segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

O custo de vida no Brasil atual e outras considerações




                                                         Cunha e Silva Filho


       Acho que foi meu pai, Cunha e Silva (1905-1990) que definiu o brasileiro como  uma gente  branda. E eu direi bota branda nisso, uma vez que  está sempre aceitando   tudo que lhe vem  imposto de cima para baixo, quer dizer,  do  governo federal, dos governos estaduais e municipais. Essa falta de altivez e auto-estima só lhe é nociva à condição de cidadania, que praticamente não é exercida pelo povo.
       Povo  que, de ordinário, só cumpre ordens e ordens  lesivas à sua   condição  de brasileiro.Talvez isso sejam  resquícios da escravidão e, mais tarde, do coronelismo, do mandonismo, das relações autoritárias entre patrão e empregado, humilhados  e ofendidos. Ora,  essa passividade está incruada no espírito  do  povo humilde e acachapado.  Dentro desse conceito, vemos que  o brasileiro, em vez de  problematizar as questões cruciais que nos afligem,  prefere  ficar meio  calado, ou mesmo passivo a todas as  velhacarias   aprontadas pelas autoridades.
     Nesse caso, se parece com o "soldado  amarelo" do romance Vidas secas (1938) de Graciliano Ramos (1892-1953). Aceita  quase tudo, não se indigna  abertamente com nada. Vê o problema localizado, circunstancial, pontual,  e, sem  atacar o governo e as autoridades que   o prejudicam, prefere bater no médico, quebrar o patrimônio  público e aguentar  tudo como se fosse uma  ovelhinha  a caminho  do abate.  Feijão aumentou,  a batata também,  a gasolina,  o aluguel, os remédios,  os impostos, idem. Suporta tudo de cabeça baixa. Autoridade é autoridade. “Fazer o quê? É uma interrogação-bordão  muito comum  quando um brasileiro  cordeirinho  sofre qualquer injustiça que lhe fazem. O povo  não procura seus direitos, e ainda acha que o poder do Estado em tudo manda, tudo pode e tudo muda a seu bel-prazer e interesse partidário.
   Ao povo  cabe  obedecer,  de topete baixo.  Não é sem razão que um policial qualquer, ao falar com um  bandido, este o chama de “doutor”, “sim, senhor.” Ou seja, o povo humilde  ainda  sofre do  complexo do “soldado amarelo”  do medo da “autoridade, que pode prendê-lo e prendê-lo até injustamente. Fica afásico.
   Ora, sabendo as autoridades do país que o seu povo é assim, e aqui incluiria o pobre,  a classe média.  Esta última, pelo menos  alguns de seus membros, ainda  revela um certo  medo infundado dos governos. Já a burguesia,  as elites, não. Posicionam-se  acima  da mediania  nacional e a questão da autoridade para essas duas classes tem outro sentido, pois se sentem protegidas pelo peso  do dinheiro, dos bens materiais,  do poder econômico que  transforma  qualquer endinheirado em “doutor” sem nunca ter sido.
   De resto, “doutor” para quem está abaixo  delas  é o tratamento que o povão  dispensa  a quem tem dinheiro,  carro  luxuoso, mansões  riquíssimas. Um porteiro,  por exemplo,  distingue  os moradores de um  condomínio pelo que cada um ostenta  de bens materiais: carros custosos,  salários mais altos,  roupa de grife,  transporte próprio ou  uso  continuado de táxi, duas ou três empregadas domésticas à sua disposição e outros exibicionismos  de melhor   status    econômico.
   O conselho que certos economistas dão a quem se queixa dos aumentos, da alta carestia,  é no sentido de procurarem  substituir alimentos mais caros pelos mais baratos,   diminuir  os gastos com luz,  com compras, repensar seus gastos. O custo de vida é problema  dos pobres e  de uma classe média economicamente menos  privilegiada, porque essa classe média ainda, aos sábados e domingos,  enche os restaurantes  de padrão médio e vai   aproveitar  a vida, indo a shoppings,  fazendo viagens  programadas, mas tudo  com  algum  aperto que, mais adiante,  vai  ter.Vive a pagar quase todo a renda familiar  ao final  ou início de cada mês. Os cartões de créditos são,  nessa conjuntura,   os instrumentos  de que  se utiliza para   empurrar com a barriga  o limite dos seus salários.
   Alguns pobres com alguma consciência social  e a classe média até  reclamam dos governos,  dos aumentos,  das injustiças sociais.Contudo, o grosso, não.  Calam-se diante dos trancos   traiçoeiros  dos donos poder.
    O Estado Brasileiro é democrático,  mas a práxis político-econômica  é autoritária, prepotente   e  injusta. Os que estão no poder, por assim dizer, privatizam para uso  próprio o Estado enquanto estão no poder, do qual, no exemplo brasileiro,  não saem a não ser quando morrem  ou  ficam  muito velhos e impedidos  de  mandar no povo  acarneirado.
   “Fazer o quê?” é a palavra mágica da submissão e da acomodação  desse  povo alegre, festeiro,  “cordial” que vai  votar, no grosso,  nos candidatos fabricados pelos  hábeis marqueteiros, vendedores de imagens  fictícias de  “bons” políticos.
      Aos marqueteiros  pouca importa  se o candidato  vale alguma coisa ou se é  mais um outro  enganador  do povo. O que lhes importa é faturarem milhões nas  campanhas.de candidatos que seguramente  irão  ser eleitos graças às manipulações do dinheiro público  - fruto do suor do trabalho da sociedade -  e privado ,através das   gordas  doações do empresariado.
     Enquanto isso, a sociedade  se mostra dividida  e desunida, a  atual e a de tempos  pretéritos, com alguns  interregnos de governos  melhores   e  mais éticos.
  
