domingo, 31 de janeiro de 2010

Há mortes demais no mundo

Não sei lidar com estatísticas e gráficos e, se o faço, enfio as mãos pelos pés e o resultado disso torna-se desastroso pra mim e pros leitores. Contudo, me safo pela poder de síntese ou de generalizações intuídas pelas observações diárias, pelos noticiários da imprensa escrita mundial e nacional, leituras de livros e, finalmente, pela poderosa e utilíssima internet que, se empregada para o bem, o bem faz.
Mas, uma coisa está me espantando ultimamente: está morrendo gente demais, até me leva a pensar que, indiretamente, vivemos tempos de guerra ou de pandemias, pois só, pelo menos, nesses dois caso mais graves, se assiste a tantas perdas humanas.Mortes por toda a parte, aqui, ali,, acolá, mortes de toda a natureza. Não estou falando simplesmente de mortes por velhice, por doenças do coração, do câncer, por erros médicos , por acidentes de carros, de aviões.
Estou antes falando de mortes por brigas entre pessoas, de assaltos cruéis, de lenocínios, de crimes por motivos fúteis , de crimes por vingança de natureza política, econômica, de interesses contrariados, de crimes pessoais, de crimes diabólicos de filhos contra pais, de crimes por divisão de herança, de crimes contra quem recebeu um prêmio de loteria que aguçou a inveja de outros que, por essa razão, mataram o milionário para ficarem com a dinheirama, de crimes, de crimes contra crianças que choram muito e, por isso, são vítimas de padrastos- monstros, de crimes contra velhos em lares ou mesmo em asilos.
São inumeráveis os exemplos de diferentes modalidades de crimes causados por esse bicho que andam ainda chamando de humano, de crimes cometidos por inversões de papéis em que a polícia, paga pelo Estado com o dinheiro público, assassina inocentes a quem devia proteger.
Até aqui falei de crimes terríveis envolvendo certas razões injustificáveis. Entretanto, não falei de outros tipos de crimes que levam a mortes fatais. Quero me referir a mortes por acidentes da natureza, algumas incontroláveis, de dimensões ciclópicas, as chamada catástrofes das eras, os tsunamis, os terremotos, as inundações e finalmente, as mortes por motivos ideológicos, religiosos, políticos, geopolíticos, até o seu grau maior, os genocídios de que a Terra já tanto padeceu ao longo de sua História remota e de sua História contemporânea, com vítimas calculadas em milhares e até milhões de seres. Dá arrepios só em pensar quantas vítimas foram imoladas injustamente ao longo da História da humanidade. Pensemos só nas duas grandes guerras mundiais.
Pensemos em Hiroxima, em Nagasaki, no Holocausto, na guerra do Vietnam, só para ficarmos com três casos amedrontadores do passado e acontecidos num só século, imagine! Pensemos nos conflitos mais recentes nos quais as guerras são filmadas como se fossem espetáculos pirotécnicos de fim de ano, com imagens instantâneas, sob olhares horrorizados ou embrutecidos, dependendo do caso, dos telespectadores mundiais - imagens apocalípticas vistas pela internet! Estamos em plena sintonia da era da “banalização” diante da morte do próximo.
A morte é tão natural, seja qual for a sua natureza, quanto o olhar de alguém para um poste. Tantas são as mortes, ao longo dos tempos, que já se tornaram algo descartável ou sem tanta importância. Quem está vivo pensa que é eterno. Doce ilusão. Quem é moço pensa que tem a juventude eterna, tão preso está aos acenos do presente imediato. Com tantas mortes parece que está acabando a capacidade de o ser humano poder chorar ou se compadecer do outro.A morte nos tem anestesiado diante da dor última.
Veja-se o exemplo dos repórteres ou apresentadores de noticiários. Num minuto, fala de preparação para o carnaval, em outro minuto, de uma grande tragédia, em outro ainda, de um grande desastre, e assim sucessivamente vai nutrindo o telespectador de emoções diferentes, díspares, contraditórias, anestesiantes. Ao término do programa, só resta a eles e a nós uma indefinível sensação de naturalização do bem e do mal.
Um leitor, porém, poderá, com direito que lhe assiste, argumentar: “Mas, não socorremos tantos em casos de tragédias, por exemplo, agora no Haiti? Sim, é verdade. Mas, isso não basta nem reponde por toda essa carnificina onímoda que devora a essência do ser do homem. Haja vista, a defesa agora fria e cruel de Tony Blair justificando toda a carnificina da invasão do Iraque em parceria com o ex-presidente Bush filho.
As tropas americanas de Bush filho e daquele ex-primeiro ministro britânico arrasaram o Iraque impiedosamente sem uma grande e plausível justificativa. Apenas o fizeram em nome da prepotência e do desrespeito diante dos organismos internacionais de Segurança. Agindo como criminosos réus confessos, não se pejam de seus atos bárbaros e, no caso de Tony Blair, de reafirmar que faria tudo de novo. Uma das justificativas da invasão iraquiana, segundo se afirma, foi o ataque de 11 de Setembro do World Trade Center.
Claro que não aprovo isso, mas não aprovo com mais veemência o ato de carnificina perpetrado contra o povo iraquiano, com inumeráveis perdas de inocentes, de adultos e idosos civis que nada tinham com a ditadura de Saddam Hussein. Matar civis indiscriminadamente é crime contra a humanidade. A reportagem informa que pais de soldados ingleses mortos na invasão do Iraque (2003), em protesto contra as declarações hediondas de Tony Blair,, consideraram este um criminoso de guerra.(JB, Internacional, 30/01/2010) Onde fica, leitor, a chamada civilização ocidental? Quem são os novos bárbaros da Terra? É fácil responder e apontar.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Fernando Pessoa: "Sonnet XVIII"

Fernando Pessoa: “English sonnet XVIII”



Sonnet XVIII


INDEFINITE SPACE, which, by co-substance night,
In one black mystery two void mysteries blends;
The stray stars, whose innumerable light
Repeats one mystery till conjecure ends;
The stream of time, known by birth-bursting bubbles;
The gulf of silence even of nought;
Thoughts’s high-walled maze, which the ousted owner troubles
Because the string’s lost and the plan forgot:
When I think on this and that here I stand,
The thinker of these thoughts, emptily wise,
Holding up to my my thinking my thing-hand
And looking at it with thought-alien eyes,
The prayer of my wonder looketh pas
The universal darkness lone and vast.


