mesmo pelos estudiosos de literatura que, na maioria, das vezes, estão mais com o pé na pós-modernidade. Reconheço, entretanto, que o futuro é que vai peneirando aqueles que realmente perdurarão como figuras que vão constituir o corpus dos autores vitoriosos para a contemporaneidade, o que não significa o mesmo que para as gerações futuras.
Três qualidades, a meu ver, possui a história literária de Érico Veríssimo: o historiador prima por uma absoluta objetividade no desenvolvimento da sua obra, e o faz de forma agradável contando, aqui e ali, passagens engraçadas, pitorescas e mesmo ilustrativas, tanto da vida literária quanto da nossa formação social, política, histórica e cultural. Ele próprio, no prefácio, havia antecipado aos leitores essa maneira de narrar os fatos literários tendo em vista o público–alvo: os estudantes americanos. Com isso, não cansaria seu auditório.
A segunda qualidade seria a enorme capacidade do autor em articular os fatos históricos com os literários, ou seja, ao falar sobre a literatura dos anos 30, ele ilumina o leitor com esclarecedoras explanações da situação política brasileira, sabendo dosar as análise de tal sorte a mostrar, com rara limpidez informativa, como se desenrolaram alguns acontecimentos históricos do país que, em geral, nos livros especializados e mesmo didáticos, não são tão claramente explicitados. Nisso, julgo que o auxiliou muito a sua destreza de ficcionista, de captar a essência, o que é fundamental saber. São dignas de observação suas análises sobre o Brasil colonial, o reinado de Dom João VI, o Primeiro Império, o Segundo Império, a recém-proclamada República, o papel de Luiz Carlos Prestes, os integralistas, tendo à frente Plínio Salgado, as revoluções de 30 e de 32, a rebelião militar frustrada de 1935 no Rio de Janeiro, o Estado Novo. Por falar nesse aspecto histórico da obra, Érico nos narra, de forma lapidar, todo aquele tumulto social em torno dos integralistas, agravado, mais adiante, pela eclosão da Segunda Guerra Mundial e com a situação de saia justa em que ficou por certo tempo o governo de Vargas sob o Estado Novo no que concerne à questão de sua política com a Alemanha nazista, num país com uma considerável população de alemães e descendentes destes nos estados do Sul brasileiro.Isso tudo é narrado com clareza e objetividade pelo historiador-ficcionista.
A terceira qualidade prende-se à própria análise ou comentários de ordem crítica, se bem que o autor já advertira no mencionado prefácio que seus julgamentos serão subjetivos, questão de gostos, preferências ou aversões. Não é tanto assim, visto que muitos comentários que faz sobre alguns autores têm um inegável peso do julgamento sério e fundamentado.
Seus juízos são certeiros, tocam no âmago do espírito do livro Cabe acentuar um dado de seus comentários. Érico Veríssimo, ao contrário do que os desavisados possam pensar, é um prosador que revela amplo conhecimento da literatura, e da literatura universal. É homem culto, de excelente gosto na apreciação de temas e de livros. Dá prazer ler todos os seus pareceres críticos sobre autores brasileiros. É instigante o que diz ele sobre escritores mais valorizados hoje pela alta critica, como Manuel de Antonio Almeida, José de Alencar, Lima Barreto, Raul Pompéia, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Graciliano Ramos, Lins do Rego, Jorge Amado ( embora este último divida a crítica entre prós e contras), sem esquecer os finos comentários que faz acerca do nosso Machado de Assis, ensaiando até um comparativismo com William Sommerst Maugham (1874-1965), uma das preferências de Érico, no que diz respeito a certos complexos de inferioridade que repercutem, de alguma forma, nos estilos literários de ambos e na sua vida pessoal. Entre outros autores, na poesia, altamente estimados por ele poder-se-iam citar Gonçalves Dias, Castro Alves, Carlos Drummond, Manuel Bandeira, Mário Quintana , Cecília Meireles, inclusive – é bom que se registre nesta resenha - a visão panorâmica do historiador nem mesmo esqueceu os piauienses Da Costa e Silva (este mereceu-lhe o seguinte elogio:”Zodíaco é uma obra poética notável, na qual encontramos algo inteiramente novo no ritmo e nas imagens,”3 Félix Pacheco, e Permínio Ásfora ( os dois últimos constam apenas do Apêndice).
Brazilian literature - an outline não se reduz só a catalogações e ligeiros comentários. A despeito da brevidade do volume, a obra abarca um considerável leque de autores nos mais diversos gêneros literários (inclusive o gênero dramático) não somente com relação ao passado mas também quanto a escritores do presente da escrita da obra, quase toda a primeira metade dos anos 40 do século passado. Ao oferecer esse panorama a estudantes e público estrangeiro, o autor teve uma oportuna iniciativa: não se limitou a informar sobre o Brasil literário apenas. Alargou seu espectro, complementou sua obra, admiravelmente, com uma séria de cuidadosa incursão sobre o nosso povo da perspectiva de sua época, mas, em alguns ângulos, ainda válida para os nossos dias, o que, de resto, está em consonância com o processo lento de modernização do país dentro daquela ideia de estágios sociais assimétricos de modernidade brasileira tão bem estudados por Eduardo Portella.
O historiador foi a fundo na apreciação do temperamento de nosso povo mestiçado, com diferentes qualidades no convívio social. E assim fala dos nordestinos, dos paulistas, dos gaúchos, dos cariocas. O resultado é um quadro perfeito e favorável a nosso povo, costumes, psicologias, temperamentos, hábitos e maneiras de ser. Por esta razão, não acredita ele que se poderia tentar escrever uma obra que retratasse o país na sua inteireza , seja física, seja social, seja cultural, seja principalmente literária. Para essa empresa, o certo seria que, em cada região, seus escritores se dessem ao trabalho de particularizar seus temas com seu talento e sua visão local, sem perder a unidade da língua, cuja diferença, nas várias regiões, é mínima, não indo mais do que na entonação e nos regionalismos vocabulares.
Como todo escritor fora do eixo Rio São- Paulo, Érico Veríssimo puxa brasa para sua sardinha e dá um certo relevo a escritores da sua terra. Isso é mais do que natural em tal situação.
Mas, o que fica de perdurável e definitivo nessa história literária é a honestidade do historiador em tentar mostrar ao público estrangeiro uma literatura que, embora não seja conhecida lá fora, já pode contar com um expressivo número de autores, nos vários gêneros, que não mais exploram de forma subserviente temas ou estilos literários de procedência européia. Seus autores, conforme ele satiricamente insinua, deixaram de ser meros imitadores encastelados friamente nas suas torres de marfim, seres fantasmagóricos. Nossos escritores descobriam seu caminho, o do homem comum,4 com pé na terra, procurando universalmente “um mundo melhor de paz, fraternidade e liberdade”, acrescenta ao término de sua história literária.
A história literária de Érico Veríssimo, feita com intenção primeira de ser um conjunto de conferências, ao ser publicada em forma de livro, bem deveria formalizar-se posteriormente, com um aparato biobibliográfico, com notas e referências sobre fatos, datas e títulos que nem sempre aparecem na extensão do livro.
NOTAS:
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