 

            

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

Uma Nação indignada








                                           Cunha e Silva Filho


      Quase parafraseando  Manuel Bandeira (1886-1968),  o grande lírico brasileiro que se tornou  modernista, diria que estou  farto do academicismo conformado, que vai olhar nas obras alheias (nacionais ou estrangeiras)  a base teórica para  elucidar  o que seja brasileiro, o que é direita,  esquerda,  liberal,  neoliberal,  fascista (que serve tanto para a direita quanto para a esquerda caviar-capitalista disfarçada).
      Estou farto das teorizações inócuas, “em cima do muro,”  que escreve  para uns happy few supostos  detentores  soberbos  do conhecimento  global,  novos espadachins às avessas defendendo  uma causa ou outra, em sentidos sempre de emulação  enviesada, dando ao leitor  a impressão de que está afirmando a favor quando o que  exprimir  é o contrário, o chamado muito pelo  contrário, ou imprecisão  conclusiva.
   Impera a anfibolgia, o duplo sentido, o decifratório, o enigma,  a esfinge,  o tabuleiro de xadrez,  o labirinto do Minotauro sem a esperança de um Teseu que viesse derrotá-lo,  livrando sua   pátria, Atenas, do temível  antropófago Minotauro, monstro metade homem, metade touro.  Após ter  derrotado os atenienses, o rei Minos, rei da ilha de Creta,  os condenou a entregar-lhe anualmente  sete jovens, moços e moças.   Teseu, ajudado  contraditoriamente  por  Ariadna,  filha de Minos e apaixonada por  ele,dela recebeu um   novelo  de fio com qaue conseguiu  atravessar o labirinto que o levaria a encontrar o Minotauro. Teseu o matou, , libertando a sua pátria desse castigo.  
   Ante o quadro  tétrico da  política  nacional,  quem não há de se indignar por todos os meios de comunicação que,  felizmente,  ainda temos como fórum de debates, de comentários,  de pontos de vista, de troca de ideias. O Facebook não é esse bicho-papão que andam  apontando como   uma arena  sem sentido. Antes,  é um canal no qual se pode dizer o mínimo sobre o que nos indigna como cidadãos diante dos erros  cometidos  pelo  atual  governo federal.
   Reconheço os defeitos, o besteirol que ainda  pulula no Face e noutras redes sociais. Contudo,  ele está longe de ser uma forma “imbecil” de comunicação  entre seus usuários como, a meu ver, erroneamente  pensava o notável  pensador e semiólogo recém-falecido, Umberto  Eco. O Face tem muitas serventias. Pode até ser um brainwash, mas, neste caso,  o usuário consciente e bem informado culturalmente pode se prevenir de ser contaminado  pela lado  ruim dessa rede social ou de outras.Um usuário do Face também lê jornais,  bons livros,  alarga assim, seu  “horizonte de  expectativa,” o seu repertório cultural.O nível cultural do usuário vai do mais  simples ao mais  intelectualizado. Não pode haver com isso  nenhum preconceito contra as redes sociais. Nisso, da mesma forma,  nelas vejo  uma prática saudável e   democrática, sem cerceamentos às liberdades de expressão e à multiplicidade  de posições  ideológicas.
     Louvo o caráter democrático  que o Face  imprimiu ao universo  virtual, dando  chance a vozes  mais modestas do tecido social e fazendo suas observações  acerca dos problemas  brasileiros, anda que na condição, na maioria da vezes, de leigo. Há temas e questões cruciais e polêmicas  e modos  de  ver o mundo que só essa rede social e outras têm permitido  serem  levadas a cabo e em tempos real.
   Todas  essas especulações e ângulos   que estou  tentando  trazer à baila têm como  fulcro de meu interesse e de minha  atenção os desatinos  da vida brasileira no cenário  político-institucional.Diviso, didaticamente,  pelo  menos três  questões que me têm  provocado   indignação, as quais não  são desconhecidas  do público  em geral: 1) a permanência de uma presidência da República esgotada e desmoralizada;2) os desacertos da nossa economia; 3) a impunidade diante da violência  catastrófica e crônica. E por violência entendo todos os seus tipos  e  todos os seu correlatos.Quer dizer,  esse quadro de desordens e de instabilidade  crescente envolvendo as três questões mencionadas.
    Comentemos, sem muitas minúcias, cada uma. O fato de termos  uma presidente que perdeu a credibilidade e o voto de confiança  de parte substancial do eleitorado  é fator determinante  de uma saída por renúncia ao cargo ou por  razões legais.Os escândalos  que cercam o seu governo com as investigações  em série da Lava Jato já dispõem de suficientes evidências de conluio entre o seu governo e  a propinas recebidas por  empresários à custa do dinheiro público (Petrobrás, por exemplo).