Soneto XVIII


ESPAÇO INDEFIIDO, que, por noite cossubstancial,
Num escuro mistério dois mistérios funde;
Perdidas as estrelas, cuja infinita luz
Um mistério repete até a final hipótese;
Do tempo o fluxo, da vida a origem na explosão das bolhas;
Do silêncio o abismo, até do nada vazio;
Elevado e protegido labirinto do Pensamento, perturbação do expulso dono
Porquanto perdido está o cordão, e olvidado o plano:
Aqui permaneço quando nisso e naquilo penso,
Destas idéias o pensador, vaziamente sábio,
Com a minha mão-objeto o meu pensamento sustentando
E com olhos de pensamento-alheio para ele olhando
Do meu espanto a prece bem perto está
Da universal escuridão, solitária e vasta.
(Tradução de cunha e Silva Filho)

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

Obama e o sonho americano

Obama e o sonho americano


Cunha e Silva Filho



Recordo-me da posse de Barack Obama, do seu discurso, da sua desajeitada maneira de fazer o juramento (teve que repeti-lo no dia seguinte a fm de completá-lo corretamente), repetindo, perante a Bíblia Sagrada, as frases do encarregado da cerimônia. Confesso que não gostei muito do discurso. Não me causou impacto. Me soou até fraco, incompleto diante da importância do evento. O que, todavia, me prendeu mais a atenção foram os closes das câmeras em direção à população, especialmente quanto focava a grande presença de negros que afluíram para o evento.Vi que os negros americanos, nos seus semblantes, pareciam indicar uma nova era de esperança e de saudável expectativa.
A impressão que tinha era que ali só havia a sofrida etnia negra, afoita, orgulhosa de ter, pela primeira vez na história norte-americana, um presidente mulato, ou seja, com cor e traços físicos aproximados dos negros, um half-bred, a me lembrar daquele vaticinado romance, O Presidente negro (1926) que ainda não li, de Monteiro Lobato (1882-1948) no qual os EUA conheceriam um presidente negro.
Do discurso me ficaram alguns fragmentos indicadores de mudanças efetivas na estrutura social-econômica e na geopolítica do país. Dei-lhe, pois, um voto de relativa confiança. Quanto à desativação da prisão de Guantánamo, em Cuba, essa promessa me agradou sobremodo, e bem assim me contentou saber que as tropas americanas logo deixariam as regiões conflagradas, pelo menos do Iraque, para não falar no Afeganistão, no Paquistão e nos cruentos ataques contra os chamados terroristas da Al Qaeda. Essas regiões ainda se encontram solidamente militarizadas, dando gastos colossais ao bolso do povo americano. Com o passar dos meses, eu não mais via qualquer expectativa de promessas cumpridas. Antes o que os meus olhos viam era uma espécie de continuidade de estratégias voltadas para a política externa feitas pelo próprio governo Obama, o que me deixou perplexo quando soube que o prêmio Nobel da Paz havia sido concedido para o presidente ianque.
A realidade americana, com todos os seus defeitos e qualidades, se manteve, inalterável, particularmente na esfera da política externa, segundo já frisamos. Os combates, no Iraque, no Afeganistão, no Paquistão, prosseguiram e prosseguem. Guantánamo continua ilesa e fagueira.Como fica o prêmio Nobel da Paz nas mãos de Obama? Estamos no reino da imprevisibilidade.
Obama, nas pesquisas de opinião, sofreu elevada queda (desculpe-me pelo oxímoro) de popularidade. No entanto, o novo presidente abriu o debate sobre a crucial questão da saúde pública americana. Nesse ponto, Obama desejou ser destemido e peitar, pelo menos, retoricamente, os grandes conglomerados dos planos de saúde privados. Mas, para isso, não dependia só dele a aprovação de milionários investimentos a serem injetados na saúde com o objetivo de romper com os grandes tubarões da medicina privada e muitas vezes mercantilista. Será que Obama vai sair vitorioso dessa empreitada? Acho difícil.
Lendo uma entrevista concedida pelo romancista americano Russell Banks a Gilles Anquetil e François Armanet, publicada no Le Nouvel Observateur, e republicada em tradução portuguesa de Clara Allain, na Folha de São Paulo (24/01/2010), sob o titulo “Meio Obama”, de resto, uma magistral análise desenvolvida por aquele ficcionista americano, percebo, com mais evidência, certos pontos obscuros que me rondavam a cabeça no que tange às reais possibilidades e poderes que um presidente dos EUA pode ter. Não são poucos, mas também não são muitos.
O nó górdio a ser desatado é algo quase intransponível, dado que, rigorosamente, entre os dois partidos americanos, o Republicano e o Democrata, não há tantas diferenças de metas e visões pragmáticas. Em resumo, tudo depende, para substanciais alterações, de entendimentos decisivos entre conservadores e progressistas. Administrar essas possibilidades de acertos e compromisso conseguidos na Câmara e no Senado estadunidenses, é tarefa das mais espinhosas, a ponto de o mencionado entrevistado afirmar que, nos EUA, não há “democracia” na real acepção prática do termo. Nas palavras de Russell Banks, que, aliás, foi um dos primeiros a dar apoio à candidatura de Obama, conforme assinalam os entrevistadores, acentuo o seguinte trecho digno de atenção dos historiadores e analistas políticos: “”Somos uma República que se esforça há séculos para tornar-se uma plutocracia, e que está a caminho de consegui-lo.”
A se ver por aí, deduzo que Obama, se tem a boa intenção de resolver as graves questões no plano social, melhorando efetivamente as condições de vida da camada pobre dos americanos sem teto, alimento, emprego, saúde e outros benefícios sociais minimamente condizentes com uma sociedade reconhecida como o coração do capitalismo mundial, não dispõe mesmo do poderes constitucionais para solucionar boa parte dessas demandas do segmento sacrificado da população do país.
O sentido geral da análise de Russell Banks se resumiria no seguinte: Obama vai conseguir pouca coisa que possa diferenciá-lo do seu antecessor ou antecessores imediatos. Não vai fazer um mandato do tipo realizado por Franklin Delano Roosevelt ( 1882-1945)). Não vai mudar a estrutura do sistema econômico-financeiro americano vigente, fortemente blindado contra rupturas radicais em direção a mudanças progressistas ou de esquerda. Os banqueiros de Wall Street continuarão mandando. O conservadorismo não vai ceder muito no terreno social. Os pobres que se virem como puderem. A riqueza do americano se manterá imperialmente.
Afinal, entre, nós, Obama se diferencia de Bush filho nos seguintes aspectos: retórica, cultura, lucidez e ausência de rancor tresloucado de belicosidade e de paranóia. Isso já lhe confere uma inequívoca superioridade na alta função de presidente. Obama, ademais, tem sensibilidade, e é homem lido, sabe usar da palavra, sabe emocionar o povo com sinceridade. Tem boa intenção. Só lhe falece uma arma indispensável:: a de poder enfrentar as hordas da força do capitalismo e da riqueza de sua minoria, refestelada no alto consumo, no fetichismo do dólar pensado em cifras bilionárias e na certeza de que seus banqueiros e seus corretores de ações serão – sempre - regiamente recompensados com polpudos dividendos em suas contas faraônicas.
Enquanto isso, o simpático Obama vai tocando o governo dentro das suas relativas possibilidades a fim de não parecer tanto quanto seus predecessores, principalmente com a herança maldita do Bush filho nas façanhas da intervenção e da belicosidade ao arrepio da lei dos homens. Obama tem toda a pinta da esquerda, inclusive é canhoto. Entretanto, não lhe basta ter o physique du rôle para as mudanças concretas na vida dos norte-americanos desafortunados. É preciso ter a coragem dos grandes lideres, incluindo os riscos.

sábado, 23 de janeiro de 2010

O menino, o pai e a garapa

O menino, o pai e a garapa


Cunha e Silva Filho


Até hoje, não sei explicar por que razão meu pai gostava de que saísse com ele para resolver alguma coisa no centro da cidade, em Teresina. Outra vez, me convidara para a posse dele como diretor do Liceu Piauiense. A solenidade fora no Karnak. Uma outra vez, era um dia muito importante para ele: a sua defesa de tese para ocupar a cadeira de História do Brasil da Escola Normal “Antonino Freire.
Era no início dos anos cinquenta. Ainda ouço a voz vibrante de orador defendendo seus pontos de vista na sua tese, com vitória conquistada com muitos sacrifícios e até injustiças da parte de um professor que viera de fora para compor a banca ( se não me engano do Ceará) adredemente indicado para prejudicar papai. Papai, como jornalista, andou fazendo duras críticas a um figurão do setor da educação brasileira e, como represália, para o concurso, fora compor a banca um pau mandado. Papai, tempos depois do concurso, me dissera que um dos examinadores- creio que o pau mandado -. não gostara da sua postura ao proferir a aula de defesa de tese. Achava que ele dava aula como se estivesse fazendo um discurso.
Ora, era justamente essa maneira de ser que tornava meu pai uma figura admirável, visto que, ainda que não fosse didaticamente correto, dar uma aula, em tom de tribuno, era-lhe algo inseparável, fazia parte de seu temperamento vibrante e indomável, a par de lhe ensejar uma oportunidade de mostrar seu talento e facilidade para a comunicação oral. No momento da aula, lá estava um menino calado, talvez um tanto amedrontado com a assistência presente e em silêncio, com examinadores carrancudos, com a solenidade e a seriedade de uma sala pública, vasta e hostil para a sua pouca idade.
Foram inúmeras as vezes que saíamos de casa, papai e eu. Ele, de terno claro, nos seus cinquenta anos; eu, bem pequeno, mas muito seguro porque estava com ele. Metros adiante, me pagava pela mão. As mãos de papai eram lindas, cálidas, macias, me faziam bem, Um conterrâneo dele me dissera em Amarante que papai tinhas as mãos mais lindas da cidade. Um filho meu, o mais velho, o Francisco Neto, tem também lindas mãos parecidas com as do avô...
Lá íamos os dois juntinhos, papai e eu, caminhando pelas ruas de Teresina, saindo da zona sul para o centro da cidade. Este era o cenário para o qual tudo convergia. Passávamos por várias ruas da velha Teresina. O sol abrasador. O suor, os passos firmes de papai, que vendia saúde. Papai dificilmente se queixava da saúde. Era um touro. Às vezes, tinha um pouco de dor de cabeça, talvez resquícios de uma ressaca de final de semana. Adorava uma cervejinha até que, numa determinada fase de vida, teve que deixar de lado esse hábito. Até aos setenta e poucos anos, não dera sinal de problemas com a saúde.
Eu conhecia as ruas de Teresina, ou seja, o centro e partes da zona norte e sul. Mas, a nossa caminhada não podia deixar de passar pela Praça Pedro II ou pela Praça Rio Branco. Não era, porém, um conhecedor exímio de Teresina. Poucas vezes, mesmo na adolescência, ia além da altura do Liceu, do Barrocão, da Piçarra ou da Vermelha. E só. Conhecia, ademais, as ruas de Teresina pela posição, pelo lugar. Nunca me dei ao trabalho de esmiuçar os nomes de rua. Hoje mesmo, não sou um bom informante até do bairro em que moro. Só sei que, se estivesse sozinho, saberia como chegar em casa, mesmo pequeno, naquela época..
Havia, no entanto, nas minhas andanças com papai a perspectiva do coroamento do “passeio”: a certeza de que, antes do retorno pra casa, ele entraria comigo numa lanchonete. Poderia bem ser a bombonière entre o Rex e o Theatro. Poderia ser o Cantinho do Tufy ou uma garapeira não muito longe desse recanto. Tudo isso não mais existe, como não mais existe o Bar Carnaúba e outros bares, lanchonetes e restaurantes daquela época.Uma segunda certeza,: se papai pedisse para nós dois um copo de garapa gelada ou, como se dizia então em Teresina, frapê, com pastel de carne moída, sem sombra de dúvida me faria esta pergunta, cuja sonoridade do enunciado de sua voz se me gravara para sempre na memória de adulto: “Você quer tomar mais um copo, filho? Mais um pastel?” Era claro que iria aceitar mais uma rodada do precioso lanche.
Papai adorava garapa. Meu filho mais novo, o Alexandre, e eu, amamos igualmente a garapa, o caldo de cana como é conhecido aqui no Rio e tão apreciado, sobretudo pelas camadas mais humildes da população. É uma delícia quando acompanhado de pastel de carne moída ou, para meu filho atrás mencionado, pastel de queijo. Prefiro, sempre, o de carne moída e que esteja bem quentinho, feito na hora.
O gosto extremado por garapa data de há muito. Lembro-me de que, quando estudante do saudoso “Domício”” (Colégio “Des. Antônio Costa”), uma escola, já extinta, dos irmãos Domício Melo Magalhães e Francisco Melo Magalhães, havia uma espécie de confraternização anual (não tenho certeza da periodicidade correta), para a qual os professores do “Domício” eram convidados a passarem uma manhã (ou tarde) de um sábado tomando garapa à vontade. Papai era professor do colégio. O convite se estendia à família de cada professor. Ah, como eram boas as “garapadas” do “Domício”. Virara uma tradição da escola, verdadeira festa e regalo para o paladar! “Garapada” das melhores, fizeram história nos anais daquela instituição de ensino. Eu, como fá do caldo de cana, jamais perderia aquela oportunidade de tomar garapa até não mais me aguentar.
O nível do preparo da garapa, feitinho na hora, com cuidado e limpeza, transformava aquelas manhãs (ou tardes) de sábados de “garapada” em verdadeiros marcos festivos do calendário informal daquela escola na qual fiz o exame de admissão e todo o ginásio.
A festa da garapa era também uma grande motivo para que professores pudessem palestrar à vontade sem as formalidades dos dias de aula, além do regalo do dulcíssimo sabor do caldo de cana, para os piauienses, da garapa.
Da distância do tempo me ficaram rostos meio esquecidos de mestres, funcionários administrativos, inspetores, os rostos nunca esquecidos dos irmãos Magalhães.Havia particularmente um rosto que me era caro, um rosto ainda novo, sempre conversando, ora com colegas, ora com os diretores. Era um rosto corado, com os cabelos grisalhos, um corpo gordo mas não flácido, uma voz forte, firme e uma simplicidade de causar inveja. Assim, era meu pai, o professor Cunha e Silva (1905-1990). O fluxo rememorativo não pára seu curso e me traz de volta, por associação, aquele lema do educandário dos irmãos Magalhães, que se encontra no meu diploma de conclusão do ginásio. É uma citação de Platão (c. 429-347 a. C.): “A Educação é a mais valiosa herança que os pais podem deixar aos filhos”.
O mesmo processo de associação me leva ainda à lembrança da minha querida caderneta escolar (Onde andará ela?), numa das páginas da qual havia o hino do “Domício,” cuja autoria me escapa agora da memória. Todavia, de um pequeno trecho dele não consegui esquecer: “Não há profeta que honre a sua terra./ Eis um Ginásio que lhe fizeram guerra./ Desembargador Antônio Costa é do Piauí / da mocidade o porvir.”