    A soma de notícias de desídias  apontando  a cumplicidade do governo  federal colhidas pela Polícia Federal e veiculadas pelos meios de comunicação, dia após dia,  criou  um  constrangimento  no governo  difícil de  sustentar a continuidade de um mandato presidencial.As notícias recentes recrudescem ainda mais a posição  incômoda da presidente Dilma., sobretudo  as ligadas ao marqueteiro João Santana que cuidou  da publicidade  da campanha da presidente Dilma.     
    Um bilhete escrito à mão pela esposa daquele marqueteiro revela o bas-fond em que se transformou  a relação entre  um marqueteiro e sua forma   duvidosa  de  recebimento de dinheiro proveniente de fontes  públicas e com  pagamento  em depósito no exterior  em dólar  ou  euro. Tudo negociado  ao arrepio da Lei. Isso é gravíssimo e só piora  a situação  já deteriorada do cargo presidencial.
    A segunda questão, de natureza mais técnica,  se refere à política econômica do governo,  a qual,  igualmente,  anda com pernas trôpegas,  em virtude  do desaquecimento da economia, da recessão, do  alarmante  contingente de desempregados e do alto custo de vida  que estamos  enfrentando no país. Ora,  aumentam-se os preços e se arrocham os salários.  O mais pobre é o mais sacrificado. A classe média vai encolhendo suas possibilidades de  consumo e os funcionários públicos têm seus salários reduzidos, encolhidos, pelo arrocho  que lhes é imposto  em decorrência  do desgoverno,  da roubalheira  dessa era  petista.
   Diante dessas  deformidades  de governança, não há como   não se indignar, protestar  e desejar  por mudanças  radicais, como  a saída, por meios legais,  da atual ocupante  do cargo mais alto da Nação. A indignação não é um defeito da alma  humana, antes é uma virtude dos que não são subservientes,  pusilânimes, acovardados,  passivos,  “politicamente   correto”  - detestável forma de  aceitar tudo como se fora  natural e compactuar com   a permissividade perniciosa  co-partícipe das iniquidades humanas,  do imoralismo,  do homem sem alma, sem parâmetros,  sem frios,  fatores degenerescentes  de uma sociedade  cada vez mais hedonista  e insolidária.
  A derradeira  questão mencionada, a da impunidade se imbrica em todas as precedentes  afloradas. A impunidade é fator  decisivo  do alto nível de violência por que o  nosso país está  passando para vergonha  das nações mais  bem organizadas socialmente. Mata-se hoje no  país por qualquer coisa. A morte campeia no trânsito tresloucado, nas ruas infestadas por delinquentes juvenis que são  apenas “apreendidos” e não presos por  seus crimes  abomináveis ceifando  pessoas jovens e promissoras,  crianças,  adultos,  idosos,  nacionais,  estrangeiros, fazendo do Brasil um país mal visto no mundo, um país assediado pela bandidagem  à solta,  assaltos,   sequestros relâmpagos, “saidinhas” de bancos,  balas perdidas afetando mais as crianças pobres nas favelas das metrópoles Rio de Janeiro e São Paulo e em outras capitais e até no interior  do país. Somados a esses males  sociais se encontram as drogas,  os traficantes,  a compra de armas pesadas que vai  fortalecer o poder de fogo da bandidagem em larga escala para a qual a polícia é um inimigo enfraquecido.
     Qual foi ou tem sido a punição exemplar para esses  facínoras? Quase nula. A polícia  prende e a Justiça  liberta.  A lei penal brasileira só vale no papel. O Código Penal  é brando. As brechas da lei facilitam  outros  crimes  dentro da própria legislação criminal  (prisão domiciliar, comutação da pena, condicional,  “bom comportamento,” (posto que fingindo) e outras aberrações prisionais  que só beneficiam os  criminosos e os estimulam a perpetrar  novos  crimes,  permanência renitente da não redução da maioridade penal, fonte   reprodutora  dos crimes hediondos  no país  sem punição  adequada à crueldade  do delito. As mães, os pais , a família  brasileira de todas os níveis sociais e culturais não param de chorar  pelos seus filhos  mortos  por  bandidos cruéis, mesmo  que suas vítimas não esbocem nenhuma reação. Matam  por “maldade,” segundo já se disse. Matam porque  estão drogados ou não. Matam por matar – terrível realidade de nossos  tempos contemporâneos e apocalípticos!
   Violência de todas as formas – acentuamos – a violência de  homens contra mulheres ou vice-versa,  de novos contra idosos,  de pais contra filhos ou vice-versa, a violência  policial ( por que não?),  a violência doméstica, estupros ocorridos no seio da família. A lista  de tipos de  violências  é quase interminável e, para arrolar mais uma   que  eu chamaria de  violência  política,  muito nefasta  e arraigada em nosso país e raiz de muitos tipos de violência porquanto  se reflete na vida da população, na saúde,  na educação,  na segurança, no lazer, na vida social, na vida cultural.    