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

A cruz de Cristo e o terremoto

A cruz de Cristo e o terremoto


Cunha e Silva Filho



Há algo quase inexplicável que presenciei no recente terremoto em Porto Príncipe.Em meio a tantos escombros, perdas humanas - as mais deploráveis -, perdas materiais, não escapando até as construções mais sólidas, como a sede do governo federal, a cidade desolada, nos vários ângulos das câmeras dos repórteres, de repente, aponta para algo que nos chama a atenção: no desabamento de uma igreja local, tudo veio por terra, esfarelando-se, mas um objeto escapou à fúria do sismo: uma cruz de Cristo, que permaneceu intacta, solitária, símbolo verdadeiro da resistência divina no meio da total desolação. A cruz ali sinalizava para uma
Certa esperança de que nem tudo se perdia, sobretudo a força da esperança e da resistência de um povo profundamente sofrido nos seus objetivos de vida .
A lição da cruz de Cristo, em sua imensa solidão, não é um sinal de fracasso da luta da humanidade para um caminho mais seguro. Sua lição resiste às forças da Natureza, aponta para um recomeço, nunca para a desistência. O país não pode ser riscado porque ali houve um cataclismo, um desastre natural nas acomodações das camadas fundas do solo. É preciso haver perseverança, paciência, abnegação e sobretudo amor às pessoas que estão sofrendo enormemente.
A cruz de Cristo bem pode ficar na mesma posição quando ali for reconstruída a mesma igreja, com o mesmo espírito de cristandade. Oxalá que, dentro de algum tempo, pessoas que sobreviveram ao desastre de agora possam ali rezar uma missa reunindo não só os cidadãos do país,mas todos os povos que, esquecendo algumas divergências político-ideológicas, se uniram para dar apoio material e moral aos sobreviventes. Vejo ações desse tipo como modelos que devem ser imitados nas relações entre os povos ainda que estes sejam separados por religiões diferentes.
O símbolo da Cruz vai servir como instrumento da passagem das rivalidades para a paz e união dos haitianos. Que a cruz de Cristo possa ser um elo constante na ação reconstrutora da capital haitiana.
Daqui desta coluna me congratulo com as forças de paz da ONU, com os abnegados militares das diferentes nacionalidades que receberam essa missão de trabalhar para a organização política, social, econômica e cultural do Haiti. Me congratulo também com os chefes de governos das nações envolvidas na reconstrução deste país e sobretudo me regozijo com o afanoso e beneditino trabalho da Cruz Vermelha Internacional, dos Médicos Sem Fronteiras, das representações diplomáticas ali baseadas.
A cruz de Cristo estará pairando acima de todos os obstáculos que com certeza se defrontarão todos esses segmentos humanos que ali estão a serviço da humanidade e da paz. Daqui a algum tempo, ainda que custe muito tempo a cruz de Cristo estará novamente abençoando todos os que, dentro e fora de sua igreja, procuram a comunhão entre os povos.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Fernanado Pessoa: "English sonnet XVII"

Fernando Pessoa: “English sonnets, XVII”



Sonnet XVII


MY LOVE, and not I, is the egoist.
Mlove for thee loves itself more than thee;
Ay, more than me, in whom it doth exist,
And makes me live that it may feed on me.
In the country of bridge the bridge is
More real than the shores it doth unsever;
So in our world, all of Relation, this
Is true – that truer is Love than either lover.
This thought therefore comes lightly to Dooubts’s door –
If we, seeing substance of this world, are not
Mere Intervals, God’s Absence and no more,
Hollows in real Consciouness and Thought.
And if ‘tis possible to Thought to bear this fruit,
Why should it not be possible to Truth?


Soneto XVII

MEU AMOR, não eu, o egoísta é.
A ti meu amor ama mais a si próprio que a ti;
Sim mais do que, no qual realmente existe,
Viver me faz a fim de que possa de mim nutrir-se.
No país das pontes a ponte é
Do que as praias que o unificam mais verdadeira;
Destarte, em nosso mundo, no qual tudo se une a tudo, isso
Verdadeiro é – do que dois amantes mais genuíno o Amor é
Portanto, suavemente vem até da Dúvida a porta este pensamento –
Pois nós, deste mundo a substância vendo, não somos mais do que
Simples Intervalos, a Ausência de Deus e nada mais,
Da legítima consciência e do Pensamento Vazios.
E se possível for ao Pensamento este fruto gerar,
Por que não deveria possível ser a Verdade alcançar?

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Fernando Pessoa: "Sonnet XVI"

Fernando Pessoa: “Sonnet XVI”



Sonnet XVI

WE NEVER JOY enjoy to that full point
Regret doth wish joy had enjoyed been,
Nor have the strength regret to disappoint
Recalling not past joy’s thought, but its mien .
Yet joy was joy when it enjoyed was
And after-enjoyed when as joy recalled,
It must hve been joy ere its joy did pass
And , recalled, joy still, snce its being-past galled.
Alas! All this is useless, for joy’s in
Enjoying, not in thinking of enjoying.
Its mere thought-mirroring gainst itself doth sin,
Yet the more thought we take to thought to prove
It must not think, doth further from joy move.


Soneto XVI

NUNCA A ALEGRIA plenamente alcançamos
Na verdade, o pesar aspira da alegria à fruição,
Não deve a força o pesar desapontar
Da alegria finda recordando, não o pensamento, mas sua aparência.
A alegria, quando desfrutada, alegria foi
E, após a fruição, quando recordada, alegria era
Alegria ter sido deveria antes que alegria na verdade sido haja
E, alegria ainda, relembrada, já que, sendo, tormenta era.
Ai de mim! Inútil isso tudo, porquanto consiste a alegria
No gozo, não na idéia dele.
Da idéia contra si mesma tem o espelho do pecado a força
Refletir basta para que se desfaça a vida plena
Todavia, quanto mais, para contentá-lo, cansamos o pensamento
Menos efeito surte; ao contrário, mais distante da alegria fica.

(Tradução de Cunha e Silva Filho)

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Há algo errado no Planeta Terra

Há algo errado com o Planeta Terra


Cunha e Silva Filho


É preciso recorrer aos bons espíritos, aos orixás, às rezas, às orações, jamais porém, aos vodus, esses, já se sabe, não trazem felicidade ao solo haitiano. Se possível, seria o caso de se chamar com urgência um padre exorcista para desdemonizar o Haiti e o próprio sofrido, sugado e exaurido Planeta Terra.
Afastemo-nos dos maus espíritos com água benta, crucifixo e muitas preces ou orações. Não estou gostando deste início de ano. Como católico não praticante, está na hora de benzer a Terra. Não vai aqui nenhuma piada de mau gosto. É necessário mesmo benzer nosso planeta. Até em nosso país se tem notícia de tremor de terra. Não, a notícia na TV falou de terremoto no Rio Grande do Norte com certa repercussão de sinais em Pernambuco e na Paraíba. Dá até pra pensar que o mundo inteiro não está imune a sismos e outras catástrofes. Já falei alhures que a Natureza-Mãe está dando o troco a todos nós que dela não estamos cuidando bem. Veja as águas, com as inundações mortais, os furacões com sua trilha de destruição, as geleiras dando mostras de derretimento, as mudanças drásticas climáticas como nunca foram sobre a face da Terra. Temos todos os sinais de alerta.
Agora, é tempo de defender nosso planeta com unhas e dentes numa mobilização em escala mundial, não dando trégua a quem o maltrata sobretudo com fins de ambição de lucros estratosféricos visados por países que só pensam no hic et nunc.
No entanto, sempre me ensinaram na escola que o Brasil não tem vulcões nem terremotos. Temos, sim, tremores de terra, mas não abalos sísmicos da estatura de um terremoto.
Mas, para compensar temos corrupção desenfreada, violência em proporções alarmantes, desmoralização de nossas instituições públicas. Temos o carnaval, o futebol, mulheres lindas - grandes amortecedores da insânia coletiva. Por isso, os governantes dão tanto apoio financeiro e publicitário a esses segmentos da vida social. A frase de Tristão definindo o futebol como o “grande catalizador”, para mim, está superada diante do quadro assaz repetido da violência em que se transformaram as chamadas torcidas, parte das quais se comportam como delinquentes, vândalos, assassinos e fanáticos prontos a qualquer tipo de reação violenta contra torcedores opostos. O que pensariam deles grandes torcedores do nosso meio cultural e amantes do futebol, como Nelson Rodrigues, João Saldanha, escritores como Marques Rebelo, José Lins do Rego, entre tantos e tantos outros torcedores que amavam o fair play dos grandes jogos da história do futebol brasileiro e internacional?Hoje, dia de jogo é dia de apreensão e de medo para os que saem às ruas. Daí tanto aparato policial. E o pior é que esse comportamento antissocial não se restringe ao Brasil. Temos visto o mesmo filme na Inglaterra e em outros países. Costumo dizer que só mudam a língua e o país. O ser humano dito civilizado é o mesmo nos sentimentos e nas reações violentas.
Temos ainda a natureza exuberante, recurso naturais, diversidade climática, todos os níveis sociais que vão da extrema riqueza até à linha mais baixa da pobreza. País de contrastes, do “homem cordial” “país do futuro’, terra do samba e de todos os ritmos musicais. Temos a Amazônia com seus desmatamentos. Temos uma só língua oficial com os variados dialetos regionais e diferentes sotaques, como o nordestino tão apreciado, pelo seu pitoresco, por nosso grande prosador de ficção Érico Veríssimo.
Observe-se a tragédia, agora, no Haiti, na região do Caribe, país sofrido, com problemas crônicas nas questões políticas e sociais. Porto Príncipe, sua capital, com níveis de vida abaixo da linha de pobreza, vivendo conflagrações intestinas, necessitando constantemente do apoio da ONU e de forças de paz, inclusive, do exército brasileiro, que lá tem um contingente há pelo menos cinco anos.
Pois bem, com gostam de dizer os mais velhos, o Haiti, não bastasse seus grandes e sangrentos conflitos internos, agora é devastado por um massacrante terremoto - nunca visto em duzentos anos, afirmou um repórter - catástrofe que, desta vez, não respeitou nem o Palácio do governo presidencial. Pobre e ricos foram vitimados. Contam-se aos milhares os mortos debaixo de escombros de edifícios desmoronados. Infelicidade por toda a parte. “Wasteland’, não a elliotiana, mas a de Porto Príncipe, destroçado sem misericórdia.
No Haiti só há choro, mortos nas ruas, famílias desesperadas, sem destino, sem teto, sem alimento, sem água, sem luz, sem remédio, com falta de médicos, com hospital destruído. Até o socorro dos Médicos Sem Fronteiras lá não está disponível. A Cruz Vermelha, que me consta, está dando apoio na medida das suas possibilidades. Está morrendo gente, muita gente no Haiti. Ajudemos, pois, o Haiti. Mexam-se para isso as nações mais ricas. Até parece que, quando há uma desgraça, uma outra maior e mais intensa de repente surge. Precisamos benzer o Planeta Terra.
Os homens ainda não se deram conta disso. Só as bênçãos são capazes agora de mitigar a tragédia do Haiti. Só Céus terão misericórdia de toda esse infortúnio.
Soldados brasileiros já fazem parte do número de mortos. Lá foram fazer o bem, lutando pela paz. Uma brasileira ilustre, a Dra. Zilda Arns, de 75 anos, médica sanitarista, que em Porto Príncipe, foi coordenadora internacional das Pastorais da Criança e da Pessoa Idosa da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, foi infelizmente mais uma vítima do terremoto.Mulher de valor, cuja vida foi construída em favor dos desprotegidos e dos idosos no Brasil e no exterior. Dela sentiremos falta. Há algo errado com o Planeta Terra...