     Diante desse conjunto de desarmonia  social não tenho eu, leitor,  o dever ético de me indignar e de me  aliar a outras vozes  que, pelo país afora, clamam por uma vida mais digna,  mais fraterna, mais  humana?    Indignar-se é um apanágio dos  que não  se curvam à prepotência  e às atrocidades  do mundo em que vivemos..  

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Entre o "diário perdido" e a recuperação pela memória






                  Cunha e Silva Filho



              As memórias  são construídas entre o perdido  e relembrado. Ao escrever suas memórias o autor muitas vezes lamenta consigo mesmo porque não havia feito a cronologia dos principais lances de sua  própria  história. Ah, se tivesse  escrito  aqueles lances que tanta significação  teriam no futuro! As memórias, assim, perdem momentos iluminados do ser diante da passagem da vida.  Incidentes que não deveriam ser  apagados mas escritos na velha forma de diários, de um  diário  que  anotasse, ao longo da vida, nomes, paisagens, diálogos, pensamentos, confissões,  divagações sobre as artes, o ser humano, a  existência, aqueles  bons ou maus instantes do pretérito.
            Só na ficção poder-se-ia recapturar todo esse novelo de fatos através da manipulação livre dos recursos narrativos, das anacronias ou  meramente  pela cronologia  tradicional.  As memórias sobrevivem de perdas e de esquecimentos voluntários ou  inconscientes.
            Aquele encontro com a primeira namorada,  com um grande amigo,  com um professor  que nos encantou,  com  as inúmeras conversas com nossos pais. Quantas coisas  perdidas para sempre  que não podem mais  ser socorridas  pela  capacidade  limitada da retentiva! Que  pena! Perderam-se,  desta forma,  talvez os melhores pedaços  de nossas vidas na infância,  na adolescência,  na vida adulta. O que ficou  foi a súmula incompleta de retalhos do passado. Por essa razão, as memórias são apenas  uma parte que nos vem à tona de forma  involuntária ou  porque forçamos a barra  para que  fatos acontecidos,  diálogos, incidentes e acidentes possam vir  ao presente.
       As memórias não são  apenas  relatos  lembrados, mas  reconstruções  do passado  pela linguagem que,  muitas vezes,  as ficcionaliza a fim  de  preencher os gaps, as ausências,  as impossibilidades  amnésicas.
      A essas impossibilidades  de recuperação do  tempo perdido chamaria de "diário  perdido". Todo ser humano  tem em  potencial  esse "diário  perdido". Seria possível escrever-se  um  tipo de  cronologia  dessa natureza? Creio que não. Mesmo porque quando somos tão  crianças  ainda não estamos   preparados  para botar no papel o que nos aconteceu  há cinquenta anos, por exemplo.  Mas, quanto lamentamos  a perda  do tempo  que vivemos, sobretudo os melhores  dias  de nossas   vidas: a infância e a adolescência. Contudo,  é claro que  esse "diário perdido" levaria o narrador quase a uma reprodução  mais abrangente dos fatos  passados. Já imaginaram um romance  que pudesse  ter acesso a esse  "diário perdido"?
       O mesmo se dá com  as fotos  que não tiraram de nós quando pequeninos. Eu mesmo nunca saberei  como  foi a minha  fisionomia  de bebê, com três anos,  com  sete anos, em foto em    que aparecesse  os meus pais  junto de mim . Hoje em dia,  que profusão de fotos possuem  os novos  pais com a facilidade  permitida  pelos celulares,  pela   internet. As crianças de hoje  não terão, na sua maioria,  esse problema  de  lamentar  as imagens perdidas, nunca  gravadas pelas  câmeras dos celulares,  tabletes etc. 
      Vivemos a época mais intensa das imagens  de nossos corpos, de paisagens, de  eventos, de closes  e  ainda mais  de  filmagens  de tudo e de todos.   Tudo se grava,  tudo  se fotografa. É o reinado do vídeo. Além de o vídeo   nos mostrar a imagem,  ainda  nos permite ouvir a  voz de todos que nele   aparecem.
   Ora, todas essas novidades virtuais serão úteis aos memorialistas do futuro,  que lidarão com  novos  instrumentos  de recuperação  de  fatos de sua  história pessoal ou coletiva.  Quem sabe, as memórias do futuro serão apenas em parte  faladas,  em  parte  vistas.
      Mas, o que me traz a este artigo são as memórias à moda antiga, aquelas cultivadas por escritores, me limitando apenas aos nossos, Joaquim Nabuco,  Humberto de Campos, Gilberto Amado,  Graciliano Ramos,  Álvaro Moreira, Érico Veríssimo.
      No Piauí, já contamos com um bom número de livros de memórias ou que se assemelham a estas, ou mesmo  se  incluiriam em memórias ficcionais. Já formaria  assim um corpus de matéria memorialística para pesquisadores. Quem se aventura?
      Só para citar os autores que me chegaram ao conhecimento: Eleazar Moura (Amarante antigo – alguns homens e fatos; Nasi Castro (Amarante – um pouco da  história e da vida da cidade, Amarante – folclore e memória; Cunha e Silva (Copa e cozinha);Homero Castelo Branco (Ecos de Amarante); Celso  Barros Coelho (Tempo de memória, Política - tempo e memória); Olemar de Souza Castro (Minhas duas pátrias, Sob o sol  poente); Assis  Fortes (Memórias de mim, histórias dos outros); Francisco Miguel de Moura (O menino quase perdido); William  Palha  Dias (Memorial de um  obstinado); José Ribamar  Garcia (E depois, o trem); Jesualdo  Cavalcanti Barros (Tempo de contar); Elmar Carvalho (Confissões de um juiz);Geraldo Almeida Borges (Província submersa – crônicas Teresinenses (século XX).
     Na impossibilidade deste tão ansiado "diário perdido",  os autores, todavia,   não abdicam  de seu direito de recordar o que de outra forma seria para sempre  sepultado como matéria  rememorativa, perdendo-se com isso  grandes relatos   de escritores  e  de sua época. Sem obras dessa natureza, empobreceria também, no seu  conjunto, a história literária  brasileira.
     
    