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Por um Brasil melhor

Por uma Brasil melhor

Cunha e Silva Filho


Não há coração que aguente. Por todos os lados, nos bombardeiam com notícias que nos amedrontam, que nos deixam indignados e que ainda,, na mistura de suas diferenças, se tornam uma ópera-bufa dando-nos, ainda de lambujem, um retrato surreal do país.
Onde é que um Presidente da República assina um pacote de medidas de alto alcance social sem primeiro ler o texto? Onde uma filha desarvorada combina com o namorado bandido para que este assalte a mãe dela? Onde pessoas andando pelas ruas do subúrbio de repente recebem balas perdidas e naquele instante morrem estupidamente?
Onde clínicas, sem médicos especializados para certas cirurgias, realizam operações que levam a mortes desnecessárias? Onde um governador, colhido em flagrante de recebimento de polpudas propinas de fornecedores privados ainda continua impune, por cúmulo, ainda determina que sua polícia militar agrida manifestantes que clamam por justiça e honestidade no trato do dinheiro público? Onde assecla do mesmo governo, apanhado colocando maços de notas nos bolsos do paletó, nas meias e, dias depois, reassume a presidência da Assembleia Legislativa do Distrito Federal? Onde governadores de estados brasileiros assolados pelas inundações não se apresentam logo em pessoa a fm de determinar urgentes providências para atender às populações que perderam suas casas, seus bens, seus pertences?
Onde governadores e secretários, aproveitando-se dos seus cargos, gastam rios de dinheiro com passagens e hospedagens luxuosas no exterior, ao mesmo tempo em que em seus estados faltam sistemas de saúde adequados, policiamento mais eficaz, educação pública de qualidade e salários dignos a seus funcionários, como médicos, professores, enfermeiros etc.?
Leitores, não é possível que tanta gente morra assassinada em nosso país, que tanta gente seja assaltada diariamente, em todos os lugares, em todos os bairros, em todos os cantos do país. De há muito a vida se tornou um traste, algo sem importância. “Morreu?’ “Enterre-se.”
Os malfeitores de todas os tipos nem se lixam pelo mal que fazem. Sabem que ficarão impunes na maioria das vezes. Se matam no trânsito, o caso na delegacia se resolve. Paga-se fiança e o criminoso do trânsito volta para casa , quem sabe, até rindo da justiça brasileira.
Diversos escândalos financeiros que deram prejuízos irrecuperáveis à Nação brasileira não colocaram seus culpados na cadeia, uma vez que esta é lugar mais para os pobres e pretos.
Se não houver mudanças em vários setores das instituições do Estado brasileiro, a começar dos três poderes, da moralização política, do endurecimento das leis contra assassinos de crimes hediondos e contra criminosos do trânsito, contra maus políticos e maus governantes, da mais baixa função até a mais alta, a sociedade brasileira será forçada a criar e inventar seus próprios meios para que a mudança geral se torne uma realidade e nosso país possa ser considerado uma Nação séria.
Temos tudo a nosso alcance. O país dispõe de avançada tecnologia, a ciência em muitos ramos está avançada, temos um quadro de professores universitários de bom e ótimo nível. Nossos meios de comunicação estão em sintonia com o mundo inteiro . Temos uma juventude que aspira a viver num país com mais justiça, com uma política moralizada e com um propósito de levar a nossa pátria a um lugar invejável diante de outros países. Não queremos ser hegemônicos, nem imperialistas, nem senhores do universo.
Queremos viver numa pátria sadia, pacífica, com pessoas de bem, com crianças felizes e protegidas, com velhos respeitados, com mulheres emancipadas e com direitos iguais aos dos homens, com uma sociedade que saiba respeitar as diferenças individuais, sem preconceitos de qualquer espécie, sem hipocrisia, sem máscaras.
O de que carecemos urgentemente é ética, sinceridade nos homens que nos dirigem, espírito de conciliação e o entendimento de que só atingiremos metas prioritárias se purificarmos esse país de seculares chagas que persistem nos diversos setores de nossas instituições: corrupção, cinismo, desrespeito às leis, ao direito do próximo e ausência do velho sentimento de civismo pregado por brasileiros que souberam honrar os destinos do país. Em outras palavras, não precisamos de mitos com pé de barro, nem de líderes messiânicos. Precisamos de homens honrados, competentes e que tenham amor ao Brasil.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Fernando Pessoa: "Sonnet XV"

Fernando Pessoa: “English sonnet XV”



LIKE A BAD SUITOR desperate and trembling
From the mixed sense of being not loved and loving,
Who with feared longing half would know, dissembling
With what he’d wish proved what he fears soon proving,
I look with inner eyes afraid to look,
Yet perplexed into looking, at the worth
This verse may have wonder, of my book,
To what thoughts shall’it in alien hearts give birth.
But, as he who doth love, and, loving, hopes,
Yet, hopping, fears, fears to put proof to proof,
And in his mind for possible proofs gropes,
Delaying the true proof, lest real thing scoff,
I daily live, i’th’ fame I dream to see,
But by my thought of others’ thought of me.