sexta-feira, 12 de fevereiro de 2016

Razões da escrita literária






                                                    Cunha e Silva Filho


        Você alguma vez já  pensou, leitor, por que  escrevemos? Antes de tudo, devo empregar o termo  escrita no sentido mais amplo do domínio literário. E aí se  incluem crônicas,  diários,  memórias,  notas  de viagens, apontamentos,   ensaio, crítica literária (já se está falando  por aí que esta está  desaparecendo, com o que não concordo. Deixarei para outra oportunidade a discussão dessa triste e dolorosa  notícia.
   Ainda incluirei os gêneros mais  tradicionais embora tenham  passado modernamente  por  grandes  mudanças mas sem perder a sua  estrutura intrínseca,  aquele  dado determinante que o torna um  gênero e não outro: o conto,  a novela,  o romance e, no campo  teatral, todo o texto escrito com destino certo de ser  teatralizado: o drama,  a tragédia e a comédia.Até aqui me restringi à escrita literária  em prosa.  Por fim,  coloco em  plano  sobranceiro, a poesia,  tendo já sido considerada  a mais pura  das artes.
      O poeta  Mallarmé  a define como  a “suprema forma de beleza.”  Não é este o lugar de convocarmos as mais belas  definições da poíesis. O que nos prende a  atenção  é o tema dos motivos  da escrita literária, quer dizer,  o que impele alguém dotado do pendor para  escrever em linguagem literária sobre algum  assunto.
    Este é o busílis da questão. Não vou discutir  tampouco  as razões  pela quais  alguns  escritores   são levados  aos braços  da ficção ou das musas, ou de ambas. Sabe-se que escritores  há que são  polígrafos e outros que só escolhem  um  gênero de escrita e permanece  nele  por toda a vida. Uma vez,  numa conferência na Academia Brasileira de Letras,  o  ensaísta, teórico e crítico  Eduardo Portella, confessava,  em tom  francamente  melancólico,  como se estivesse a sós  com um amigo, que nunca escrevera um só poema  e a sua fisionomia um tanto  triste no momento  acompanhava  a declaração. Passara a vida  analisando  poemas  de tantos autores e jamais  teve o talento  para  escrever versos é o que se poderia  dizer  implicitamente  de suas   palavras.
   O certo é que isso é um dado que  serviria  para  ampla discussão  entre  especialistas ou  não, ou seja,  o leitor  inteligente e  amante  da literatura, como  existem tantos por aí de outras  profissões que nada têm a ver com  a escrita literária. O mesmo poderia afirmar de  profissionais  de outras atividades  que não viveram  apenas   do que lhe  dava  o real sustento  da família mas que  mostraram   ter  a vocação literária,  o que os fizeram  bons e até ótimos  escritores. São muitos os exemplos na literatura brasileira e estrangeira. Pouquíssimos são aqueles que só vivem  de escrever. No Piauí, temos um exemplo, o de Assis Brasil, até hoje  viveu de literatura. Tem uma produção  imensa  que extrapola a casa dos cem livros. 
     Alguém poderia arguir: “Mas, escrevendo  tantas obras, será que  são tantas de boa qualidade?” Não importa que a resposta seja  negativa ou positiva. O fato é que quem escreve com tanta porfia  merece elogios, quando menos  porque  mostrou  ter  uma  grande capacidade  de  produzir, o que é uma vantagem sobre os que  escrevem muito  pouco. Por outro lado, há que acrescentar: a quantidade de livros de um  autor  se explica  também  pelas condições de vida  dele,  por exemplo, maior  tempo  para se dedicar  a escrever, uma vida  menos agitada,   uma certa solidão  necessária, uma maior liberdade  individual  para  tocar seus  projetos  de escrita, uma saúde  boa, continuidade de projetos, responsabilidade intelectual etc
     Entretanto, um problema  de natureza epistemológica ainda  mexe com  os meus pensamentos sobre  o ato da escrita e sobre  as razões de sermos impelidos  para este lado artístico. Uma explicação me vem à tona: a do ambiente  familiar. Por exemplo, um pai  escritor tende a influenciar um filho que tenha inelutavelmente o potencial  para  se dedicar  à atividade literária, assim como  vale para  outras  vocações  que não a literatura. O que, porém dizer de escritores  cujos  pais  nada têm a ver com  a literatura?
    Em muitos casos,  há exemplos de ascendência familiar   que se dedicavam, às vezes, às escondidas,  à literatura,  a escrever versos, ficção etc., ainda que de forma  amadorística.  O certo  é que o ambiente  familiar  é um fator  determinante para filhos sigam  o que  fazem os  pais. Outro fato que  oferece um bom kick off às vocações   é  ter tido  o futuro  escritor  palavras de estímulo de um  líder intelectual, de uma pessoa  relacionada  à vida  literária e cultural. Os desestímulos por vezes  prejudicam  a condição  de um futuro  escrito, mas não são decisivos  às determinações  de um vontade férrea que  resiste aos  obstáculos. Às vezes, até fortalecem os determinados, segundo tenho  tido  notícias sobre o assunto.
   Após considerar  tudo isso  de forma sumária,   me vejo  forçado a  dar testemunho  do meu  exemplo particular. Me pai foi professor,  jornalista,  escritor.. Vivia  entre os livros, jornais, revistas.  Eu via tudo aquilo.  Tudo  observava.  Aos poucos,  por  necessidade    imperiosa  de temperamento artístico,   me voltei também  para os livros, e sobretudo  para a escrita.  Todavia,   não segui ao pé da letra as preferências  do gênero  de me pai, que eram o jornalismo e os estudos históricos, sociológicos,  filosóficos.Um dia,  estando eu  deitado ainda na rede escutei sem que eles soubessem uma conversa entre meu pai e minha mãe a respeito  do que  me pai pensava de mim. O que ouvi   seria mais ou menos  isso: “Meu filho Francisco  não é o que  poderia chamar de jornalista. Ele tem propensão para ser escritor.” Mamãe pareceu  concordar com ele. Examinando bem o que meu pai  falara de mim entendi melhor  que, ao me definir como escritor,  ele queria  dizer  alguém  que escreve sobre literatura ou mesmo  raramente  alguém que  imagina  escrever  ficção..  
  A concepção de meu pai  fazia  uma grande diferença entre  o jornalista,  um comunicador de fatos  ocorridos, de notícias e de opiniões sobre a realidade  de forma  objetiva. Nunca, desde aquela noite,  deitado na rede,  deixei de  refletir sobre aquele pequeno diálogo entre meus pais.
    Há algo que  gostaria de adicionar a essas  ponderações.
Muitos anos depois daquela fase de adolescente em Teresina,  já com  um bom   traquejo  de ter escrito  muita coisa,  me vejo  ainda  na obrigação  intelectual  de afirmar  ser a razão  de minha   escrita algo  bem superior  às contingências materiais do meu quotidiano.
   Em outros termos,  julgo que as razões da  minha escrita literária penetram  em outro  universo   existencial,  passam ao campo  da transcendência, da vontade  da carência, da falta, do desejo de  me comunicar com  outros, da necessidade  de me afirmar  ante  os problemas  da vida, dos homens, da sociedade,  dos governos, das ideologias, das religiões,  de permeio com  as reflexões sobre o  fenômeno  literário,  sobre  a questão dos valores  artísticos,  literários,  morais, econômicos, culturais  em larga escala não adstritos  apenas ao meu país mas ao mundo, às injustiças,  ao desmoronamento  moral  da  humanidade, às ameaças  de um grande conflito  global, às seriíssimas  questões   climáticas, preocupação de grandes   pensadores e cientistas atuais.