Sonnet XV


COMO INDESEJADO PRETENDENTE no amor, desvairado e trêmulo,
Indeciso entre a idéia de não ser amado e de amar
Que, dissimulando, teme a verdade saber pela metade
Da qual desejasse a certeza do que logo revelado ser receia,
Com medo de saber para o meu interior olho e,
Perplexo, contudo, examino o valor
Do meu livro que este verso possa ter e sugerir e
Pensamento possa dar vida aos corações alheios.
Entretanto, tal como aquele que realmente ama e, no amor, espera,
Embora, saltitante, tema e tema pôr a prova à prova,
E, na sua mente, sondando possíveis provas,
Para não se expor ao ridículo, a prova verdadeira adiando,
Da alegria que meu sonho cria vivo dia a dia
Tirante do pensamento dos outros sobre mim o meu pensamento.

(Tradução de Cunha e Silva Filho)

Clima, chuva e mortes

Clima, chuva e mortes


Cunha e Silva Filho



O cronista não tem a obrigação da palavra cientifica, da experiência conclusiva, nem do conhecimento em geral. Ele apenas serve de intermediação entre o que pensa como pessoa comum e o leitor. De há muito a crônica perdeu aquela rígida acepção etimológica do grego krónos (tempo) nem mais tem aquele sentido dos cronistas portugueses à Fernão Lopes (século XVI). O fato é que esse gênero para alguns parece ter sua origem literária no Brasil. A crônica, pois, não pode ter o caráter de uma monografia, um ensaio, dissertação ou tese que se fundamentam numa hipótese de trabalho.. Na crônica não há, segundo assinalei atrás, essa pretensão de conclusão, ainda que provisória, sobre um dado tema. Longe disso, seu caráter é antes fugidio, digressivo, centrífugo. Não se pode exigir do cronista a lógica, a inferência dos dados fornecidos pelas ciências exatas, nem tampouco de nenhum outro ramo do saber.
O seu espaço literário é o da completa liberdade sem, porém, o desleixo da linguagem, a qual deve primar pela literariedade, sobretudo aquele tipo de crônica que se deixa permear do lirismo. Quando atinge um alto plano literário, seu valor não deve ser subestimado como gênero menor, como quer o eminente ensaísta e historiador Massuad Moisé.
Mas A crônica - reforço – é um gênero literário já estabelecido e não dá nenhum sinal de decadência ou exaustão. Ao contrário, novos cronistas estão surgindo, com seus estilos próprios e sintonizados com o nosso tempo. Isto porque a crônica se faz de acontecimentos e fatos, de memória e de poesia. Ela dimana da vida e sua movimentação, da novidade, dos acontecimentos sociais e culturais de um povo, do interagir do ser humano, e do próprio enigma de algumas questões do mundo físico ou metafísico. Como gênero literário, não pode ter fim, presumo. Com certa modificação, há de perdurar como o conto, a novela, o romance, o soneto etc.
O compromisso do cronista, no mais das vezes, é com a subjetividade, sua ou de outrem. O que a crônica pretende é opinar com liberdade sobre quase tudo, mas nunca aspirando a ser dona da verdade. A crônica também se subdivide em tipos diferentes de enfoque: a esportiva, a policial, a memorialista, a lírica, a política, a econômica, a religiosa, a científica, a das artes diversas, a ficcional. (esta última não deve se confundir com o conto), a humorística.
Quanto à ficcional, cumpre delimitá-la no que tange ao seu alcance. Diria que a crônica ficcional seria aquela que fica a meio caminho da ficção (do conto) e da realidade referencial. O que ela relata existe, mas dela se pode extrair elementos que pertencem ao domínio da subjetividade, quer dizer, o cronista a constrói mas deliberadamente, ou não, mistura elementos fáticos com a imaginação.
A crônica, assim, se deixa infundir de componentes próprios da poesia.
Rubem Braga foi um exemplo típico do cronista lírico. Carlos Drummond de Andrade, da crônica ficcional, social e lírica. Otto Lara Resende, da crônica político-social , Paulo Mendes Campos, da lírico-ficcional, Ferreira Gullar, da lírica, da ficcional, da política, da crônica de artes plásticas, Fernando Sabino, da ficcional, Raquel de Queiroz, da política (sobretudo no início da carreira), da social, Carlos Eduardo Novais, da ficcional, da humorística, Fausto Wolf, da política, recheada de crítica ferina e corajosa.
Após essas divagações, entro, agora, no tema desta crônica. Ora, leitor, será difícil alguém me convencer de que aquilo que está acontecendo de trágico no país e no mundo não tem a ver com o nosso pouco caso com a defesa de nosso planeta.
Todos nós que já vivemos mais já assistimos a grandes enchentes dos rios. As inundações fazem parte dos males da Natureza. Não há dúvida sobre esse ponto.
Porém, o que se esta vendo em toda parte é um desequilíbrio assombroso índices pluviométricos. Por toda parte, as not´cias se espalham: os rios estão subindo em excesso como nuca visto antes.
No país as notícias de vendavais, acompanhados de chuvas pesadas, se tornaram constantes. Inundações que vêm destruindo tudo, até seculares igrejas históricas. Nessa proporção, com enchentes gigantescas no Rio de Janeiro (vide a tragédia de final de ano em Angra dos Reis), em São Paulo, no interior, em minas, em Santa Catarina, o Rio grande do Sul, no Paraná, no Nordeste. São sinais de alerta para ouvidos não moucos. Os prejuízos materiais, econômicos e sobretudo em vítimas fatias são enormes e preocupantes.
Essa “fúria” da Natureza tem explicação. Está intimamente correlacionada com o efeito estufa, co a poluição crescente provocadas pelas milionárias emissões de CO2. A Terra está muito quente e as estações parecem se embaralhar e, quando mudam, mudam com feições atípicas, pelo excesso de neve ou pleo excesso de calor. A evaporação duplica assustadoramente. As geleiras não cessam – moto contínuo – de paulatinamente derreter. Os mares, os oceanos se avolumam assustadoramente. Não é mau presságio, mas aquilo que já defini como “o sinal das águas.”
A última reunião de autoridades mundiais na Dinamarca, badaladamente cunhada de COP15, praticamente só fez barulho, mas rigorosamente nada de eficaz e urgente decidiu como compromisso legal e aprovado pelas nações participantes. Só logorréia, muito gasto das elegantes comitivas, luxo de hotéis, lautos jantares, indumentária de grife, requinte de jóias, belos aviões, carros suntuosos, tudo para atender aos chefes de Estado de nações hegemônicas, muita tradução para várias línguas, holofotes. É pouco?E como ficamos? Ou não ficamos? Os cientistas sérios do mundo já deram repetidamente seus pareceres sobre a questão climática no planeta Terra. Os dirigentes das nações poluidoras já estão disso informados. Conselhos dos sábios não faltam.
O que falta mesmo é atitude, vontade política séria dos chefes de Estado. Não só atitudes, ações pragmáticas, concretas, determinadas e urgentes. A humanidade toda necessita é de lançar, aos quatro cantos do mundo, manifestos aos líderes mundiais em defesa da sobrevivência de nosso planeta.
Ou os povos civilizados mudam seus hábitos egoístas de consumos ciclópicos ou a “fúria” das águas será implacável como o dilúvio do tempo de Noé.
No desastre que se abateu sobre o paraíso de algumas áreas de Angra dos Reis, um jovem sobrevivente, em canal de televisão, deu um dramático depoimento sobre a morte de sua noiva que ficara debaixo dos escombros de lama, pedra e água. Suas palavras expressam bem a situação climática que está ceifando tantas vidas no país e no mundo: “Só depois da tragédia compreendi que não somos nada. A Natureza pode tudo, é poderosa demais. Passarei, de agora em diante, a respeitá-la muito mais.” Reflitam, autoridades do meu país, enquanto há tempo, sobre esse testemunho sofrido e amargurado de um jovem sobrevivente brasileiro da tragédia.