   Essas duas dimensões da existência trabalham em meu espírito ora separadamente (temas, tensões, apelos,  indignação)), ora conjuntamente (temas e linguagem literária) quando  postas  na forma  impressa.  Quanto à questão de gênero,  a minha preferência  recaiu  ao longo de todo esse tempo para o campo da crítica literária, secundada  pelo gosto de traduzir poesia, de escrever crônicas, artigos e de aperfeiçoamento individual das línguas que cultivo, que não são muitas.

sábado, 6 de fevereiro de 2016

Em tempo de carnaval




                                             Cunha e Silva Filho




       É certo que a política nacional  vai muito mal,  que a economia está em crise  de alto  risco, que a impunidade continua  fazendo vítimas pelo país afora,  que  tudo conspira  contra  o momento do carnaval. E vamos  despir  o  período do carnaval deste ano  de quaisquer  conotações  sociológicas. 
        Esqueçamos, durante estes dias festivo de Momo ou dos foliões,  dos bate-bolas, das escolas de samba,  dos blocos da rua,  as análises pertinentes  e lúcidas de DaMatta  ou outras  de críticas  a essa tradição  tão  arraigada ao espírito  festivo do brasileiro, tanto quanto o samba e o futebol. Suspendam o nosso   pensamento por um pequena trégua e pensemos no bom lado  das serpentinas,  dos arlequins,  dos pierrôs, das colombinas.
     Vivamos, um pouco que seja, a alegria geral.  Bem   apropriadas foram as palavras de Rosiska Darcy de Oliveira em brilhante crônica publicada no Globo (Opinião, 30/01/2016),  na qual  fala de carnaval, mas  também de um carnaval  cuja  “alegria é tingida de amargor,” aludindo,  é claro,  ao carnaval  deste ano a  ser transcorrido  num fase  delicada  por que passa a Nação brasileira cheia de indignação contra especialmente   a roubalheira  do  governo  federal  em detrimento  de tantos   problemas que estamos  atravessando em tantos setores da máquina administrativa   dos governos federal,  estadual e municipl,  muito deles em petição de miséria  financeira.
      Vamos abrir um parêntese de trégua a todas essas desídias do governo  federal  perpetradas contra a sociedade e atingindo muito  mais  os desfavorecidos  do grande capital.
        Brinquemos,  pois,  um  pouco  o carnaval,  penetremos  no seu âmago  que é a capacidade de despertar alegrias  gratuitas,  a alegria pela alegria,  porque ninguém é de ferro e mesmo  até em guerras  há momentos de trégua.
     Se somos  saudosistas e temos  pouca memória,   lucremos com esses sentimentos   que nos transportam para o passado  dos nossos  carnavais, com  todas as suas marchinhas  que ainda hoje são  cantadas  em clubes,  ruas,  coretos,  praças públicas.
      Estou certo de que para os mais velhos não faltaram  boas recordações,  de  figuras do carnaval  brasileiro que se destacaram  em várias frentes,nas escolas de samba,  nos clubes,  nos bailes carnavalescos  de luxo,  nos desfiles  suntuoso, trazendo à tona a figura  encantadora de Clóvis Bornay, e as de  outros nomes  conhecidos dos períodos de  nosso  carnaval, como  Braguinha,  Blecaute, Zé   Kéti, Jamelão, João Roberto Kelly.  
     Me lembro  bem e com saudades dos concursos de bailes de  fantasia – visto  por mim através da  televisão -   de luxo onde pontificavam o citado  Clóvis Bornay ao lado de seus  principais rivais,  Evandro de Castro  Lima e Mauro Rosas. Ficaram  famosas  as vitórias de Bornay nos concurso  do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
  O primeiro desfile de  carnaval a que assisti  no Rio de Janeiro  foi em 1965. Creio que na Avenida  Presidente Vargas, centro do Rio. Assisti a outros realizados na Avenida Rio Branco. Depois, com os novos tempos, o carnaval se institucionalizou, virou máquina de fazer dinheiro,  carnaval  mais para  turistas,   quando  se realizaram e ainda se realizam  no Sambódromo. A partir dessa fase  que chamaria  carnaval  comercializado  deixei de ir às ruas  nesses tempos de  momos. Nunca,  contudo,  perdi  o interesse  por essa festa   profana.
       Obviamente,  que os carnavais que mais se me fixaram na retina foram os do meu tempo de menino e  de adolescente em  Teresina. Carnavais  com corsos,  os famosos desfiles em carros abertos  ladeados  pela assistência  humilde que saía de casa para ver  pessoas bonitas,  os  endinheirados de então,  com as suas fantasias  vistosas e custosas. 
     Ah, carnavais de rua  de Teresina!  Como me divertiram naquele  tempo! Quantas risadas!  E, por falar de carnaval de Teresina,  o que mais  me chamava atenção eram os bailes do Clube dos Diários,  da Rua Álvaro Mendes. No meu livro Apenas memórias, a ser lançado pela Editora Litteris,  descrevo e narro  uma noite de carnaval a que chamei de "Último carnaval de  um adolescente em Teresina.” Falo sobretudo do ambiente feérico, da magia, do encantamento de um baile no Clube dos Diários.
      Só compareci a alguns daqueles bailes de luxo  que poderia contar nos dedos. É que meu pai  não  era sócio  do Clube dos Diários.  As poucas vezes  que entrei  naquele  famoso Clube da high life de Teresina foram através da amizade de colegas que eram sócios. A sensação auditiva que mais guardo daquelas festas  carnavalescas ali era o toque de corneta que  sinalizava  para  o início  dos festejos do Momo.
    Mas, há um lado trágico que me fiou de um dos carnavais do Clube dos Diários.  Foi a morte de um jovem, chamado Almeidinha, que morreu  por inalação  excessiva de lança-perfume, creio eu.  Almeidinha era  muito jovem para  compreender o perigo de inalar  esse perfume tão inebriante. 
    Na verdade,  o perfume de lança-perfume exercia um fascínio singular  para nós daquela época, sobretudo, na euforia  carnavalesca, euforia  que misturava   as imagens de lindas  garotas, de corpos  sensuais,  de pernas torneadas, de máscara e de fantasias excitantes, de amores que despontavam, ou que se desfaziam e até traições de adultos que se ensaiavam  ao ritmo  da folia,  dos pulos  e dos requebros   erógenos das jovens e jovens adultas culminados  pela  bebidas com teor de álcool, ou mesmo  misturadas com  o líquido odorizado  de lança-perfume.  
      A tragédia  de Almedinha  se deu, suponho, por volta do início dos anos 1960. Foi muito triste  para os pais e os amigos dele, daquele jovem de família  de classe média muito alegre, amigo, receptivo, comunicativo,  despojado,  companheiro, exemplo de coleguismo sem falsidades.
     Depois desse mergulho rápido no passado de carnavais,  volto ao meu  presente de cidadão  brasileiro que, agora,  em sua casa,está teclando essas impressões  rememorativas  em tempos bicudos  para  a consciência cívica nacional que, de vez em quando,   desperta, em meio  da animação  carnavalesca,   para um  Brasil  que chora  as suas próprias  desgraças e execra o comportamento  dos seus governantes nos três níveis  de poder.  
  Concluamos  esses comentários, citando três versos do poema”Carnaval” de Da Costa e Silva (1855-1950) : [...] A vida é uma girândola na alvorada/ ao retinir os guizos  de vidro  da Folia/  Evoé! Evoé!