sábado, 2 de janeiro de 2010

Balanço de Letra Viva"

Balanço de Letras Viva
Cunha e Silva Filho



Um ano se passou ou fui eu que passei, diria eu tentando parodiar uma célebre frase de Machado de Assis (1839-1908)? De qualquer forma, passei incólume e, por isso, devo agradecer como o fazia uma ex-professora minha judia, que não conseguiu, ainda moça, escapar de um câncer.
Fazendo o balanço do que consegui e do que não consegui, o saldo foi algo positivo, sem querer dar a este último termo uma acepção de um enunciado do jargão militar. Positivo porque, nesta minha coluna, postei 173 textos no ano que terminou ontem, ou seja, textos , pequenos ou grandes, que, se publicados dia a dia, corresponderiam a uma metade dos dias de 2009 Foi uma colaboração quantitativamente favorável. Mas, foi uma colaboração. Nela pude desenvolver matérias que poderia dividir em resenhas, crônicas, tentativas de ficção, de poesia, de publicação de velhos textos inéditos, de pequenos ensaios, de médios ensaios e de exercícios de traduções, além de de duas versões para o inglês dos poemas “Poema para Izabel” e “Os sinos”, respectivamente, de Jurandir Bezerra, poeta festejado do Pará, e de Adailton Medeiros, estimado poeta maranhense que fez. parte dos poetas do movimento de vanguarda brasileiro denominado “poesia-práxis”, cuja figura central foi a do poeta e ensaísta Mário Chamie, movimento dissidente do Concretismo (1956) que teve o apoio do veterano poeta Cassiano Ricardo (1895-1974), através do seu enssaio “22 e a poesia de hoje” (1961).Esse movimento teve como porta-voz inicial de seus princípios estéticos a revista Práxis. Revista de instauração crítica e criativa, São Paulo, 1962
Com o tempo vamos descobrindo alguns prazeres no domínio literário. Um deles para mim tem sido, nos últimos tempos, o prazer de traduzir, inicialmente, de forma não profissional Não devo esconder o fato de que traduzir dá trabalho, nos envolve por completo e, por vezes, nos deixa insatisfeito por não conseguir alcançar aquele ponto ideal de quem se dá ao labor dessa arte. Mas, a tradução de poemas, como qualquer atividade literária, é passível de revisões, de melhorias, de correções. Semelha àquela ânsia do escritor que está sempre modificando um pouco o seu texto a fim de torná-lo, na sua opinião, melhor e mais aproximado do desejável.Voltaire compara o trabalho da tradução ao da preparação de uma jóia.
Quero crer que meu leitor, a esta altura, da minha produção nesta Coluna, no meu blog, As idéias no tempo, e por vezes, no Diário do Povo, de Teresina, este último repetindo meus artigos de menor extensão, já pode ter formado algum julgamento do que defendo nas minhas matérias sobre assuntos vários. A minha atividade de escritor uma coisa não pode perder de vista: a de expor meu pensamento com independência sobre questões que me estimulam ao debate e, na defesa do meu pensamento, não dou trégua aos inimigos da justiça social, da paz, da integridade física do meu país, da democracia.
Os meus textos ainda se estendem grandemente à luta contra a corrupção das nossas instituições públicas e privadas, contra os desníveis sociais e contra o chamado capitalismo selvagem, que, no fundo, equivale a uma globalização sem controle do neoliberalismo, tentacular, com suas cruéis implicações no seio da vida social brasileira, como a violência, a fome, a máquina do Estado desviada dos seus princípios éticos, a corrupção política, os erros da nossa educação pública e privada. Minhas reflexões ainda se estendem a uma crítica responsável a quaisquer atos e fatos no mundo que atentem contra a liberdade dos povos, contra as liberdades individuais, os oprimidos, os preconceitos de toda espécie e, finalmente, contra as grandes nações que ainda persistem na tentativa de subordinar as nações mais fracas ao seu poder discricionário, hegemônico sob o forte amparo das forças econômicas.
Penso que o escritor, poeta, romancista, dramaturgo, contista, ou de qualquer outra atividade que use da comunicação escrita e oral, não pode deixar de lado a dimensão política, a coragem de se expor ainda que sujeito às críticas dos adversários no campo das idéias e no domínio teórico.